2.TUDO PELA MÚSICA, PORQUE ELA ME ESCOLHEU
2. TUDO PELA MÚSICA, PORQUE ELA ME ESCOLHEU
As últimas notas foram tocadas com leveza. Mão direita e mão esquerda se suspenderam das teclas, dando um visual elegante a performance pianística. O som, que era sustentando pelo pedal, ainda ressoava.
Laissez Vibrer estava escrito no compasso final da primeira parte daquela Suíte para piano. Mas não havia partitura na minha frente, eu a tinha memorizado. Se me fosse permitido, prosseguiria tocando o segundo e terceiro movimento daquela peça com muita destreza.
Terminada a atuação, voltei para a realidade. Em vão tentei não parecer ofegante. Tocar obras densas me exigiam um grande esforço.
Ninguém dizia nada. O silencio era incômodo.
Com coragem, olhei para o lugar onde estavam as oito pessoas que me assistiam. Júlio, Milena, Aldo e Igor demonstravam orgulho. Fiquei aliviada por ainda conseguir impressionar a família Albuquerque.
Reparei, também, que uma mulher de traços orientais tinha lágrimas escorridas no rosto, e foi ela quem começou os aplausos.
Levantei do banco, me posicionei do lado direito da cauda do piano e curvei minha fronte num gesto de agradecimento. Ao voltar a postura normal, ajustei os óculos no rosto.
- É sobre isso que se trata o Instituto Bravíssimo! – Júlio, o patriarca da família, começou a falar. - Os jovens mais vulneráveis, aqueles que são menos favorecidos, precisam saber que existe a chance de escolher o caminho do bem. – Ele levantou da sua poltrona Luís XV e apontou o dedo na minha direção. – Essa é Rúbia Sarmento, nossa ex-aluna. Hoje ela faz parte do corpo docente de professores.
Mentira. Nunca fui aluna da instituição, apenas assisti algumas aulas avulsas de teoria musical antes de entrar no curso superior de música.
Na realidade, minha mãe, Vanda, era regente do coral infantil da ONG e quando eu tinha quinze anos, me tornei a pianista acompanhadora das crianças. Nunca fui aluna, sempre fui funcionária. Mas mamãe dizia que certos blefes não eram tão maus, que faziam parte do processo de ascensão de toda carreira. Então, sempre que dava, eu evitava pensar muito sobre o assunto, pois, era possível que meus princípios entrassem em colapso com minhas necessidades. Às vezes eu conseguia fazer vista grossa. Não era fácil. Me desgastava emocionalmente. Só que ali não tive muita saída além manter meu sorriso congelado e blefar, totalmente conivente.
"Rúbia é a joia do Instituto Bravíssimo!"
"Essa garota tem prêmios nacionais e internacionais!"
"Passa horas do dia diante de um piano."
"É pianista do coral infantil do Bravíssimo."
"Acreditam que ela só tem dezenove anos?"
As afirmações eram certas, mas eu odiava a maneira que Júlio sempre me expunha. Parecia que eu era uma miserável, e que eu só tinha conquistado os meus feitos graças à sua generosidade.
O pior era que aquele homem arrogante possuía uma retórica invejável! Por vezes me vi quase convencida a sentir pena de mim mesma. Algo fácil de acontecer quando mentiras são proferidas entre verdades, a gente se confunde e acaba as aceitando.
Eu não era rica e nem pobre. Minha família vivia modestamente bem. Minha mãe era professora universitária e meu pai era distribuidor de produtos orgânicos. Iniciei no piano aos cinco anos de idade. Meu irmão tocava violão e minha irmã desistiu do violoncelo, da viola, do violino e da harpa (até aceitar que não levava jeito para a coisa). Tivemos os melhores professores da cidade, algo que custou caro para nossos pais. Mas nunca nos faltou nada!
Pela música, Rúbia! Faça isso pela música, porque a música te escolheu.
Lembrar que eu tinha um ideal, me fazia tolerar Júlio e suas caridades exibicionistas. Ele fazia questão de mencionar que financiava meus concursos no exterior. Uma verdade dita com muita vaidade.
Num certo momento, olhei para Igor, que abaixou a cabeça tão incomodado quanto eu. Entre nós havia uma história cheia de falhas. Eu já tinha aceitado o nosso fim, mas, até então, doía pensar que tudo estava acabado. Para meu azar, meu primeiro amor era filho do homem que eu desgostava cada vez mais.
Júlio ainda falava, durante o discurso dizia os nomes dos novos embaixadores que estavam ali presentes. Quatro rostos famosos representariam a instituição e aquela noite era o jantar de boas-vindas. Dentre eles, havia uma artista plástica, uma digital influencer e dois jogadores de futebol. Entendi que a mulher de traços orientais não era embaixadora, e sim, esposa de um deles, um zagueiro do Atlético Mineiro que foi referido como Ferreirão. Não pude deixar de achar graça que atletas e celebridades podem ser reconhecidos por apelidos. Algo quase impossível de acontecer com um músico erudito, que precisa ter nome e sobrenome. Imaginei o poderoso Júlio Albuquerque apresentando a "joia do Bravíssimo" como Binhazinha, ou melhor, como a minha irmã costumava me chamar: Rubião.
Meu sorriso deixou de ser forçado para se tornar genuíno. Silvão, Rubião, Hilda Furacão e todos os Ãos jamais combinariam com o luxo dos móveis vitorianos daquela sala de estar. Mas Júlio costumava ser flexível quando o objetivo era manter a fama de "anfitrião da capital mineira". Belo Horizonte era o seu reinozinho.
Já o outro atleta, Filipe Angeli, foi mencionado com mais frequência que os demais embaixadores. Não era para menos, pois ele seria a figura principal do marketing da instituição.
Esse sim eu conhecia! Não por causa do futebol. Não mesmo. Esportes nunca foram o meu forte. A dedicação à música totalizava todo o meu tempo, não sobrava espaço para outra coisa.
Acontece que o tal Filipe não era um completo estranho para mim. Entretanto, só naquele momento fui descobrir que se tratava do idolatrado centroavante do Cruzeiro, atual artilheiro do campeonato brasileiro. Por incrível que pareça, ele também me conhecia. Tínhamos nos esbarrado há algumas semanas. Nosso primeiro contato não foi nem um pouco amistoso.
Lembrar disso me fez voltar a sorrir de forma fingida.
Pela música, Rúbia! Porque a música te escolheu!
Pensei repetida vezes.
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