(XXIII). O Fim
"Se você aprende a suportar a dor, pode sobreviver a qualquer coisa." — Sarah J Mass.
Lisa Manoban (Agosto de 1985)
[...]
Sinto todas as sensações que percorrem o meu corpo, a faca em minha barriga que me impede de respirar, que toma o meu fôlego entrecortado e já debilitado. Minha cabeça que lateja, impedindo-me de manter os olhos abertos, minhas pálpebras mais pesadas a cada piscada, meus músculos doloridos e aquela dor contagiante, constante, que me faz permanecer na mesma posição mesmo que doa, mesmo que esteja longe de ser reconfortante. Se eu me mexer, será doloroso, se eu respirar mais fundo será doloroso, se eu pensar demais será doloroso.
Nunca estive tão perto de desistir.
Jennie, Jisoo, Rosé e Joohyun me arrastaram para seus ressentimentos, para os seus assuntos não ditos, para as suas mortes mal escondidas e agora estou sem forças para pensar em lutar. Não quero lutar, quero que tudo acabe, mas Jisoo chuta uma corda embebida de sangue em minha direção.
— Se amarre — ela ordena, com a arma apontada para mim.
Semicerro os olhos, fitando-a. Metade do rosto de Jisoo está iluminado pela luz que entra por detrás dela, pela porta de vidro que separa a cozinha e o quintal. Ela não parece melhor que eu, o olho inchado não abre, o corpo está curvado como se tivesse quebrado algo, mas ainda assim, está em vantagem por causa da arma. Atrás de mim, o corpo de Irene está imóvel, não consigo vê-la totalmente, mas sinto o sangue escorrer até mim, empossando as minhas mãos, o chão e as cordas.
— O que você está esperando!? — Jisoo mira a arma na minha testa. — Se amarre logo!
Minha respiração está alta, ressoa e ecoa pela cozinha silenciosa, há algo pingando, talvez uma torneira mal encaixada, talvez seja algo da minha cabeça, um gatilho para uma memória mais antiga, é, é algo assim, já sinto a nostalgia desse ato, estou me amarrando, a corda passa pelas minhas pernas, o nó é do tipo marinheiro, o mesmo nó que meu pai usava, a corda parece a mesma, talvez a cozinha também, a cozinha é a mesma, e a bancada de mármore, a mesma, a mesma... está cheia daquele pozinho branco que eles capturam com o nariz, está cheio daqueles homens, os mais altos e os mais baixos também. Jisoo não está aqui, é o meu pai, ele está mais magro, os ossos saltam através da blusa encardida, ele não tem uma arma, mas tem uma faca, uma faca com o cabo enferrujado, ele aponta para mim e diz "se amarre, docinho" estou me amarrando, estou? Eles estão esperando, estão esperando que e me amarre, mas minhas mãos são pequenas e não consigo puxar o nó, eles estão impacientes, muito impacientes, meu coração bate mais forte, sei porque eles me querer amarrada, eu sei o que vão fazer comigo. Então, ouço um sussurro familiar dentro da minha própria cabeça, "deixe comigo" ela diz "eu estou aqui", "nós vamos ficar bem" eu acredito nela, acredito que ela sabe nos proteger. Podemos fazer isso juntas.
— Lalisa — sussurro inaudível. — Lalisa... — chamo de novo.
Jisoo perde a paciência e me dá um chute.
— Eu não vou pedir de novo, Lisa!
Seguro a corda com força, mas não me amarro.
— Merda! — Ela acerta a minha cabeça com o cabo da arma, sou jogada para trás, para cima do corpo de Irene. A ponta da estrela do distintivo corta a minha boca.
Irene ainda está respirando, fraca, mas ainda está.
Ouço o arrastar dos passos de Jisoo até mim e fecho os olhos. O espaço que nos distancia é pouco, mas ela não consegue andar muito bem, sua perna está se arrastando. Eu espero o momento certo. Lalisa está aqui dentro em algum lugar, o reflexo que tive na briga com Rosé foi puramente dela. Jisoo se aproxima o suficiente, não posso ver, mas posso sentir o arrastar da sua perna ruim e a respiração desregulada perto de mim, recheada de palavrões sussurrados. Ela cutuca a minha cintura com o cano do revólver.
É agora ou nunca.
Chuto sua perna. Jisoo solta um grito estridente e cambaleia. Na verdade, ela quase se dobra ao meio, já que o seu corpo não encontrou lugar para se sustentar. A arma cai e se arrasta para debaixo do fogão.
Jisoo e eu nos entreolhamos, arfantes, e vamos até o revolver. Jisoo está na frente, por isso, agarro a sua perna ruim e aperto onde o sangue empapa a calça, ela solta outro grito angustiado e chuta a minha cara. Minha cabeça ricocheteia para trás e o sangue jorra pelo meu nariz.
Jisoo está mais perto, tento me levantar sem fazer força na parte superior do corpo, mas a dor da faca em minha barriga me obriga a ir para o chão novamente e, de joelhos, me arrasto até Jisoo.
O que se segue é uma bagunça de tapas e grunhidos, puxões de cabelo e gritos. Nossas mãos estão debaixo do fogão, a minha tateia o chão em meio ao sangue e sujeira, enquanto Jisoo pressiona o meu rosto com a mão livre.
Finalmente, toco no cabo metálico da arma, os meus dedos escorregadios buscam atrito o suficiente para agarrá-la. Olho para Jisoo e sua mão também está perto de pegá-la. Eu não posso deixar, não posso vacilar novamente.
Estamos engalfinhadas como gatos de rua até que tenho a ideia que me salva, recolho minha mão, a mão que está próxima da arma, e enfio o polegar no olho inchado de Jisoo. Meu dedo se afunda na pele inchada, ela se debate para se afastar, mas afundo o polegar um pouco mais e abro um buraco em seu olho.
Jisoo rola para o lado, tentando conter o sangue que começa a jorrar, enquanto puxo a arma debaixo do fogão. Pego-a em minha mão como se fosse ouro e miro em Jisoo, mesmo que ela esteja ocupada com o olho perfurado para pensar em mim apontando uma arma para a sua cabeça. A adrenalina percorre as minhas veias, minha respiração sai em jatos rápidos e intensos, mas são abafados pelos gritos dela. Posso imaginar a dor que Jisoo está sentindo, mas não tenho pena alguma.
Até que olho para baixo, a parte inferior do meu corpo está embebida de sangue e a faca que estava na minha barriga, no chão.
— Ah... merda... — O pano que enrolei em volta do corte está tão molhado que posso torcê-lo. — Merda...
Jisoo aperta o olho perfurado, ela está em volta do sangue que não sei se é meu ou dela. Preciso fazer algo antes de perder a consciência, amarro Jisoo com a corda e a fixo no balcão, prendendo-a.
— Se pensar em se soltar, a última bala vai parar na sua cabeça — aviso.
— Você ainda não percebeu? — ela gargalha. — Todas nós vamos morrer, porra!
A aparência de Jisoo está grotesca, o olho perfurado tem a espessura exata do meu dedo, o sangue escuro se apossa pelas laterais, junto à pele e a massa branca. Ela era a garota bonita com os lábios em formato de coração, era a garota de Rosé.
Me levanto com dificuldade. Talvez Jisoo esteja certa no fim das contas e todas nós vamos morrer, porque agora, agora que a adrenalina foi embora, perdi sangue demais e provavelmente algum órgão importante está parando de funcionar. Rosé está desacordada no Colônia, Irene levou dois tiros e é difícil saber o que em Jisoo não está machucado. Todas vamos morrer, só falta uma.
— Onde está Jennie? — pergunto.
Jisoo tomba a cabeça para o lado, dando de ombros.
— Não sei... — A boca dela perdeu toda a coloração, seu rosto parece uma máscara de borracha.
Uma tosse preenche a cozinha.
— No opala — Joohyun sussurra. — Jennie está no opala... nos fundos...
A policial se senta, um furo na coxa esquerda e o outro abaixo dos seios vaza sangue. O piso da cozinha está submerso em sangue, como um verdadeiro abatedouro. Nós estamos bem mal, nós três, como monstros de histórias infantis.
— Jennie está no opala. — Joohyun fala novamente, arfante. — A chave está no bolso de trás do jeans de Jisoo... era o que eu estava tentando pegar antes de você atirar em mim, Lisa.
Jisoo ri.
— Você sempre foi tão rancorosa, Irene... foram só dois tirozinhos... poderia ser pior, ela poderia furar o seu olho com o dedão. — Jisoo aponta para o próprio olho, gargalhando.
Entrego a arma para Irene.
— Vigie ela, eu busco Jennie.
Me arrasto pelo quintal, passando pelas margaridas adormecidas, deixando um rastro de sangue pelo caminho. O que aconteceu a partir daí foi um redemoinho de lembranças confusas. Comecei a sentir frio, muito frio, e a sirene de vários carros de polícia se aproximaram, mas eu não sabia se eram reais ou algum delírio proporcionado pela febre. Me joguei na lataria do opala, nos fundos da casa, e demorei o que pareceu horas para encaixar a chave no porta-malas. Jennie me impediu de cair em algum ponto, seus braços apertaram o meu corpo e sua voz chegou ao meu ouvido.
Acho que foi um delírio, porque ela estava conversando comigo, não com a Lalisa. Ela estava preocupada comigo, estava preocupada e pedindo para que eu não dormisse. Os meus olhos marejaram. Jennie me carregou até a cozinha novamente, mas me deixou do lado de fora. Graças a porta de vidro, vi o momento exato em que ela tomou a arma de Irene e deu três tiros no rosto de Jisoo.
Sangue respingou no balcão da cozinha. Joohyun gritou.
Então, eu apaguei.
(...)
O sol nasce preguiçoso entre as colinas verdes, despontando raios de luz entre as casas adormecidas. Há velhinhos levando o lixo para fora e buscando o jornal, mas também há quatro garotas na calçada. Elas estão cobertas de glitter, rindo do vento e se escorando umas nas outras. É mágico como estão genuinamente felizes e não ligam para os olhares enviesados que recebem dos moradores mais velhos. Seus coturnos sujos de terra deixam um rastro à medida que se arrastam pelo gramado, suas roupas amassadas e suas faces sujas evidenciam o quanto se divertiram durante a noite.
Levo a caneca de café aos lábios, sorvendo uma mínima quantidade da bebida amarga demais, e olho para Joohyun. Ela pára ao meu lado, segurando a filha nos braços. A pequena está dormindo, os bracinhos gordos ao redor dos ombros da mãe e os cabelos presos com dois prendedores rosa. Joohyun observa as quatro garotas sem ao menos piscar.
— Isso te lembra alguma coisa? — pergunto.
Agora, duas meninas dançam enquanto as outras duas gargalham. Joohyun pisca rapidamente.
— O que você perguntou?
Sorrio triste, bebericando mais um pouco do café.
— Nada.
Observamos as quatro garotas até elas virarem a rua, provavelmente em direção as repúblicas femininas.
Taegon continua a mesma, uma cidade no meio de muita terra batida e rodovias federais, rodeada de serras verdes no verão e salpicadas de branco no inverno. Você ainda vai encontrar um bar a cada esquina, adolescentes com suas canecas de cerveja para o alto, promíscuos e felizes, beijando, transando, cantando a plenos pulmões — ou o que resta dos pulmões afetados pelo cigarro —. Garotas de minissaias, meias arrastão, cabelos armados e óculos coloridos na ponta do nariz. Garotos autoconfiantes, com calças cintura alta enquanto passam a mão no topete bem arrumado para parecer desarrumado. Taegon ainda está cheia deles, transbordam nos barzinhos locais, nas repúblicas e nos becos escuros, no rosto cheio de glitter e Bon Jovi no último volume na rádio.
Taegon ainda esconde os seus segredos obscuros, o Colônia e as mulheres presas lá, as que vivem dopadas até que a morte resolva ser gentil com elas. Todos sabem que os jovens estão tentando arduamente morrer a cada pico de heroína. Sim, eles sabem. Taegon continua a mesma, um paraíso artificial.
Fito as minhas mãos, os nódulos esbranquiçados segurando a caneca de café, e ouço os passos de Jennie, o ressoar calmo dos seus pés no chão. Ela pára ao meu lado, com uma caneca de café em mãos. Os jeans continuam desgastados, a blusa de alguma banda de rock rasgada nas laterais e duas mechas platinadas ao redor do rosto.
— Obrigada pelo café péssimo, Jennie Kim — agradeço, levantando a caneca com a bebida forte demais.
— Ela quer nos matar de azia — murmurou Joohyun.
— Talvez esse seja o plano — concluo. — Nos matar para sairmos da sua casa.
Jennie franze as sobrancelhas em um falso ressentimento.
— Vocês nem deviam estar tomando café! — Ela pega a caneca da minha mão. — Uma está com metade da barriga dilacerada e a outra quase perdeu o pulmão!
Pego a caneca novamente de Jennie, brindando com Joohyun.
— A vida é curta demais para seguir prescrições médicas.
Jennie olha para nós duas com uma careta e tenta fazer um comentário ácido, mas sei que está feliz demais para concluí-lo.
— Eu vou colocar Yejin na cama, já volto. — Joohyun olha para Jennie antes de sair, como se ordenasse algo.
Jennie a observa com os olhos arregalados, nervosa, e enfia as mãos no bolso da calça. Aperto a caneca com mais força, a nossa proximidade está mais aparente agora, nós duas em frente a janela, observando nada acontecer por um tempo. É a primeira vez que ficamos sozinhas.
Jennie pigarreia.
— Como anda a recuperação?
Suspiro.
— Bem... quem precisa do fígado, não é mesmo?
Jennie arregala os olhos.
— É brincadeira — falo rápido. — Eu só... só estava...
— Ah, claro. — Ela maneia a cabeça. — Claro, claro...
— Meu fígado está bem. O médico disse que ele se regenera rápido.
— Legal. — Jennie faz uma careta. — ....Acho.
Voltamos a observar a rua pacata, mas dessa vez, nem o canto dos pássaros consegue amenizar o silêncio estranho que paira sobre nós. Jennie suspira alto, eu engulo o seco.
— Me lembro pouco do que aconteceu aquele dia — confesso. — Depois que você... que você atirou em Jisoo.
Jennie olha para baixo.
— Sei que você pensa que foi um erro ter matado Jisoo. — Ela sussurra. — Mas eu a conhecia por tempo o suficiente para saber que Jisoo nunca seria responsabilizada pelo que fez aqueles garotos. Eu queria ter certeza que ela não sairia impune.
— E valeu a pena? — pergunto. — Valeu a pena deixá-la levar uma parte sua?
Jennie me olhou, séria.
— Jisoo levou uma parte minha há dois anos atrás, quando tirou tudo de mim e me prendeu em um manicômio, Lisa.
— Me desculpe, eu...
— Não tem o que se desculpar. — ela responde rápido. — Está tudo bem agora.
Nos encaramos sem dizer uma palavra. Por um momento, acho que Jennie vai tomar o meu rosto e chamar por Lalisa, mas ela só acaricia as minhas bochechas. Os raios de sol tocam o seu rosto de uma forma tão gentil, é quase tão gentil quanto seus dedos em mim.
— Eu espero que possamos... — Deixo a frase no ar, sem saber como completá-la.
"Espero que possamos recomeçar" eu queria dizer. "Espero que você possa me dar uma segunda primeira chance". Jennie sorri, entendendo onde quero chegar, e repousa os braços no beiral da janela.
— Você vem sempre por aqui, gatinha...?
Gargalhei, imitando-a.
— Sou nova na cidade.
Ela arfa, supresa.
— Que inusitado! Acho que já te vi em algum lugar!
Tapo a boca com as mãos, também fingindo surpresa.
— Sério? Você pode ter visto a minha segunda personalidade! — exclamo. — Ela pode ser a mais divertida, mas eu sou a mais bonita.
Gargalhamos até perder o fôlego, mas Jennie quer seguir o teatro até o fim e empurra os meus ombros.
— Prazer, Jennie Kim, ex-louca, ex-assassina em série, ex-traficante de drogas... — Ela solta um riso irônico. — Desculpe, não sei como fazer isso, todos os meus amigos estão mortos ou tentaram me matar.
Aperto a mão dela.
— Prazer, Lisa Manoban, a psicóloga com sérios problemas mentais. Também não sei como fazer isso, mas acho que podemos aprender juntas.
Voltamos a gargalhar por minutos seguidos, sem um motivo aparente, sem realmente achar nada do que falamos engraçado. Era um riso de alívio que encheu nossos olhos de lágrimas, mas, assim como o sol que depois de meses aqueceu a neve restante de um inverno rigoroso, o riso era um prenúncio de algo bom.
Joohyun apareceu na porta da sala.
— A piada deve estar muito boa, mas o julgamento vai começar. — Ela decide dizer.
Sigo Jennie com um bolo de ansiedade se formando no peito, sentamos lado a lado, nossas mãos próximas, separadas pelo controle remoto da TV. Joohyun permanece de pé, sua expressão é a da policial que conheci meses antes, mesmo que a substituição da farda pelas roupas casuais cause uma confusão em minha mente. Estou inquieta e com medo. Será assim para sempre, mesmo com o passar dos anos, mesmo que os remédios façam efeito e Lalisa nunca mais apareça, eu ainda irei dormir com medo de perder o controle no dia seguinte.
O julgamento começa, metade do país está acompanhando o destino final da garota loira e bonita, que ajudou a "melhor amiga", agora morta, a matar sete garotos entre o período de 1974 e 1985. Rosé senta no banco do réu, as mãos algemadas estão repousadas na mesa, as unhas bem feitas pintadas de rosa claro. Rosé está inteira rosa claro, as bochechas, os lábios, a pequena presilha em seu cabelo e os brincos pequenos.
— Ela acha mesmo que vai convencer alguém que é uma boa garota? — Jennie bufa, ao meu lado.
— Não subestime a capacidade dos homens de ceder a uma bela garota — Joohyun sussurra. — Não foi assim que ela chamou atenção das vítimas? Sendo uma linda garota em apuros?
Observo os advogados, o juiz e o próprio promotor do caso, todos estão orbitando em volta de Rosé, ávidos para tirá-la do aperto daquelas algemas.
— Ela vai ser inocentada. — Suspiro, triste. — De uma coisa Jisoo tinha razão, homens são facilmente manipuláveis.
Nenhuma de nós disse mais nada, mas eu estava certa no fim das contas.
Rosé saiu do tribunal pela porta da frente.
————-
Obrigada a todos que chegaram até aqui, que comentaram, favoritaram e acompanharam essa história. Mesmo com os altos e baixos, estou muito feliz em concluir Paraíso Artificial. Obrigada novamente e até mais!
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