(XXII). O diabo
"Você não pode brincar de Deus sem estar familiarizado com o Diabo." — Wesworld
Jennie Kim
[...]
Lembre-se de um dia ruim, mas não um dia comum e tedioso, em que você não encontra nada para fazer e sente um vazio incômodo no peito, ou um dia em particular que seus planos saíram do controle, onde você chegou a pensar que o mundo estava conspirando contra você. Não, não é desse dia que estou me referindo, mas sim, um dia onde você perdeu um ente querido, um dia em que descobriu uma traição, um dia onde você só quis morrer, onde a luz no fim do túnel não apareceu, onde palavras de conforto não eram o suficiente, onde chorar não causou nada a não ser um nariz entupido, olhos inchados e um sentimento de impotência. E então, você culpa os céus, a terra, as pessoas, e culpa a si mesmo por ter acabado assim.
Estou vivendo esse dia há quase dois anos.
As semanas em que passei totalmente dopada, fraca demais para receber comida, para ir ao banheiro ou para sair da cama, fitando o teto amarelado em meio ao meu próprio vômito, urina e baba, foram as melhores semanas, por incrível que pareça. Nessas semanas eu não tinha forças para pensar em nada, mal sabia o meu nome ou o porquê estava no Colônia, nessas semanas, eu apenas existia. Era como viver numa bolha anestésica, como ser um objeto inanimado. Mas, nas semanas que eles diminuíram os remédios, eram as piores. Eu pairava naquela redoma nem sóbria e nem tão chapada, onde passei a ter consciência do meu corpo, da minha sujeira, de onde eu estava e o porquê eu estava ali. Eu tinha consciência das vozes, das pessoas ao meu redor, da minha dor, mas não tinha como sair ou me mexer. Essas eram as piores semanas.
Eu estava em uma dessas semanas quando vi Lalisa pela primeira vez, depois de ser presa.
Ah, Lalisa. Ela parecia um sonho levemente delirante, com calças boca de sino e cabelos cortados acima dos ombros. Eu achei que fosse coisa da minha cabeça, mas Jisoo, ao lado dela, me deu a certeza. Aquela não era uma apresentação formal de boas vindas ao pior emprego que uma recém formada de psicologia poderia encontrar, não, definitivamente não era. Aquele foi um aviso: "Eu voltei a matar e, dessa vez, ela vai ser a culpada."
Ficar semanas chapada esperando que a morte tivesse pena de mim não era mais uma opção, eu precisava avisá-la sobre Jisoo. Quando nenhuma das minhas tentativas funcionaram, tomei medidas desesperadas: ataquei minha psiquiatra. Lalisa apareceu, ela olhou no fundo dos meus olhos e me fez perceber que não estava lá há algum tempo. Era Lisa. Escrevi o nome de Irene no papel, pois era a única pessoa em que ela poderia confiar, a única pessoa que poderia impedir Rosé e Jisoo. Os dias passaram em uma constante irreversível, até ela aparecer.
Jisoo mandou os enfermeiros irem embora, havia dois, eles eram fortes o bastante para quebrar o meu pescoço em um estalo, se fosse preciso. Eram a minha sombra depois que ataquei a psiquiatra, e a psiquiatra antes dela. Jisoo esperou que os enfermeiros fossem embora e que a porta fosse fechada para se aproximar. Ela não tinha mudado nada durante os últimos meses, permanecia com o mesmo semblante prestativo e tímido que acreditei durante toda a vida. O rosto dócil e delicado, a voz aveludada e bonita. Jisoo poderia convencer qualquer um a fazer o que ela quisesse.
— Sua coragem é louvável — murmurei, em um esforço descomunal para ficar sentada.
Jisoo se aproximou a passadas lentas, o sol de fim de tarde iluminava seu semblante risonho.
— Eu confio nas algemas, estão bem presas. — Ela agarrou uma das correntes e puxou, o barulho do metal tilintando preencheu o quarto. — Como você está, Jennie?
Sorri, meus lábios rachados se repuxam.
— Não é visível, doutora?
Jisoo se sentou ao meu lado, arrastando uma mecha do meu cabelo para trás da orelha.
— Para quem não conseguia pronunciar duas palavras, a ironia é um ótimo sinal de melhora.
Me joguei para cima dela, mas as algemas me fizeram voltar ao mesmo lugar.
— O que você fez com a Lalisa? — rugi.
Jisoo suspirou e levou as mãos até os meus cabelos. Os dedos desembaraçaram os fios úmidos.
— Lalisa? Eu não fiz nada, querida. Ela não está no comando há um tempo. Rosé cuidou bem disso. Estou aqui para falar de Jungkook.
Apertei as correntes entre os dedos.
— O que voc...
— Se acalme. Eu estava disposta a deixá-lo em paz, como você queria, lembra? Mas ele tinha que se meter onde não é chamado... tsc. Ele viu Rosé pegar um garoto, entende?
— Rosé pegar um garoto... — repeti, sentindo minha boca mais seca que o normal. Os dedos de Jisoo eram leves em meus cabelos, repartindo-os em três mechas grandes. Um mal estar fez meu estômago embrulhar. — O que esse garoto fez de errado dessa vez? Sobreviveu a um incêndio? Esqueceu de amarrar o cadarço do tênis? Ou você desistiu de inventar desculpas para matar garotos inocentes?
O aperto nos meus cabelos se intensificou, como a voz de Jisoo, que tomou um ar mais grave.
— Não preciso de motivos para matar garotos, além do fato deles existirem.
Um som débil preencheu o quarto, percebi que vinha de mim, era uma risada seca.
— Você deve se achar muito inteligente... — Molhei os lábios rachados, sentindo o leve ardor das feridas. — Deve achar que nunca vai ser pega... mas, dessa vez, não vai ser tão fácil, Jisoo. Lisa não vai ser presa por um crime que ela não cometeu só porque você não consegue parar de ser uma psicopata filha da puta.
Jisoo suspirou, dramática.
— É o que veremos... e, bem, eu realmente tentei não matar novamente, caso queira saber. Nos últimos tempos, me contentei aumentando a dosagem de um paciente aqui... desligando o respirador de outro lá... mas não é a mesma sensação. De uma coisa Lalisa tinha razão, é mais gostoso quando o sangue está quente nas minhas mãos.
Ela passou os dedos lentamente pela trança que acabou de fazer em meu cabelo. Segurei o impulso de atacá-la.
— Você é uma...
— Maluca, psicopata, filha da puta, vadia assassina...? Troca o repertório, Jennie, já está ficando chato. Voltando ao assunto Jungkook, ele ainda está vivo. Rosé está cuidando dele.
Meus olhos se encheram d'água, ele ainda estava vivo, ainda havia uma chance. Funguei, segurando o choro.
— Solta ele, Jisoo, por favor, por favor... — Arfei. — Eu faço tudo que você quiser, eu faço...
— Mudou de tática, Jennie? Implorar não vai adiantar. — Ela amarrou a ponta da trança com um elástico. — Ele quer se despedir da namorada, não é fofo? Vou fazer uma troca. Ele liga para a namorada para se despedir, mas em compensação, terá que falar para ela que é Lalisa quem está matando novamente... Ah, você sabe aonde essa informação vai chegar, não é?
Havia tempos em que eu não chorava, não conscientemente, mas agora meu rosto estava molhado. As lágrimas não paravam de rolar. Apertei as algemas ao redor do meu pulso, sentindo-as pressionar as feridas antigas.
— Irene — respondi, baixinho.
— Ela vai me ajudar sem saber e... Own, você está chorando? Não fique assim, Jennie-ah, por respeito ao nosso trato, vou fazer com que ele não sinta dor, okay? Jungkook vai morrer de uma forma...
— Não toque em um fio de cabelo dele! — berrei. A voz saiu potente, arranhando a minha garganta, mas levou o resto das minhas forças. Jisoo esperou que me acalmasse, acariciando minhas costas.
— Ele já aceitou que vai morrer e gostaria que você soubesse que sente muito por não ter acreditado na sua inocência desde o princípio.
Abracei as pernas como pude, as algemas tilintaram. O osso do fêmur saltou pela minha pele amarelada. Respirar era difícil agora, enxergar era impossível.
Jisoo pressionou os lábios na minha bochecha.
— Já encontraram o corpo do primeiro garoto, os policiais estarão aqui há qualquer momento. Rosé e eu precisamos ser rápidas, certo?
Aquele foi o fim do dia, quando a dor é tão forte que separa as pessoas que continuam lutando das que desistem. Daquelas que veem a luz no fim do túnel e decidem transformar um dia ruim em um aprendizado, daquelas que se permitem ser consumidas por eles. Eu teria desistido se Lisa não tivesse aparecido, se Lalisa não tivesse emergido.
Com os dois policiais caídos no chão, — um deles soltando pequenos espaços enquanto um fio de sangue jorrava do seu olho. Lalisa era um misto de confusão e raiva, seu peito subia e descia descompassado e sua respiração estava arfante. Era nítido como elas eram diferentes, Lalisa e Lisa, Rosé conseguia diferenciá-las facilmente porque o olhar de Lalisa era agressivo, era como se ela fosse um bicho que vivesse preso. O de Lisa era suave, era como se ela estivesse disposta a ouvir uma segunda versão da história.
Me joguei nos braços de Lalisa com uma força que nos fez cambalear, ela me segurou firmemente.
— É melhor me contar que porra aconteceu durante todo esse tempo, Jennie — Lalisa pediu em um balbuciar irritado.
— Você tinha razão... — sussurrei em seu ouvido, arfante. — Jisoo e Rosé estão matando de novo... e dessa vez, Lisa será a culpada por tudo.
Foi o que ela precisou ouvir. Eu queria explicar o que aconteceu durante esses meses, queria me sentar e olhar nos olhos dela enquanto contava todas as sensações e medos que me atacaram, mas não tínhamos tempo. Lalisa me deu o jaleco que estava vestindo e saímos do quarto, juntas. O Colônia estava abarrotado de policiais, mas não podíamos sair, não sem Jisoo.
A sala dela estava vazia, como supus que estaria, mas algo no aspecto extremamente organizados dos papéis, canetas e pastas, me fez pensar que Jisoo sequer pisou ali. Lalisa passou pela mesa de mogno e empurrou um pote de canetas no chão, de propósito.
— Então Jungkook está morto? — ela perguntou.
Fechei a porta atrás de nós. O cheiro de Lisa estava impregnado no jaleco, é um cheiro que me remete a lavanda. O cheiro de Lalisa estava impregnado em minhas lembranças, uma mistura de suor e cerveja. Maneei a cabeça em negação.
— Não sei, mas não temos muito tempo.
Lalisa estampou um lapso de preocupação.
— E todas as provas colocam Lisa como a culpada?
Maneei a cabeça de novo, dessa vez, afirmando.
— Merda — ela praguejou, derrubando uma pasta no chão. — Onde essa cadela maldita pode estar? Não podemos andar pelos corredores esperando encontrá-la, nós...
Semicerrei os olhos, fitando a bagunça de papéis que vazaram da pasta, no chão.
— O que é isso? — Me agachei em frente aos papéis, passando os dedos trêmulos pelas páginas rasgadas dos jornais.
Lalisa se juntou a mim. Alguns antigos estavam amarelados, outros eram mais recentes. Três deles se destacavam, grafados em tinta vermelha: a reportagem sobre o incêndio na escola, onde aparecia uma gravura da quadra queimada, uma sobre a minha casa e como os corpos foram encontrados, e outra sobre o Festival Divine e porque decidiram cancelar as próximas edições, graças ao massacre.
Lalisa pegou uma das reportagem e enfiou no bolso.
— Ela está revisitando os lugares do primeiro massacre. O corpo de Baekhyun foi encontrado no porão da sua casa, então há dois lugares onde Jungkook pode estar: na quadra da escola ou no local onde aconteceu o Divine.
Maneei a cabeça, confusa.
— Como você sabe de tudo isso?
— Agora consigo saber o que Lisa sabe... — Ela apontou para a própria testa. — Acho que estamos mais interligadas do que antes, antes... antes eu não conseguia fazer isso. Estamos nos fundindo.
Lalisa me lançou um sorriso triste, e um gosto amargo tomou a minha boca. Era a forma que ela encontrou para dizer "talvez eu não dure por muito tempo." Me arrastei até ela e toquei gentilmente meus lábios nos seus. A respiração de Lalisa se mesclou à minha.
— Ligue para Irene — sussurrei. — Peça para que ela venha até o Colônia. Enquanto isso...
— Enquanto isso, vou atrás de Jungkook — ela concluiu, passando o polegar sobre minhas bochechas. — Tem certeza que Irene vai te ajudar?
Tentei mostrar os resquícios de confiança que existiam em mim, olhando dentro dos olhos de Lalisa.
— Tenho absoluta certeza. Vamos atrás de Jisoo, vamos terminar essa história de uma vez por todas.— respondi. — E comece a procurar onde tudo começou...
— Eu sei, no Divine — Lalisa interrompeu. — Ele vai estar no Divine.
Nos encaramos uma última vez, antes dela se levantar e rumar até a porta. Se eu soubesse que aquela seria a última vez, eu teria prolongado o beijo, teria ficado um tempo a mais dentro do seu abraço.
Até hoje eu não sei se Lalisa encontrou o corpo de Jungkook, se caminhou até o Divine e acabou se perdendo na neve... Lisa me contou que acordou lá, acordou cheia de sangue, com a reportagem do incêndio na escola no bolso.
O corpo de Jungkook foi encontrado horas antes, na quadra abandonada da antiga escola.
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