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Ato 15

      Corria à boca pequena que Beth não suportara a pressão, abandonando a companhia assim que o espetáculo acabou. Suas desafetas tinham comemorado. Quem a viu após a conversa com Thomas Leroy, quando ela recebeu o buquê de flores que toda primeira bailarina recebe, se comoveu por ver uma mulher de semblante abatido, uma mulher esgotada e sugada pela contribuição de mais de trinta anos à dança.

      Beth, porém, voltou uma semana depois do reinício dos trabalhos. Aquele era seu lugar, aquela era sua seara, onde ela era reverenciada e amada. Mesmo com sua saúde emocional abalada, ainda era a Rainha dos Cisnes, e se uma daquelas “crianças” quisesse seu posto, que lutasse muito.

      Naquela manhã de muito frio, as solistas se maquiavam no camarim. Não escondiam a ansiedade pela temporada de espetáculos que se reiniciaria.

      Skylar não acreditava que a demissão de Rebecca se atribuía a insuficiencia técnica. Parecia que ela estava escondendo algo, e que a comprometia, porém não insistiu para que falasse. Por mais que se sentisse triste, a ausência da solista poderia beneficiá-la, como seria bom também para meninas como Jasmine.

      A garota terminou de prender o coque e passou um batom de cor bem discreta. Por estar ouvindo uma canção clássica no fone do celular, permanecera absorta aos comentários nada elogiosos que Verônica, Galina e as outras faziam sobre Beth.

      Até que de repente uma garota entrou ofegante no camarim, atraindo para si os olhares inquiridores de todas as solistas.

      — Solistas? — a recém chegada perguntou.

      As moças se entreolharam. Nina acenou positivamente.

      Era uma moça muito bonita, de traços bem desenhados e olhos cheios de malícia e sensualidade. Skylar tirou os fones para ouvir a voz dela, que era agradável. Ela explicou que havia descido na estação errada e que teve de vir a pé.

      — Quem é essa? — alguém perguntou.

      — É aquela garota de São Francisco — outra respondeu.

      A novata olhou ao redor para identificar quem estava falando de si. Tirou os brincos, dando um sorriso de desdém.

      — Legal! — murmurou.

      Nos minutos livres restantes antes da aula, as bailarinas deram tratamentos às suas sapatilhas a fim de terem um bom desempenho. Raladores de cenouras raspavam solados, palmilhas foram cortadas com facas e estiletes, fitas de cetim costuradas.

      Pobres sapatilhas de pontas! Para se adequarem às necessidades de suas usuárias, tinham que ter aspecto de velhas.

      Skylar sorriu e acenou para Troy lá do outro lado, perto de David e Sergio. Ergueu a meia calça preta, fazendo-a passar da altura do umbigo, sempre revezando entre olhar para as próprias mãos que executavam port de bras e para o namorado.

      David deu um soco no ombro do colega, dizendo-lhe alguma coisa no ouvido. A cada dia mais pessoas conheciam o segredo dos dois (supondo que um homem e uma mulher que se beijavam na entrada fosse ainda segredo). 

      — Acho o amor tão lindo — Hope brincou dando um abraço na cintura da amiga.

      — Quer parar?

      — E não é? 

      A linha dura dos lábios de Skylar se suavizou, dando lugar a um sorriso travesso e bobo. Por que as pessoas ficam bobas quando se apaixonam? Por que elas acham graça em tudo, até no que não tem graça, e por que elas suspiram por tudo quanto é canto, escancarando o sentimento que não se pode compreender?

      Ora, as coisas do coração não são uma ciência exata, não dá para compreendê-las; só se pode vivê-las.

      Hope tinha ficado com um rapaz da orquestra e vinha tendo encontros com ele. As duas se sentiam felizes, mas não completas naquele momento, porque alguém muito importante lhes fazia falta.

      Rebecca.

      Impossível não sentir a falta da amiga. Ela era ranzinza, implicante, mas leal e incapaz de ofender alguém, e as duas aprenderam muito com a bailarina que, agora era só uma nota de rodapé no grupo.

      Hope não conseguiu terminar sua sequência de pliés de aquecimento, recebendo de Skylar uma mão no ombro.

      — Será que ela vai ficar bem? — Hope disse com um fio de voz.

      — Vai sim — Skylar sorriu tristemente. — É a Becca. Ela é dura na queda. E vai entrar noutra companhia logo.

      — Ela estava tão bem, Sky… Por que…?

      — Infelizmente, ninguém é insubstituível, amiga. 

      O ar escapou por entre os lábios com gloss de Hope, mostrando sua tristeza.

      — O que será que ela está fazendo agora?

      — Comendo brigadeiro e pipoca no sofá enquanto assiste Dawson's Creek é que não está — Skylar riu. — Com certeza, deve estar procurando na internet uma audição para prestar.

      Hope revirou os olhos com a resposta, concordando que deprimir-se não combinava com Rebecca.

      O aquecimento dos bailarinos termina no instante em que John se senta atrás de seu piano e Margareth sinaliza com o queixo para que ele introduza.

      Skylar não sentia tantas dores como no primeiro dia de aula. Aos poucos seu corpo sinalizava que estava se readaptando a rotina de trabalho, recuperando a flexibilidade.

      Esse tipo de dor, a dor muscular, era sua companheira desde que ela era uma menina gordinha, e também a dor que lhe ajudou a crescer como atleta de alta performance. 

      Existem dores piores, afinal. Não as que o corpo sente, mas a alma.

      — Linda como sempre, Nina — Margareth tocou com o indicador o ombro de sua amiga. — Relaxe.

      Leroy apareceu, e a professora, ao vê-lo, pediu para que o pianista parasse por um momento. As meninas prontamente tiraram shorts, saias, peças que cobriam as indumentárias de dança, ficando em expectativa para o que o diretor comunicaria.

      Ele estendeu a mão para que a música continuasse, desceu os degraus da escada, caminhou margeando as barras.

      Enquanto andava com imponência, contou a história de Lago dos Cisnes. Um conto que todos os bailarinos conheciam desde que calçaram suas primeiras sapatilhas. Por mais que o balé fôsse batido, ele anunciou que a companhia o dançaria, porém de uma forma diferente.

      Visceral.

      Essa palavra se instalou na mente de Skylar, junto com a palavra verdadeiro.

      A garota compreendeu bem que era o mesmo balé, mas com uma produção totalmente diferente. À medida que o diretor falava, tocando os ombros de algumas solistas, Skylar vislumbrava várias possibilidades. Mudanças.

      Mas que tipo de mudanças?

      O que Leroy disse a seguir respondeu seus questionamentos.

      — Uma nova produção precisa de uma nova estrela.

      Os olhos das meninas brilharam de excitação.

      Beth seria mesmo aposentada.

      A companhia teria um rosto novo, como Verônica sugeriu há uma hora no vestiário.

      — Mas — Leroy continuou —, quem pode dançar os dois papéis?

      O silêncio preencheu o ambiente quando John terminou de tocar.

      O diretor ordenou que as solistas de quem ele tocara os ombros continuassem a ensaiar normalmente. As demais deveriam encontrá-lo na outra sala.

      A euforia contida, nítida nos olhares de Nina, Verônica e a garota nova de Chicago, contrastava com o semblante sombrio de Skylar. Seu ombro tinha sido tocado pelo diretor, este nem a olhara direito se exercitando na barra.

      — Não fique assim — Hope apertou a mão da amiga por entre as suas.

      Skylar olhou para o diretor, que trocava algumas palavras com Margareth e saiu tranquilamente, sem olhar para trás. Os olhos da moça se fecharam, um suspiro escapou por entre seus lábios.

      Muito trabalho teria que ser feito. O ano só estava começando.

      Mas se ela só tinha um por cento de chance, iria atrás dela.

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