(XX). O início de como tudo acaba
"O inimigo mais perigoso é aquele que ninguém teme". — Dan Brown
Lalisa Manoban (Fevereiro de 1984)
◦◦◦
— Jennie! — gritei, mas ela ao menos olhou para trás.
O dia estava abafado, era como uma manta de calor me abraçando, fazendo brotar suor em todas as partes do meu corpo. Era difícil respirar, minhas pernas doíam, os cascalhos na calçada me faziam deslizar pelo concreto. Jennie estava a bons passos à frente, mas seus pés se embolaram e ela desabou no chão.
A alcancei, arfante.
— O que aconteceu!? — perguntei, levantando-a com dificuldade.
Jennie passou a mão pelo rosto, tirando os cabelos grudados de suor.
— Eu não sei... mas estou prestes a descobrir — ela sussurrou, sustentando-se em mim.
Corremos o que faltava para chegar a casa dela, uma construção de dois andares, feita de alvenaria e que precisava de uma demão de tinta, um jardim novo e uma garagem decente. Jennie estava arfante, apoiando-se pelos joelhos, respirando espaçadamente. Nada na fachada da casa indicava que algo estava errado, talvez o silêncio, o silêncio demasiado onde nem mesmo os pássaros ousaram transpor.
Toquei em seu ombro, aflita, sem saber quem xingar ou em quem bater.
Jennie Kim era boa demais, era esperançosa apesar de viver em uma cidade como Taegon. Jennie se apegava às pessoas, se agarrava a elas com uma dependência tão forte que era visível que se daria mal por isso. Ela não podia ser tão inocente, não podia. Convivi minha infância inteira com traficantes para saber o que acontecia quando alguém os devia. Um deles chegou a enfiar um cabo de vassoura em meu pai, naquele lugar — esse mesmo que vocês estão pensando — quando eu tinha cinco anos de idade. Aos dez anos, um deles me pegou na escola e até hoje esse dia é um dos únicos que quero que Lisa nunca se lembre.
Jennie era uma traficante, mas não faria mal a ninguém, nem se a pessoa a devesse muito dinheiro.
Rosé abriu a porta de supetão, estava coberta de sangue seco, dando leves tremeliques.
— Rosé? — sussurrei, confusa.
Aquela vadia idiota estava coberta de sangue seco, então algo de muito errado deve ter acontecido. Eu não sabia o que era, mas estava com tanta raiva que poderia matá-la ali mesmo, vendo-a chorar copiosamente.
— Me desculpe, Jennie... — Ela passou as mãos sujas de sangue na cabeça. — As coisas acabaram saindo do controle.
Jennie a empurrou para dentro da casa, eu fechei a porta em um baque.
A sala estava uma bagunça, móveis revirados e sujos de sangue, paredes sujas de terra e coisas queimadas. Passamos só um dia fora e aquilo aconteceu a casa.
Jennie agarrou os braços de Rosé, balançando-a loucamente.
— Você precisa me dizer o que aconteceu! Onde está Taehyung!?
— Não era para ser assim! — Rosé berrou de volta. — Eu achei que ela queria me ver, achei... achei que ela tivesse me chamado pra gente.. pra gente se reencontrar... achei... V-voc-cê p-precisa fazer algum-ma coisa...
Era claro que Jennie faria alguma coisa, Jennie sempre limpava bagunças que não eram dela.
Olhei para o nosso redor e vi o caminho de sangue que saía da sala. Rosé ainda chorava intensamente e Jennie a balançava como uma boneca de pano, tentando fazê-la explicar o que houve. As deixei para trás e segui o rastro de sangue.
Eu já vi e presenciei muitas coisas na vida, muitas coisas ruins, quando matei os meus pais e nos tirei da Tailândia imaginei que não lidaria com nada parecido. Lisa começou a ter uma vida boa, a ter amigos, a estudar, e a não precisar mais de mim. Eu sumiria com o passar do tempo, ficaria perdida dentro da cabeça dela até não restar mais nada. Era o que eu pensava.
O cheiro forte foi a primeira coisa que reconheci, cheiro de sangue velho, de carne queimada, de urina e fezes. Era tão forte que tapei o nariz, respirando pela boca.
Parei em frente ao porão, uma poça de sangue coagulado era absorvida pelo chão de taco. As entreliças da porta estavam sujas, a viscosidade vermelha descendo pelo metal, sujando a parede ao redor... olhei para os lados, estranhamente receosa do que encontraria lá dentro, e abri a porta.
Dei alguns passos para trás, tossindo. O cheiro ficou mais forte, me acertou como um soco, meu estômago vazio revirou de nojo e precisei segurar um vômito. As escadas que levavam para baixo também estavam forradas de sangue, não havia nem uma parte da madeira que não estivesse suja. Uma lâmpada pêndula balançava de lá para cá, a luz amarelada iluminando porcamente o que pensei ser porcos, como num frigorífico, presos em ganchos no teto. Tapei metade do rosto com a barra da blusa, sentindo o cheiro de morte misturado ao meu suor, e desci as escadas. O som dos meus pés afundando no sangue era como pisar em uma esponja molhada. O porão era escuro e abafado, não havia nenhuma janela.
Ao chegar no fim dos degraus, percebi que as coisas penduradas por ganchos no teto, não eram porcos, eram homens, cinco deles, pendurados de ponta cabeça, totalmente nus e abertos.
Meu corpo inteiro se arrepiou, aquele arrepio que causava náuseas. Meus músculos se paralisaram, meus pés fincaram no chão sujo e meus olhos lacrimejaram. Era um abatedouro humano. Os corpos foram limpos e pendurados, os cabelos raspados. Uma abertura em "Y" começava no peito e terminava no quadril, os órgãos foram retirados, sobrando um buraco viscoso onde deveria haver vida. O pênis foi arrancado, era apenas ossos aparentes e carne picotada, pingando sangue.
A faces eram o pior aspecto, retorcidos em dor. Os olhos estavam abertos, esbugalhados, injetados de sangue. A região da boca estava enegrecida, queimada, e um punhal foi cravado em suas testas. Eles se mexiam sutilmente, como se houvesse vento para balançá-los.
Minha primeira reação lógica foi pensar em fugir, levar Lisa e Jennie para longe dali, para longe de quem quer que tenha feito aquilo aqueles homens, mas meus joelhos cederam e eu caí no chão, o vômito saiu de uma só vez. Cuspi o gosto amargo, sentindo a minha garganta doer. Eu levaria Jennie embora, nem se precisasse tirá-la dali a força.
Me levantei, zonza, enjoada e horrorizada o suficiente para quem chegou um dia a pensar que não se surpreenderia mais com a maldade humana. Me sustentei porcamente na parede de madeira. Era impossível respirar fundo ali, era impossível olhar para outro lugar que não fosse os corpos.
Até que percebi o silêncio.
Meus pensamentos pararam por um segundo, por que tudo estava tão silencioso? Não havia mais o choro de Rosé, os gritos de Jennie, era só o puro e angustiante silêncio.
Girei nos calcanhares e algo me acertou na cabeça.
Forte, rápido, e meu corpo desmoronou no mesmo instante.
(...)
Havia um mecanismo em mim e em Lisa que agia como a engrenagem de uma máquina.
Ele sabia quando ela estava em perigo, havia algo intrínseco em momentos como esse, onde o coração batia mais rápido e a pupila se dilatava, a adrenalina inundava as veias e o sangue corria rápido. A respiração se tornava arfante, o peito subia e descia depressa, acompanhando as lufadas de ar.
Era o nosso pai que ligava esse mecanismo a maioria das vezes, ele só aparecia para nos infligir algum tipo de dor, então era natural que eu tomasse o controle nesses momentos. Eu dormia segurando o choro, planejando a morte dele, fazendo curativos nos machucados... dormia e, ao acordar, Lisa estava no controle novamente. Por isso, sempre tive medo de dormir e ela retomar o controle. Mas algo nesse mecanismo soube que Lisa não suportaria lidar com isso, de modo que quando abri os olhos, ainda estava naquele porão.
Tombei a cabeça para o lado, sentindo-a pesada, e tentei mover as pernas, mas elas foram atadas ao redor da cadeira. Eu estava amarrada. Meu corpo estalou no mínimo esforço que fiz para me mover.
Os pés de um dos cadáveres tocava levemente os meus cabelos.
— Olha só quem acordou! Bom dia, flor do dia!
Pisquei algumas vezes, fitando a mulher à minha frente.
Demorei segundos para reconhecê-la, era a doutora que chegou junto a Rosé, a fornecedora de Jennie. Ela balançou a faca para lá e pra cá, o rosto suado e petrificado em um sorriso maníaco.
— Jisoo, não ouse! — A cadeira ao meu lado rangeu, Jennie estava amarrada, se debatendo.
— Eu estou bem... — sussurrei. — Estou bem — repeti, sentindo a língua mover devagar dentro da boca.
Jisoo riu, os pingos de suor desciam pela testa e a pouca luz acentuava uma beleza polida, claro, se ela não estivesse suja de sangue e suor, com uma faca balançando em frente para mim. Jisoo se aproximou, ajoelhando-se, e a ponta da faca tocou o meu queixo.
Jennie soltou mais um grito.
— O que tem de especial em você, hm? Rosé também está tão preocupada... — Ela apontou para Rosé, encolhida em um canto. O rosto estava tão inchado por chorar que ela parecia ter sofrido uma reação alérgica. — Com qual delas eu estou falando?
— Lalisa — Rosé respondeu.
— Boatos que você é a mais divertida... — Jisoo soltou uma lufada de respiração em meu rosto.
Sorri, letárgica, inclinando a cabeça na direção dela, nossos narizes se tocando.
— Obrigada pelo elogio... e pela pancada na cabeça, vadia desgraçada.
Jisoo se levantou de supetão, gargalhando, e apontou a faca na minha direção.
— Eu gostei dela!
Jennie tombou a cabeça para frente, os fios castanhos oleosos de suor grudando nas bochechas. Os olhos estavam injetados e os lábios sem cor.
— Jisoo, por favor... eu não pedi nada disso...
— Eu sei que não, não mesmo... — Jisoo se aproximou de Jennie, puxando-a pelos cabelos. — Eu só juntei o útil ao agradável.
Ela observou os corpos pendurados como um artista se vangloriando da sua obra.
— Meus pais eram médicos legistas, acho que você se lembra... eles me levavam pro necrotério depois da escola. Era tão divertido ver o que tinha dentro daqueles corpos, imaginar como morreram... o que sentiram... qual foi a sensação... — Ela sorriu, nostálgica, e quase parecia uma criança contando uma memória divertida. — Eles me pagavam alguns trocados se eu limpasse os cadáveres, eram os únicos legistas do condado, imagine, eles tinham muito trabalho.
— Foi por isso que resolveu colocar fogo na quadra da escola? Porque limpou urina de gente morta a infância inteira? — Jennie cuspiu no chão. — Foi para colocar em prática o que aprendeu no necrotério? Tédio? Ter a sensação de fazer justiça com as próprias mãos?
Jisoo ponderou, fazendo um biquinho.
— Talvez um pouco de tudo... eu realmente queria que eles pagassem por ter saído impunes, só você foi suspensa, isso foi muito injusto. Mas eu sabia que eles sairiam impunes de tudo que fizessem dali em diante, por serem homens e por ser Taegon, avida para passar a mão na cabeça de garotos pelo simples fatos de terem um pau no meio das pernas. — Ela riu. — Rosé e Irene gostaram da ideia a princípio. Elas não sabiam que eu queria queimá-los vivos, era só um susto, algo para aprenderem o que é pagar pelos seus atos pelo menos uma vez na vida... mas Irene deu para trás no último momento, ela estava apaixonada por esse daqui... — Jisoo se aproximou de um dos corpos, passando a faca nos pés que balançavam de lá para cá. Estávamos no meio de um cortina de cadáveres, com somente a luz amarelada iluminando o rosto retorcido deles. — Acha que ela vai gostar do meu presente? Bom, acho que não... ele caiu tão fácil no papo de Rosé. Todos são assim, não é? Fiéis até aparecer uma garota bonita dando em cima deles.
Rosé se encolheu ainda mais, como se quisesse sumir.
— Menos esse aqui... — Jisoo se aproximou de um dos cadáveres. — Taehyung. Esse só estava no lugar errado e na hora errada, mas precisávamos começar por algum, não é?
Franzi o cenho, minha cabeça doía. Então Rosé estava coberta de sangue porque estava apaixonada por uma amiga de infância, que, pasmem, era uma assassina em série que fatiou caras no porão de Jennie? Park Rosé, que ocupava seu tempo retocando a raiz loira do cabelo e assistindo a seriados musicais, na verdade atraía homens para a morte a mando de um amor juvenil que ela reencontrou depois de anos? Balancei a cabeça, confusa.
Um som alto de choro preencheu o porão, os ombros de Jennie balançavam bruscamente.
— Como eu nunca...? Como eu nunca percebi? — Ela soluçou, desolada. — Você matou nove pessoas, Jisoo, nove pessoas inocentes... meu Deus.
Jisoo tocou o queixo de Jennie, levantando-o.
— Eu não matei pessoas, eu matei homens.
— Inocentes... — Jennie completou. — Nove homens inocentes.
— Achei que ficaria feliz, Jennie-ah! Passamos muito tempo separadas, não se lembra? Mas é isso que as amigas fazem! Se divertem juntas e protegem uma as outras... nós quatro, desde o princípio, devíamos nos proteger! Eu queimei aqueles garotos por você, eu os queimei! — Ela sorriu, esperançosa. — Lembra quando retomamos o contato meses atrás? Comemos besteira a noite toda e relembramos os velhos tempos... você disse que gostaria que fôssemos nós quatro de novo, como nos velhos tempos! — Jisoo abriu os braços. — O que mais pode juntar quatro garotas se não for algumas mortes em comum, ein? Isso não parece os velhos tempos para você?
— Não! — Jennie gritou, fraca. — Não é isso que os velhos tempos significa, Jisoo! Você é completamente maluca!
— Não sou! Conta pra ela, Rosé, conta! — Jisoo gritou de volta, apontando a faca para Rosé. — Conta o quão difícil foi fazer essa surpresa! Eu tive que fazer tudo sozinha! — Ela apontou para o próprio peito.
Jennie maneou a cabeça, incrédula.
— Jisoo, por favor, me solta, podemos... podemos conversar melhor se você me soltar...
A doutora pareceu não ter ouvido, ela conversava consigo mesma.
— Agora os quatro que sobreviveram aquele dia estão aqui! Todos eles! — Ela gritou, furiosa. — Não é maravilhoso!?
Comecei a rir, um som débil misturado à tosse, e as três me encararam.
— E eu achei que era doida... — suspirei, gargalhando. — Você é mesmo psiquiatra...? Quer dizer... é hilário! É o melhor disfarce que eu já vi na vida! Perfeito! Parabéns, doutora Jisoo! Bem pensado! Você é esperta, sabia? — Maneei a cabeça, incrédula. — Você se reaproximou de Jennie meses antes, já que precisava frequentar a casa dela para matar os caras aqui. Você se reaproximou dessa Maria vai com as outras... — Olhei para Rosé. — Porque precisava de alguém extrovertida e fútil o bastante para atrair a atenção dos garotos e sabia que ela faria tudo que você pedisse. Você esperou a época do Festival Divine, porque sabia que os policiais não investigariam os desaparecimentos, as ruas estariam sem policiamento nenhum, todos estavam ocupados lidando com bêbados delinquentes para notar o que você estava fazendo. Você fez a porra do TSM e deu para Jennie vender, porque sabia que todos iriam comprar, inclusive os seus alvos, e eles estariam mais suscetíveis, mais fáceis de se convencer, mais fracos. — Cuspi, enojada. — Você não matou o Taehyung porque ele estava no lugar errado e na hora errada, você o matou porque sabia que Jennie seria a principal suspeita... foi por isso que escolheu matá-los no porão da casa dela, afinal. Aposto que o plano era matar Jungkook também, mas o processo foi mais difícil do que você imaginou, não é? Você pesa quanto? 45 quilos? Mesmo que tenha dopado Taehyung durante a noite, ainda sim, ele era pesado demais para você e Rosé carregar, você precisava prendê-lo de ponta a cabeça para retirar o sangue. Um corpo humano tem mais de seis litros, parece pouco na teoria, mas na prática é bem complicado... aposto que você pensou que seria mais fácil.
O rosto de Jisoo se fechou, impassível.
— Você deu um comprimido de TSM para Rosé e fingiu aparecer aqui pela manhã pedindo ajuda. Você queria plantar uma discórdia básica, falar que Rosé estava se encontrando com o marido de Irene, pedir dinheiro... falar que vocês finalmente dormiram juntas, resumindo: você queria que Jennie saísse de casa, que fosse até Irene, que ficasse no festival... você queria tempo. O marido de Irene provavelmente estava no porta-malas e você ainda precisava buscar mais três. O tempo estava passando e Irene apareceu logo depois, um imprevisto que te atrasou ainda mais... tsc... mas você acabou tudo no prazo. Você é brilhante, Jisoo, mas por favor, não comece a pagar de louca agora, você não é louca, você vestiu essa carapuça de boa garota por anos e manipulou todas as três. Você planejou detalhadamente isso porque não sente absolutamente nada... e eu até acho que você tentou sentir, tentou ficar com Rosé, tentou ser amiga da Jennie e da Irene, mas você desistiu, não é? Você percebeu que só consegue sentir prazer desossando esses pobres coitados aqui... — Ri, amarga. — Você percebeu que é mais divertido abri-los quando eles estão acordados, quando estão gritando... quando o sangue ainda está quente em suas mãos.
Jisoo se aproximou de mim, os olhos brilhando perversidade. Eu não desviei o olhar.
— Você não fez isso por amizade, por amor ou para buscar justiça, você só estava com tédio e queria sentir algo, queria sentir a mesma coisa que sentiu quando queimou aqueles garotos na quadra, por isso escolheu os sobreviventes, porque era mais divertido.
Um silêncio pesado recaiu sobre o porão. Jisoo soltou um suspiro.
— Ah, Lalisa, você acabou com toda a graça... quer dizer, estava tão divertido!
Jennie maneou a cabeça, confusa.
— O quê...?
— É, é, Lalisa está certa... eu estava entediada, sabe? Não acontece muita coisa em Taegon, borring... — Ela fez uma careta. — Pensei em fazer algo impactante, algo que chocasse... que aparecesse na primeira página de todos os jornais. Esquarteja-los seria bom, mas daria muito trabalho... decapita-los seria divertido, mas não daria tempo... cortar o pênis? Exótico, um pouco clichê, admito, mas as pessoas amam coisas mórbidas, não é? Eu queria uma marca, um modus operandi. Filho de Sam usava arma de fogo, o BTK amarrava e torturava as vítimas, Mason criou uma seita... Todos são lembrados por algo, entende?
Jisoo roía as unhas calmamente, como se estivesse em um dia ensolarado contando uma fofoca.
— Infelizmente todos são homens, a maioria não foi inteligente o bastante, mas eu sou diferente. Acho que já sabe o que eu estou falando, não é Jennie?
Jennie mal mantinha os olhos abertos, ela piscava devagar, como se até isso acarretasse em um esforço grande demais. Me remexi na cadeira, mas as amarras estavam firmes.
— Eu vou ser a culpada... — Jennie sussurrou, a voz era um fiapo. — Eu vou ser culpada por tudo isso.
— Claro! — Jisoo bateu palmas. — Eu queria que Irene também levasse a culpa, mas acho que matar o maridinho dela, deixá-la criar o bebê sozinha e colocar a maior amiga na cadeia é um bom castigo... e bem, prometi a Rosé que não envolveria Lisa. Sobrou você, querida.
Jennie levantou a cabeça, confusa.
— Irene, o quê...?
Jisoo bateu na própria coxa, como se lembrasse de uma fofoca.
— Então foi por isso que Irene apareceu aqui ontem! É, ela está grávida, queria te contar em primeira mão e tudo mais, mas você não estava aqui... — Jisoo deu de ombros.
Dei um solavanco na cadeira, assustando-as. Se eu me jogasse no chão a probabilidade da cadeira quebrar era alta, eu conseguia ouvir o rangido da madeira manca, mas Jisoo tinha uma faca, talvez não desse tempo para me desatar das cordas e pegar um pedaço da cadeira para me defender e defender Jennie. Era duas contra duas, mas Rosé estava tão cansada e afetada que talvez não esboçasse reação. Jisoo era o problema, ela prometeu que não envolveria Lisa no caso, mas nos acertaria com a faca no menor sinal de perigo.
— Se acha mesmo que eu vou embora daqui e deixá-la culpar Jennie por isso, você está muito enganada! — rugi, salivando de tanto ódio.
— Ah, meu Deus, Rosé, tire-a logo daqui! — Jisoo rolou os olhos. — E vê se mantém Lisa no controle dessa vez!
Rosé sumiu por entre os corpos e eu me remexi mais intensamente, essa era a hora, eu teria que fazer alguma coisa. Dei um solavanco mais forte, minhas juntas doíam, a corda cortava a minha pele. Olhei para Jennie de relance, pedindo ajuda, pedindo que ela também começasse a se mexer, mas suas orbes me fitavam sem nem mesmo piscar, calmas.
"Está tudo bem" Jennie murmurou em meio ao choro.
Franzi o cenho, confusa, até perceber que ela não faria nada. Jennie deixaria Rosé me dopar porque sabia que Lisa tomaria o controle quando acordasse, quando chegasse a Seul, sem nem mesmo imaginar que um dia pisou em Taegon. Jennie aceitaria a acusação, aceitaria porque se fizesse isso, Jisoo seria obrigada a parar de matar, seria obrigada porque a assassina estaria presa. Jennie aceitaria a acusação para me proteger, para proteger Irene e Jungkook. Jennie, como sempre, limpando bagunças que não eram dela.
— Não, não, não, não, não... — lamuriei. Ela desviou os olhos, o maxilar trincado, olhando para frente sem ao menos piscar. — JENNIE, POR FAVOR, OLHE PRA MIM! JENNIE! NÃO! Jisoo não vai parar de matar! Ela não vai! Ela não vai cumprir qualquer trato Jennie, por favor! Ela vai matar Jungkook e vai... vai matar Irene, por favor, por favor! Me ouça!
Rosé apareceu com a seringa, a mesma que Jennie me pediu para buscar na cozinha. Me remexi tão bruscamente que Jisoo precisou me segurar, me imobilizou enquanto Rosé, em uma só tacada, injetou o conteúdo da seringa no meu braço.
O mecanismo estava trabalhando, de alguma forma ele entendeu que Lisa estaria segura a partir de agora, que Rosé a colocaria no opala novamente, que elas partiriam para longe daqui. Que agora, eu não era mais necessária.
Senti a lucidez partindo, as lágrimas rolavam nas minhas bochechas. O nome de Jennie saiu desesperado dos meus lábios pela última vez.
(...)
— Lalisa?
Minhas pálpebras tremeram, a luminosidade adentrava o quarto, fazendo tudo brilhar em um amarelo com cheiro de mofo.
O ambiente era asséptico e fazia frio, muito frio. Quanto tempo havia se passado? Era inverno? Pisquei algumas vezes, confusa, minha visão demorou segundos para focar em Jennie. Os lábios dela se moviam devagar, me chamando.
Arfei, segurando suas mãos que formavam conchas ao redor do meu rosto. Jennie se tornou nítida entre as piscadas, a pele estava seca, rachada, e várias bolinhas vermelhas se espalharam pelo rosto. Anemia, um quadro grave de anemia, era assim que eu me parecia quando criança.
Os lábios dela se desprenderam em um sorriso.
Me levantei de supetão, tocando o jaleco em meu corpo e observando o quarto ao nosso redor. Raiva borbulhava em meu peito. Jennie estava presa na cama de metal, pesadas correntes de ferro ao redor das mãos e pés.
— O que aconteceu? — perguntei.
Ela não teve tempo para responder, a porta se abriu e um policial entrou no quarto. Ele era alto, calvo e tinha uma expressão severa no rosto.
— Seu tempo acabou, mocinha.
Parti para cima dele.
Seu reflexo foi rápido, ele me jogou na parede com brusquidão e minhas costas bateram em um estalo dolorido. Eu estava com tanta raiva que a adrenalina corria em minhas veias, eu não deixaria de lutar dessa vez. Peguei a caneta no bolso do jaleco, mas não sabia o que fazer com ela até o policial enfiar a palma na minha cara, pressionando a minha cabeça contra a parede. A outra mão tentava pegar a arma no coldre, mas ela não queria sair.
Agarrei o tubo da caneta com força e acertei o olho do policial.
Ele deu passos para trás, gritando de dor, mas tapei sua boca e usei a força do meu corpo para empurrá-lo. Nós dois caímos no chão.
Me equilibrei em cima dele e enfiei a caneta com mais força. Meu coração batia descompassado, um grunhido irrompia dos meus lábios. Um jato de sangue respingou no meu rosto, limpei com o dorso da mão. O que deveria ser o olho direito dele era só um buraco que não parava mais de sair sangue.
Não percebi que outro policial havia entrado na sala, ele rodeava Jennie, a arma em punho, mas ela subiu em cima da cama e o tilintar das correntes seguiu o movimento. Jennie empunhou um pedaço de barra de ferro que soltou da cama e olhou para mim, por cima dos ombros do policial, e jogou a barra de ferro para cima.
Eu a peguei com as duas mãos e golpeei o policial por trás, como se a cabeça dele fosse uma bola de beisebol. A força foi tanta que metade do crânio se afundou e ele desabou no chão, sem ao menos soltar um único ruído. Fiz questão de acertá-lo mais três vezes, para ter certeza.
O policial com a caneta no olho se levantava, desorientado, e recebeu mais dois golpes na cabeça.
Joguei a barra de ferro no chão, respirando arfante. Meus cabelos não estavam mais longos, Lisa os cortou rente ao queixo. Os fios grudavam no meu rosto, graças ao suor e graças ao sangue.
Fitei Jennie, ela correu até mim, me abraçando.
Demorei segundos para rodear meus braços ao redor do seu corpo magro. Era tão frágil que se eu apertasse mais forte, poderia quebrá-la.
— É melhor me contar que porra aconteceu durante todo esse tempo, Jennie — pedi.
— Você tinha razão... — ela sussurrou no meu ouvido, a respiração rápida. — Jisoo e Rosé estão matando de novo... e dessa vez Lisa vai ser a culpada por tudo.
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