(XVI). Por Enquanto
"Se lembra quando a gente chegou um dia a acreditar que tudo era pra sempre, sem saber que o pra sempre, sempre acaba" — Legião Urbana.
Diário de Jennie Kim (Fevereiro de 1984)
◦◦◦
Lalisa me beijou mais intensamente, percorrendo com a língua a minha boca e tirando todo o resquício de autocontrole que eu possuía. Não iríamos parar tão cedo. O corpo dela em contato com o meu, debaixo d'água, era quente e inquieto. Lalisa manteve meus lábios presos entre os dentes, ora descendo os selares pelo meu pescoço, ora olhando dentro dos meus olhos e me tornando refém dos seus toques.
Ela me agarrou pela cintura, os dedos apertando-me ainda mais contra ela, e eu implorei entre sussurros que não parasse. Havia um sentimento de urgência entre nós, até mesmo a floresta à nossa volta estava silenciosa e o ar que inspiramos abafado, como se não quisessem atrapalhar, como se pretendessem nos dar um segundo de paz antes do caos se iniciar.
A água passou a não ser um problema, Lalisa deslizava os lábios pelo meu pescoço e somente o barulho do ar saindo ruidosamente da minha boca era audível. Nossos corpos se moviam na água, meus pés se sustentavam entre os musgos do lago e meu corpo estava inteiramente entregue a Lalisa para que ela fizesse o que bem entendesse.
Ao encarar o céu escuro acima de mim, cheio de estrelas e constelações, pedi que ficássemos ali por muito tempo. Eu experimentava pela primeira vez na vida uma sensação natural de êxtase, eu estava chapada sem precisar usar nenhuma droga, sem maconha, sem TSM, sem nada que não fosse os lábios de Lalisa lambendo e chupando a minha pele, trazendo um calor que apossava o meu corpo e me impedia de respirar corretamente. Talvez fosse assim que as pessoas normais se sentiam, aquelas que não eram tão ferradas da cabeça como eu, aquelas que encontravam a pessoa amada em uma floricultura, na faculdade ou em um passeio no parque. Elas sentiam essa dose de endorfina que Lalisa me fazia sentir agora. Era por isso que se apaixonavam e faziam de tudo para não perder aquela pequena dose diária de endorfina. Ela vicia. Meu peito subia e descia bruscamente e minhas pernas se enroscaram na cintura de Lalisa.
Ela era a única pessoa que me fazia sentir algo diferente daquela mesmice sem fim, foi àquela que me fez pensar, pelo segundo em que subia com os dedos pelas minhas coxas, não estar presa a Taegon. Lalisa, usando somente a boca e os dedos, me levou embora daquela cidade, dos meus problemas e do meu futuro, e criamos um mundo só nosso.
O corpo dela me pressionou com mais força, nossos seios se encontravam, nossos quadris causavam atrito e minha perna em volta de sua cintura não a deixaria ir embora nem se quisesse. Suas mãos passaram por todo o meu corpo, apertando e beliscando, enquanto nossas respirações se tornaram um plano de fundo para um beijo caótico, ainda mais urgente e agressivo. Me foquei nessas sensações, nos lábios dela brilhando no escuro, nos olhos cheios de desejo e nos cabelos molhados, com algumas mechas se encontrando com as minhas, outras atravessando o rosto, e o brilho corporal que ela usava espalhado na água.
Nossas bocas se aproximaram, soltando lufadas de ar que se mesclavam. Meus braços apertaram com força seus ombros.
— Por favor, me fode... — sussurrei entre os seus lábios. Eu estava exasperada, arfante, submissa, e não conseguia pensar em nada tão necessário quanto os dedos de Lalisa dentro de mim.
Ela sorriu em resposta, aquele sorriso de lado que me trazia um calafrio todas as vezes.
Arfei assim que seus dedos entraram, a água parecia potencializar as sensações e não me fazia querer parar. Eu não sentia o suor, não sentia meus músculos cansados e nada que não fosse Lalisa se fundindo a mim. Com a mão livre, ela agarrou o meu queixo, obrigando-me a encarar o fundo dos seus olhos, agora completamente negros e brilhantes no escuro.
— Você é minha, Jennie-ah — decretou Lalisa, devagar.
— Para sempre... sou sua para sempre — respondi, presa em um torpor já conhecido.
Abri as lábios e deixei que ela despejasse saliva para dentro da minha boca, que me mordesse e chupasse o meu sangue.
Era o nosso contrato silencioso, uma ligação que nunca mais seria quebrada.
Nunca mais.
(...)
Se a minha avó soubesse que passei horas usando roupas molhadas, ela teria levantado do túmulo para me xingar. Eu poderia imaginar sua voz recitando os males do resfriado. Mas, depois que saímos do lago, Lalisa e eu não queríamos voltar para a casa, para Taegon, então nos vestimos e ficamos no carro, sentadas no capô do impala, conversando pelo que pareceu uma eternidade.
O céu ficava mais claro à medida que a madrugada encontrava o seu fim e o sol despontava no horizonte. Lalisa se aninhou nos meus braços, os cabelos úmidos fazendo cócegas nas minhas bochechas, enquanto eu passava os dedos lentamente nas cicatrizes das suas costas.
A estrada estava silenciosa, com cheiro de orvalho e madeira molhada.
— Quem fez isso com você? — perguntei, sentindo o relevo das cicatrizes na ponta dos meus dedos.
Lalisa suspirou, ajeitando a cabeça em cima do meu peito.
— Meu pai, minha mãe... às vezes os dois... às vezes os homens que davam dinheiro a eles para transar comigo. — Ela riu, amarga. — Dentre todos os fetos que a minha mãe arrancou da vagina com um cabide torto, eu fui a que sobreviveu, infelizmente. Então eles me usavam para conseguir dinheiro e para descontar a raiva do mundo.
Pisquei algumas vezes, sentindo as lágrimas prontas para romperem pelos meus olhos e rolarem pelas minhas bochechas, mas segurei o impulso. Estranhamente, Lalisa não disse aquilo com um pesar, era como se fosse algo tão banal que havia se tornado natural, como se ela estivesse contando uma situação atípica, mas que acontecia com todo mundo.
— Foi por isso que... — pigarreei, sem saber como falar sem soar indecorosa. — Por isso que...
— Que nós somos assim? Eu e Lisa? — ela terminou a pergunta.
Maneei a cabeça positivamente. Lalisa repousou o queixo no meu peito, os olhos enormes e contemplativos me fitando sem piscar.
— Lisa não se lembra nem da metade da nossa infância, ela não se lembra da dor e de como era dormir sangrando, com fome, com eles injetando heroína no cômodo ao lado e saber que quando a onda batesse iriam até onde eu estava e aí sim, seria um inferno. Ela não se lembra da miséria metade. Lisa sabe que a nossa infância foi ruim, que tínhamos pais usuários de drogas, mas apenas isso. Ela não sabe sobre mim, não sabe que eu a protegi durante todos esses anos. Quando as coisas ficavam ruins, eu tomava o controle.
Toquei em uma das mechas soltas do cabelo dela, colocando-a atrás da sua orelha. Lalisa tombou a cabeça para o lado, como um gatinho pedindo carinho. Eu não sabia o que falar, não havia palavras certas ou confortáveis para uma situação dessas, e soar piegas não era o meu intuito. Eu não poderia imaginar o que ela sofreu, já que Lalisa me contava um recorte. Ela era uma sobrevivente.
— Como conseguiu sair disso? — perguntei. — Como veio para cá?
Lalisa fechou os olhos, aproveitando o carinho que eu fazia em suas bochechas.
— Eles me ensinaram a injetar heroína neles, estavam velhos demais e tremiam muito para acertar a seringa no próprio braço. Era deprimente. Me ensinaram a dar batidinhas nela antes de aplicar, eu não deveria deixar bolhas de ar sob nenhuma hipótese... um dia eu resolvi testar o porquê. Descobri mais tarde que as bolhas de ar entopem as veias, foi uma morte rápida, fácil, e as pessoas não se importaram... na verdade, elas se assustaram por eles terem vivido por tanto tempo. Depois disso eu peguei o dinheiro restante, vendi o que eu achei na casa e parti para Seul.
— Lisa se lembra disso? —perguntei.
— Em partes, eu fui muito ativa durante a nossa infância, mas ela começou a tomar o controle quando éramos adolescentes... assim que chegamos a Seul, passei muito tempo submersa, já que as coisas estavam dando certo para Lisa e ela não precisava mais de mim. Lembro-me de poucas coisas... — O cenho de Lalisa franziu, como se ela fizesse esforço para pensar. — Entramos na faculdade, conhecemos Rosé... depois, acordei em um apartamento desconhecido e descobri que três anos haviam se passado. Rosé e Lisa moravam juntas, elas eram melhores amigas... e eu passei anos e anos no escuro.
A apertei com força, em um abraço desengonçado graças a nossa posição incômoda no impala.
— Rosé sabe sobre você?
Lalisa me abraçou e riu, irônica.
— É, ela sabe. Lisa estava passando por muita pressão na faculdade, foi quando eu consegui aparecer mais vezes. Rosé acabou descobrindo que a amiga que a visitava pela madrugada não era a mesma que a dava bom dia, pela manhã. Discutimos algumas vezes, ela acha que eu devo ir embora e deixar Lisa em paz.
A situação não tinha graça nenhuma, mas nós rimos.
— É por isso que você precisa fingir que é a Lisa, para Rosé não descobrir?
Lalisa maneou a cabeça em afirmação.
— Você sabe interpretá-la muito bem — elogiei.
O momento em que nos conhecemos se passou pela minha cabeça, a garota com a calça pantalona e um suéter, não querendo tirá-lo mesmo com Rosé insistindo. Ela esperou Rosé tomar os comprimidos que deixei no impala para se afastar, foi quando nos encontramos pela segunda vez e eu a levei para a casa. Esperta.
Lalisa se sentou, animada.
— É fácil imitar a Lisa, veja só. — Lalisa encolheu os ombros e deixou os olhos caídos, parecia ter diminuído de tamanho, como se não quisesse ser notada. Ela colocou algumas mechas de cabelo para trás da orelha e me fitou, tímida. — Jennie Kim, por favor, preciso que me leve para casa. Que lugar é esse? Onde está Park Rosé?
Eu segurei o riso, mas no fim nós gargalhamos sem parar.
— Lisa é tímida, não é muito sociável e tem síndrome de heroína, é um saco. — Lalisa fez um gesto de vômito.
Me sentei e ficamos lado a lado, no capô do impala.
— Não seja tão má... — disse.
Lalisa suspirou, parecendo verdadeiramente triste dessa vez.
— Rosé se transformou em uma âncora para Lisa, não sei explicar... mas quando Rosé a chama, quando olha nos meus olhos e a chama, ela escuta, Lisa escuta e toma o controle de novo. É sempre assim. Me admira Lisa não ter descoberto sobre mim ainda, mas não é como se pudéssemos conversar aqui dentro... — Lalisa apontou para a própria cabeça. — E se depender de Rosé, Lisa vai estar no controle para sempre.
O sol já havia nascido e o nosso tempo acabou por completo, precisávamos voltar para a minha casa e eu teria que enfrentar minhas três ex-amigas e o que quer que elas aprontaram na minha ausência, mas antes, peguei o rosto de Lalisa e o coloquei em uma concha entre as minhas mãos.
— Eu vou ser a sua âncora — disse a ela. — Se Lisa tomar o controle, eu vou olhar dentro dos olhos dela e te chamar de novo. Eu vou te fazer emergir.
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