Ato 10
O cansaço e o nervosismo eram nítidos nos rostos de todos os bailarinos. Leroy não poupou ninguém, ele não era de economizar nos palavrões em francês, e mesmo Beth, com anos de experiência, teve seus momentos ruins no ensaio.
Skylar não foi incluída no Pas de Quatre. Ele seria mesmo dançado por Verônica, Nina, Rebecca e uma bailarina negra chamada Cíntia. Mas ela ganhara papel de um dos cisnes e isso a deixou feliz por dias.
Ela impressionou Leroy no ensaio, que apenas disse “bom”. Pelo pouco tempo que conhecia o diretor, essa palavra tinha conotação de alta aprovação.
Lago dos Cisnes é um balé que envolve o emocional de todos os bailarinos. Toda bailarina, desde criança, sonha em ser a princesa Odette, a garota transformada em cisne por um bruxo cruel, e encantar plateias executando uma dança triste e linda ao mesmo tempo, sem sorrir, expressando-se através de braços que se transformam em asas.
Para merecer a honra de interpretar a donzela triste, as bailarinas dão tudo de si. O desgaste psicológico das meninas é aberrante. Elas encarnam o papel, como se fossem sugadas para o universo da história e não conseguissem mais voltar à realidade. E quando voltam, estão radicalmente diferentes.
Skylar achou que havia chegado longe. Sabia que o caminho ainda seria longo, que precisava de mais ensaios, mais técnica e dramaticidade. Sabia que precisava arriscar mais.
A moça soube que só ganhara o papel porque uma das bailarinas havia rompido o tendão de Aquiles (e por consequência, dito adeus à dança). A informação, fornecida por Susy, deixou a jovem decepcionada, pois pensou que Leroy se interessara por si.
Sorte do acaso ou não, ela deu tudo de si. Mostrou que sabia executar movimentos precisos, dar vida a uma personagem, se tornar um só elemento com a música. Se Beth era a maior estrela, ela, Skylar, também fazia parte daquela constelação.
Os ensaios seguiram o cronograma normal. O elenco não sofreu mudanças. Skylar deixou que a costureira tirasse suas medidas, e dois dias antes da grande noite, provou o tutu de cisne.
Troy entrou no ateliê, abraçou a namorada sob os protestos da costureira e foi por esta convidado a se retirar.
— Só quero tirar algumas fotos da minha namorada — ele se justificou. — Posso?
A mulher concordou a contragosto após pensar um pouco.
Skylar olhou para a costureira com um sorriso e um olhar tão encantadores que esta amoleceu, pretextando ter de sair para resolver um assunto.
— Mas eu já volto — ela fez uma ressalva, deixando implícito que não queria nenhum avanço de sinal.
O sorriso de Skylar ficou mais bonito com os toques tão gentis que a bailarina recebeu das mãos do rapaz em seu rosto. Ele deu nela um beijo, segurou-a pelos ombros, olhou-a com amor.
Ela, por sua vez, sentiu uma lágrima de felicidade descer pelo canto de seu rosto, tão grande era sua felicidade.
— Eu sabia que você conseguiria, meu amor — o bailarino segurou o queixo dela.
— Estou feliz… Muito! — a moça deixou-se vencer pela emoção.
— Tem que estar mesmo. Você impressionou o Leroy nos últimos ensaios, ganhou a confiança dele e ganhou um lugar conosco.
— Na verdade… eu só entrei no lugar da garota que rompeu o tendão de Aquiles.
Um ar de tristeza e pesar se aposssou do rosto da jovem, que lamentou que uma garota não pudesse mais dançar.
— É triste, eu sei — Troy enxugou uma lágrima dela. — Mas acontece sempre. Uma bailarina jovem disse adeus aos palcos, nós estamos tristes por ela, porque ela era uma boa solista.
— Deve ser horrível abandonar o sonho assim, de uma forma tão abrupta.
— É, sim. Mas não se mortifique por isso. Pense no seu momento. O fato de você entrar no lugar da outra não tira seu mérito, pelo contrário. Quantas bailarinas ficaram de fora? No meio de tanta bailarina experiente, você foi escolhida.
— Mas por que, Troy? Por que eu?
O bailarino depositou um selinho nos lábios da namorada, beijou-lhe a mão direita.
— Você tem um brilho, um encanto só seu. E esse dom não passa despercebido de ninguém.
— Você está me superestimando.
— Não. Só estou constatando uma qualidade sua. Não se diminua.
Fingindo acreditar que havia sido escalada por ser boa, Skylar decidiu procurar esquecer, a fim de não se deslumbrar. Por mais que dançar para centenas de pessoas na antevéspera do natal fosse um marco em sua promissora carreira e ela não visse a hora de pisar no palco do Lincoln Center, tudo isso lhe pareceu sem brilho ou beleza diante do sorriso afetuoso de Troy.
Ambos se esforçaram para não ultrapassar dentro do ambiente de trabalho os papéis definidos que os profissionais deveriam ter. Não queriam ser chamados por Leroy à atenção, nem precisavam ser lembrados das regras que norteavam o comportamento respeitoso e discreto de cada bailarino.
A inclusão no espetáculo deu novos componentes ao emocional da jovem. Ela sentia mais ansiedade, expectativa e nervosismo. Hope e Rebecca sentiam que o inesperado papel mexiam com a amiga, e procuravam animá-la, lembrando-a que no corpo de baile era tranquilo.
— É a Beth quem anda na corda bamba — o comentário de Rebecca, tão ácido quando verdadeiro, apenas aumentou a admiração da moça pela prima dona.
Tenho que ser como ela um dia, a moça passou a se exigir.
Ela e o namorado saíram abraçados do teatro, puxando assuntos aleatórios e provocando os casais nas ruas. De vez em quando ela corria, só para ser perseguida pelo bailarino e agarrada por ele pela cintura.
A verdade é que se amavam. Se curtiam e se completavam.
Se no teatro as relações entre os artistas tinha que ser formal, fora dele nada impedia o casal de mostrar para as pessoas que queriam construir algo juntos (embora nem Skylar, nem Troy sabia o que esse algo era).
Casamento?
Talvez fosse prematuro cogitar essa possibilidade.
Caminhando de braços dados, já chegando a nevrálgica Times Square dos outdoors luminosos e vertiginosos que faziam a noite parecer dia, os jovens tomaram um susto ao dar de cara com um homem mal vestido, de barba espessa e chapéu parecido com o que os russos usam.
Eles já o tinham notado antes correndo em meio aos transeuntes, citando versos da Bíblia e pedindo para as pessoas se converterem. Mas não imaginavam que ele se colocaria diante do casal e começasse a fitar Skylar com um olhar vidrado e perscrutador. Parecia esquadrinhá-la, sondá-la por dentro.
— O senhor quer sair da nossa frente? — Troy pediu com voz ríspida.
Como o estranho abriu a boca, os olhos sempre vidrados, e não se mexeu, Troy puxou a namorada para o lado e os dois apertaram o passo.
— Cadela do maligno!
Em choque com a sonoridade do grito, Skylar parou e virou-se e olhou o ofensor, sem entender.
— Filha de Salomé! Aquela que pediu a cabeça de João Batista! Você abriga um demônio no coração! Invejosa! Sorrateira! Gananciosa!
— Olha como fala com a minha namorada, seu…! — Troy fez menção de avançar para o sujeito, sendo segurado pelo braço pela moça.
— Vamos embora, Troy — ela pediu, a voz aflita. — Vamos…
Skylar desejou que uma espaçonave os abduzisse, para não ver aquela figura grotesca, de dentes pretos e presença intimidadora.
Estava assustada com a ofensa gratuita, ofegante, sentindo uma súbita vontade de sumir.
— Sua cara de anjo não engana, filha de Sodoma! Você é uma ave de mau agouro! Demônio! Demônio! Pássaro Sombrio, que se alimenta de carne podre e apunhala pelas costas!
Skylar quis tapar os ouvidos para não mais ouvir os impropérios.
Nunca fora chamada de tantos nomes feios. Nunca ofendera ninguém, nunca dera um tapa na vida e se sentia ferida por ser chamada de nomes de mulheres malditas da Bíblia. Não merecia isso. Mas não sabia como se defender.
Precisava se defender?
O lunático continuou andando, gritando e ofendendo a garota, chamando a atenção dos transeuntes, até se cansar, até ver o casal sumir em meio à multidão.
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