— Pra mim, uma coca diet, por favor — Troy pediu, e três minutos depois a garçonete voltou com os pedidos.

David, sempre com o cabelo arrumado e sempre bem vestido, comeu sua fatia de pizza fechando os olhos. Sergio estava distraído teclando o celular e Troy tinha ao lado de seu prato um volume de Anatomy of Human Body.

— Então, só falta duas semanas — David olhou diretamente para os dois colegas — para a reestréia do espetáculo e o início da turnê pelos Estados Unidos. 

— Adeus sossego — Sergio riu. 

— Devíamos ter pelo menos um mês de férias — o primeiro bufou. — Não fiz metade do que eu queria, a temporada já vai recomeçar e já estou cansado.

— Cansado? Você, David? — Troy se manifestou finalmente.

— Quando se tem uma partner boa como a Beth Maclntire, tudo flui naturalmente, os ensaios são aprazíveis e a gente sabe o que o outro sente bastando uma troca de olhares — o primeiro bailarino explicou. — Mas quando você ganha uma partner nova, é mais difícil. A coisa não engrena. Temos que repetir passos, mexer numa coisa aqui, consertar outra ali, e isso é maçante.

Sergio enlevou o canto esquerdo da boca.

— O David está de saco cheio com a Nina — ele provocou um esclarecimento fitando o semblante curioso de Troy. — Não é, David? Conta para o Troy como tem sido os ensaios de vocês.

Troy ergueu seu queixo para o Premier Danseur em pedido de conte.

— Bons — o interpelado respondeu.

— Então…

— Rapazes, bom é muito pouco para os padrões da companhia. Tem que haver um momento mágico. Um momento cósmico, que com a Nina não está rolando. Ela é ótima dançando Cisne Branco. Tímida, pura, gentil, triste e apaixonada… Mas como o Cisne Negro está deixando a desejar muito.

— Eu não a julgo — Troy comeu um bocado de seu lanche e tomou um gole de coca —, esse papel mexe com o psicológico de qualquer bailarina. Por isso que mesmo entre as grandes solistas do mundo, poucas conseguem dançá-lo bem. 

— Mas o Thomaz a escolheu, então tem que dançar bem ou dançar bem — David passou os dedos no cabelo, se distraiu com um grupo de rapazes que entrava. Acenou para um homem sorrindo e se voltou para os colegas. — Precisavam ter visto nosso ensaio hoje. Foi… insosso! Nina parecia um robô. Depois do ensaio, o Thomaz olhou para nós dois e me perguntou: “David, você transaria com essa mulher?”. Eu fiquei muito constrangido, cara, e ri abaixando a cabeça pondo a mão na cintura. Fiquei com vontade de responder que eu gosto de homens, mas antes que eu abrisse a boca, o diretor disse: “Nem precisa responder. Claro que não. Ninguém transaria.”

— Isso é muita babaquice, expôr a garota desse jeito — Sérgio, o mago Rothbart do balé, retrucou.

— A verdade é que aquele cara babaca leva as garotas ao limite, dão à elas papéis importantes, as instiga pra dar mais do que podem e depois faz questão de dizer que elas não são boas o suficiente para dançar — Troy desta vez empregou um tom revoltado que inquietou os bailarinos mais experientes.

— Ele pode sim, ser um babaca. Mas é um gênio também. Tanto que nossos espetáculos dão o que falar nos jornais.

— Isso era passado, David — Sergio meneou a cabeça tristemente. — A companhia não está bem das pernas. As últimas temporadas foram muito ruins em termos de bilheteria.

— Por isso que a Nina tem que acordar, cara. Mostrar o potencial que ela tem. Eu sou bom, sou o primeiro bailarino, mas pas de deux é dançado por dois, eu não posso fazer nada sozinho. Se a Nina transcender, se ela mostrar o potencial gigantesco que tem, essa companhia sai do buraco em pouco tempo.

Troy permaneceu calado por alguns minutos apenas ouvindo a conversa entre os outros dois bailarinos mais experientes, ponderando sobre os rumos que as coisas estavam tomando.

Parte da culpa de a companhia estar no vermelho e penar para pagar em dia os salários dos artistas, pensava ele, era do próprio Leroy, que dispensou artistas de altíssimo nível como Beth Maclntire – experiente, talentosa – e promissoras, como a Rebecca Stelmann, para contratar “meninas” como Jasmine, ainda imaturas. 

As brigas entre as bailarinas nos bastidores também não estava ajudando em nada. Se as garotas se unissem, ao invés de tentarem se destruir umas às outras, o clima melhoraria bastante, e as coisas caminhariam para um bom termo.

O bailarino sentia aflição por saber que Skylar estava perto demais do furacão, mas acreditava que ela era esperta o suficiente para não se envolver em questões que não lha diziam respeito. Por mais que torcesse para sua namorada conquistar espaço entre as grandes, ganhar fama, repugnava-lhe a ideia dela trabalhar com Leroy.

— Troy — David estalou os dedos diante do amigo. — Está dormindo, cara?

— Disse alguma coisa?

— Perguntei o que você acha que acontece entre um homem experiente, com poder, e uma garota virgem e ambiciosa que ficam fechados sozinhos numa sala de ensaios.

O namorado de Skylar arregalou os olhos em estupefação, incapaz de imaginar do que David estava falando.

— Leroy mandou todos nós sairmos da sala, menos a Nina — David esclareceu. Eu até brinquei e disse à ela: “divirta-se”. Claro que usei duplo sentido. Porque sei do que um homem como Thomas Leroy é capaz, e mesmo eu sendo gay, tenho que admitir que minha partner é muito gata.

— Se houve abuso, como é o que você está teorizando — Troy ficou incrivelmente incomodado com as palavras do colega —, não devíamos estar banalizando isso como se estivéssemos falando de um jogo entre os Lakers e os Bulls. Devíamos estar enojados.

— Oh! Você ficou irritado de repente.

— Eu me tornei bailarino pra fazer, do meu jeito, mesmo que com uma contribuição pequena, diferença nesse mundo tão preto e branco, sem graça, onde todo mundo corre atrás de fama, dinheiro. Me tornei bailarino pra dar colorido na vida dessas pessoas e fiz muitos sacrifícios pra isso, até chegar por mérito meu à uma das melhores companhias do mundo. Agora, eu estou numa companhia onde carreiras grandiosas são destruídas da noite pro dia, onde pairam suspeitas de abusos e assédio sexual por parte de um homem sem ética alguma, e isso, ao invés de causar indignação no elenco, parece normal, e vocês não querem que eu fique revoltado?

David bebeu mais um gole de sua coca diet, recostando-se sossegadamente em sua cadeira.

— Acho bonito que você tenha princípios, Troy — a voz dele era pesarosa. — Todos um dia fomos assim, quando garotos. Eu fui assim. Mas não se engane. O balé tem um lado negro. É só para os fortes. E nem é tão ruim aqui, pelo menos nossas meninas não tem que se prostituir para conseguir patrocínios, como acontece no Bolshoi.

E projetando seu corpo em direção ao do colega, olhou-o bem nos olhos e terminou com um tom de alerta e ameaça ao mesmo tempo:

— Não tente mudar nada aqui. Você só vai se queimar.