Ato 4
— Ficou quieta de repente — Troy observou a amiga, que ergueu o cachecol até nariz para o vento não fustigar-lhe o rosto.
Skylar esgotou bem rápido todos os assuntos possíveis com o solista da companhia. Quando se conheceram há quatro meses, numa das salas do Lincoln Center, ele foi o único a lhe oferecer um lugar na barra, ao seu lado, e de imediato se apresentou como o bailarino mais simpático da companhia.
— Skylar Brooks — ela respondeu, sorrindo com algum acanhamento. Enquanto os outros bailarinos a hostilizaram, chamando-a de caipira, Bailey a tratou com respeito e gentileza, e a convidou para tomar um café no mesmo estabelecimento onde tomaram sopa na noite anterior. O rapaz a surpreendeu, ao pedir que ela pagasse a conta.
— É um trote contra calouras? — ela perguntou sem perder o bom humor, abrindo a carteira.
— Podíamos fazer você passar por um rito de iniciação — ele apoiou o cotovelo no balcão e fitou os lindos olhos verdes da nova contratada do New York City Ballet. — Mas as coisas são diferentes aqui, e o Leroy faz cara feia se a gente obrigar a futura estrela da nossa companhia a atravessar o rio Hudson à nado.
— Não viaja, Troy. Você só me viu dançar uma vez e já acha que vou ser uma estrela? Assim me iludo.
— Eu não acho. Tenho certeza.
— Ah, é? E por que?
— Você tem flexibilidade. En dehor. Musicalidade. E uma sensibilidade artística que pouquíssimas bailarinas têm e que todas as companhias de dança valorizam.
As palavras do bailarino deram em Skylar uma inesperada injeção de ânimo, e ela se perguntou como era possível que num mundo tão competitivo e egoísta como o do da dança existisse um rapaz como Troy – gentil, acolhedor.
Aquela foi a primeira e a última vez que ela pagou à ele um café; nas outras vezes, ele reivindicou o papel de cavalheiro, embora às vezes ela protestasse.
— Sou de família tradicional e republicana, Skylar — ele repetia. — Não gosto de mudanças.
A verdade era que Skylar amava o jeito alegre, despojado e gentil de Troy. Este tinha as palavras certas para alegrá-la após um dia ruim de trabalho, e o que nasceu como amizade evoluía rapidamente para um sentimento mais forte.
Ela não conseguia andar ao lado do rapaz sem sentir as bochechas arderem (apesar do frio).
— Já estamos chegando ao teatro — a moça disse sem responder à observação do amigo.
Troy assentiu em silêncio. Percebeu que não obteria mais assunto de Skylar e não insistiu.
A bailarina tirou a roupa paisana no vestiário, mostrando a indumentária de dança. Meia calça côr de rosa sobreposta ao collant azul índigo. Ela se sentou no banco de madeira, começou a calçar a Gaynor e amarrou os laços de cetim.
De repente, ouviu alguém vomitando num dos lavabos. Olhou para trás, viu Nina abrindo a porta de uma das cabines e saindo com um lenço vermelho nas mãos.
Skylar ficou assustada com a palidez estampada no rosto da solista. Os olhos desta lacrimejavam, e se Skylar não soubesse que Sayers era uma das mais talentosas e fisicamente bem preparadas para oito horas de aula, diria que a mesma não se aguentaria em pé.
— Nina, o que aconteceu?
— Nada. Só comi um salgado gorduroso antes de vir para cá, vou ficar bem.
Nina se debruçou no lavatório, escovando os dentes, e ignorando a presença da outra, que semiabriu a boca e reparou nas costas da solista. Skylar ficou intrigada ao notar marcas de unhas nas costas da colega. Algumas eram bem frescas e vertiam sangue.
— O que foi? — Nina empinou o queixo em desafio para a mais nova.
— Não, é que… tem um pouco de sangue escorrendo aqui atrás — Skylar respondeu com acanhamento.
Nina arqueou as sobrancelhas e prontamente virou as costas para o espelho, fazendo uma expressão de raiva.
— Droga…! Droga!
Instintivamente ela tirou lenços de papel da bolsa e limpou-se, vestindo uma blusa de moletom por cima do collant.
— Nina, você se arranhou? — Skylar arrependeu-se prontamente por ter feito uma pergunta tão óbvia. As duas moças nunca foram próximas, na verdade poucas vezes se falaram. Nina era muito focada no trabalho. Tinha poucos amigos ali dentro e nunca saía para dançar ou passear com pessoas da idade dela. Tudo o que sabia dela era graças às informações fornecidas por Hope e Trixie. Segundo estas, Mrs. Sayers tivera de abandonar a carreira de bailarina muito cedo para levar adiante a gravidez da filha, e matriculara esta numa boa escola de Nova York para que Nina pudesse se tornar o que a mãe não pudera ser: uma artista completa.
Skylar sabia muito bem o que acontecia a filhos sobre cujos ombros caíam altas expectativas dos pais. Eles cresciam sufocados, muitas vezes se sentindo obrigados a sempre agradar seus genitores, e desprovidos de autodeterminação.
Curiosamente, Nina parecia amar o que fazia. Quando dançava, mostrava o que tinha de melhor: doçura, leveza, encanto e pureza. Os papéis de Giselle ou Odette combinavam com seu ar sonhador e tímido.
Mas Skylar sabia que a garota doce tinha muitos problemas, e as marcas de unhas nas costas eram só um indicativo de que a vida de Nina era difícil.
Nina soltou o ar, fechando os olhos em aborrecimento, pôs a mochila nos ombros e meneou a cabeça negativamente.
— Não é nada, Brooks — ela respondeu, seca.
A moça de Iowa não se convenceu e insistiu.
— Se quiser conversar… se quiser uma amiga, pode se abrir comigo.
Nina se surpreendeu que uma moça com quem não tinha intimidade se dispusesse a ouvir sua história de vida. Deve ser bom ter amigos, ela pensou. Alguém para me escutar, para me dar conselhos, para me abraçar e me sustentar quando eu estiver para cair…
Skylar sentiu um grande vazio dentro da colega, um vazio oculto sob a dedicação obcessiva de Nina pela dança, mas que estava ali e a impedia de ser ela mesma. Achava que devia fazer algo para ajudá-la, pelo menos ouvi-la, caso ela sentisse que precisava se abrir.
Nina, porém, agradeceu com um meio sorriso e saiu do vestiário, batendo a porta com um estrondo.
Skylar deu de ombros. Havia tentado uma boa ação, pelo menos, e foi para a aula com a consciência leve.
A sala se encheu de bailarinas com collants coloridos. Algumas usavam segundas peles por cima de tops, outras, short lycra, calças de malha ou leggings, e só uma garota, loura, que estava de costas fazendo elevés alternados na barra, vestia o gracioso collant regata preto com abertura nas costas, meia calça e sapatilhas rosas, sem saia. Skylar não se lembrava de tê-la visto.
Andando em direção à barra onde Hope e Rebecca desciam em grand plié, a moça ganhou um sorriso das colegas e começou a se aquecer.
— Vimos você vindo de braços dados com o Troy — Hope riu maliciosamente ao fazer o comentário.
— Parem com isso — Skylar revirou os olhos. — Somos só amigos.
— Sei — a primeira trocou um olhar suspeito com Rebecca.
Skylar mudou o rumo da conversa, falando sobre trivialidades enquanto as três se alongavam.
Troy, sentado num canto da imensa sala, tinha seus pés pressionados para frente, contra o chão, por seu amigo Quincey. Felizmente ele era homem, e não necessitava ter um arco de pé impecável como o de uma bailarina, mas pés alongados eram imprescindíveis, mesmo ele não tendo de calçar uma sapatilha de ponta.
Fazendo careta por causa da dor, ele não notou um par de olhos verdes fitando-o.
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