(XIV). Todas as coisas belas
"Por trás de todas as coisas belas há algo de trágico" — Matthew Quick
Diário de Jennie Kim (Fevereiro de 1984)
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Quando cheguei ao Divine alguma banda desconhecida cantava uma versão rock de "Girls Just Want To Have Fun" que não chegava aos pés da original, diga-se de passagem. Uma massa de corpos tomavam conta da arena, dançando, cantando, genuinamente felizes. Mais da metade daquelas pessoas não eram de Taegon, e sim, das cidades vizinhas, do litoral, de Seul, alguns vinham de longe, japoneses, chineses, tailandeses, havia gente de todos os lugares do continente.
O Sol não deu trégua, achei que fosse me acabar em suor depois do meio dia. As três, o fecho do meu short estava aberto e minha blusa amarrada na cintura, meu tronco coberto apenas por um biquíni preto. Eu precisava de, no mínimo, dez banhos para me sentir bem comigo mesma. Algumas pessoas estavam sentadas em bando na grama, no meio da lama, cheios de glitter e urina. O horizonte tremeluzia pelo calor, e um indie monótono tocava no palco.
Lalisa estava em meio a multidão escassa.
Pisquei algumas vezes, confusa. Por um momento pensei estar chapada, mesmo que eu não tivesse colocado nada do que vendi na boca, a não ser água. Precisei de minutos para entender que não, eu não estava chapada e sim, Lalisa estava ali, no Divine. Ela usava uma das minhas blusas cavadas na lateral, e quando pulava metade da sua bunda coberta por um short jeans curto aparecia. Ela fez amizade com um grupo de pessoas, todos estavam se abraçando e cantando no ritmo da música. Os cabelos de Lalisa estavam molhados de suor e o rosto metade pintando de vermelho.
Me esgueirei até lá, perto o suficiente para tocá-la e constatar que não era um delírio da minha cabeça. Ela se virou, o brilho do sol atravessando seu rosto, e sorriu para mim. Suor, tinta e glitter escorrendo entre os cabelos.
— Jennie Kim! — Lalisa pulou em cima de mim, passando os braços ao redor do meu pescoço. — Eu estou te procurando há tipo, cinco horas! Esses são meus novos amigos, Umji, Jaehyun e... ei! Qual o seu nome? — Ela cutucou uma menina. — Ah, sim, Mina, ela é japonesa! O quê? Americana? Ah, ela não é demais!? — Lalisa gargalhou. — Eles são demais!
Balancei a mão no que pensei ser um cumprimento e puxei a barra da blusa de Lalisa, levando-a para longe do grupo. Ela se virou para trás, se despedindo deles.
— Foi bom conhecer vocês! Até mais! Quando eu for no Texas espero te ver lá! — Ela se virou para frente e tropeçou, quase caindo em cima de mim. — O que houve? Por que está assim, Jennie Kim?
— Por que eu estou assim? — devolvi a pergunta, gritando. Nós duas gritávamos, não tinha como falar algo com a barulheira sem fim daquele show. — Onde está Rosé e Jisoo?
Lalisa arregalou os olhos, como se fosse uma mãe que percebeu tarde demais que esqueceu os filhos dentro do carro.
— É uma longa história! — Ela apontou para a área do estacionamento. — Vamos até lá!
Lalisa me puxou por entre os corpos suados até chegarmos ao estacionamento, onde alguns carros disputavam espaço no meio de barracas e mato. Era impossível sair dali dirigindo, a sorte de Lalisa era que seu impala estava próximo a rua, o terceiro carro da fileira da esquerda. Ela chegou até ele, como se encontrasse um amigo depois de anos sem contato, e se sentou no capô, dando batidinhas na lataria azul.
— Bom menino... — ela murmurou para o carro.
— Agora você pode me dizer aonde elas estão? — perguntei.
Lalisa me agarrou pela blusa e parei no meio das pernas dela. Ela repousou os braços ao redor do meu ombro.
— Uma mulher chegou lá querendo saber onde você estava, Rosé e Jisoo começaram a discutir com ela... sinceramente, eu não entendi nada do que aconteceu, mas como eu estava na cozinha quando ela chegou, conseguir sair pela porta dos fundos antes que ela me visse.
Franzi o cenho.
— Irene?
Lalisa pensou por um segundo.
— Acho que sim, o nome dela era diferente, mas não me lembro se era esse.
Fechei os olhos com força, tentando mentalizar qualquer pensamento esperançoso para não devagar demais em Irene aparecendo na minha casa e encontrando Rosé e Jisoo, depois de anos. Jisoo, que me tirou da cadeia recentemente e Rosé, que estava com o marido dela um dia antes. Elas não precisavam de muitos motivos para começarem a brigar.
— Como ela era? Estava fardada? — perguntei. Depois que Irene virou policial a farda era como uma segunda pele dela.
Lalisa fazia traçados com os dedos pelos meus ombros, com um bico nos lábios que eu não podia olhar muito, respondeu:
— Era bonita, cabelos castanhos longos, uma cara de brava e não, não estava fardada, estava vestindo roupas normais. — Lalisa respondeu com um suspiro. — Isso é mesmo importante?
— É, é sim, é um daqueles problemas que vira uma bola de neve — rebati.
Repousei minha cabeça nos ombros dela, na voltinha do pescoço de Lalisa. A batida da música estava abafada, o coração dela acelerado no meu ouvido.
— Garotas são um problema quando estão juntas, Rosé sempre dizia isso. — A voz de Lalisa estava mais alta, pela proximidade.
— "Elas fazem coisas das quais vão se arrepender depois..." — sorri com a lembrança. — Ela sempre dizia isso.
Lalisa gargalhou, o peito subindo e descendo debaixo de mim.
— Você está tão chapada... — disse.
— Não estou, juro! — ela retrucou. — No começo sim, agora não mais, e Rosé está certa. Nos arrependemos depois porque é muito mais divertido fazer do que não fazer.
A voz dela se tornou um sussurro na última frase, trouxe calafrios pela minha nuca. Eu não achava essa lógica inteligente. Se eu pudesse voltar atrás, para o meu eu do ensino médio, teria impedido Irene e Jisoo de entrarem naquela quadra. O arrependimento de ter feito algo que saiu do controle era um martírio muito maior do que não ter feito.
— Me deixe fazê-la se arrepender hoje a noite, Jennie Kim — Lalisa sussurrou no meu ouvido.
Senti o coração dela desacelerar enquanto o meu tomava o rumo contrário. Agora, mais do que nunca, percebi que essa era uma situação parecida com a que vivi no colégio, no momento que eu e Rosé corríamos para a quadra em chamas e eu só conseguia pensar que não havia mais volta, estava feito, não podíamos fazer nada mais para impedir.
— Tudo bem — disse, inspirando o suor e o cheiro do Divine, vindos dela.
(...)
A paisagem era fixa, árvores com troncos marrons claros e galhos verdes. Uma manta de concreto abria caminho, como um rasgo no meio da floresta.
Eu e Lalisa só conseguíamos ouvir o barulho das cigarras, da música no rádio e do vácuo nos nossos ouvidos. A rodovia estava tranquila. Taegon era uma cidade tranquila longe do centro estudantil, sem a barulheira constante dos garotos e garotas que enchiam as repúblicas por toda a extensão daquele lugar.
O volante estava firme nas mãos de Lalisa, que batucava vez ou outra no ritmo da música, na rádio. Escutei aquela canção muitas vezes quando criança, com a voz desafinada do meu avô no refrão, mas quando Lalisa cantava não era alto ou baixo demais, não era nada desafinado, era como se fosse a primeira vez que eu ouvia. Ganhava um novo tom pela voz dela.
O vento entrava com tudo pela janela no carro, o cheiro de cigarro velho, suor e sal se misturava. Meus cabelos voam, alguns fios preso nos meus lábios, a maioria atrás da orelha, mas eu tinha que colocá-los lá todas as vezes. O olhar dela caía sobre mim ora ou outra, os olhos grandes e longos em uma expressão curiosa. Eu estava me permitindo agir como se tivéssemos todo o tempo do mundo.
— Para onde vamos? — perguntei.
Era estranho eu não saber, aquela cidade era a minha cidade, no fim das contas.
— Quando eu e Rosé estávamos chegando a Taegon, passamos por aqui. Eu queria pedir para ela parar, mas ela perceberia caso eu pedisse.
— Perceberia o quê? — indaguei.
Lalisa olhou para mim rapidamente, antes de voltar a prestar atenção na estrada. A cabine do opala estava em uma semiescuridão aconchegante, graças ao fim de tarde.
— Ela perceberia que Lisa não estava no comando.
Pisquei algumas vezes, processando aquela informação aos poucos. Agora tudo fazia um pouco mais de sentido.
— Lisa é a garota que não sabe que é bonita... — disse, lembrando-me da conclusão que cheguei ao vê-la pela primeira vez. — Quando te encontrei ontem de manhã, era você a imitando certo? Para Rosé não perceber.
Lalisa maneou a cabeça sutilmente.
— Você não teria gostado dela, da outra garota... ela é careta demais.
Lalisa falava deste segredo tão abertamente que não parecia ser nada demais, apenas um inconveniente. Se eu não tivesse visto com os meus próprios olhos, não teria acreditado. Eu já desconfiava que existia duas garotas dentro daquele corpo e não entender muito bem sobre isso me fazia ficar ainda mais curiosa. Me debrucei sobre a janela aberta. O silêncio voltou a reinar sobre nós duas.
Talvez Rosé estivesse razão sobre muitas coisas, sobre garotas arrumando encrenca quando estavam juntas e sobre meu baixo senso de sobrevivência. Aquele silêncio era nosso sinal verde, meu e de Lalisa, percebi nesse meio tempo que confiava mais nela do que confiei em minhas melhores amigas em toda a minha vida. A garota que acabou de me contar que convivia com outra personalidade dentro da cabeça.
Lalisa parou no acostamento da estrada, ela tentou estacionar o impala o mais perto do começo da floresta possível, já que não havia duas vias, mas o automóvel era largo e ocupava muito espaço. Saímos do carro e eu já conseguia ver um lago embebido na escuridão. Estava surpresa por não saber da existência dele.
Lalisa tomou a frente e começou a andar pelas árvores baixas.
— Sabe o que não sai da minha cabeça? — Ela olhou para trás, para mim. — Além de você, claro.
— Não faço a mínima ideia do que passa na sua cabeça, Lalisa.
E eu realmente não sabia.
— Aqui deve ser bonito quando neva. É isso que não sai da minha cabeça — ela disse.
— É solitário quando neva... e claustrofóbico. Não queira estar em Taegon quando neva.
Paramos em frente ao lago, era pequeno e calmo. Lalisa olhou para mim com os olhos brilhando na escuridão e levantou a blusa, ela não usava nada por baixo e, de repente, pulou no lago. Respingos d'água me atingiram em cheio.
Lalisa emergiu logo depois, gargalhando.
— O que está esperando, Jennie Kim!?
Sem ao menos perceber eu estava gargalhando também, pulei na água, de roupa. Estava quente, tudo. Lalisa se aproximou com cuidado, nossas faces ficavam próximas, a respiração dela se mesclava com a minha e me perguntei, naquele curto período de tempo, onde Lisa ficava quando Lalisa estava no controle.
Um estranho calafrio tomou o meu corpo.
— E onde mais eu estarei senão em Taegon? — Lalisa perguntou.
Maneei a cabeça, sem entender.
— Você disse que eu não gostaria de estar em Taegon quando nevar, mas onde mais eu estaria? — ela esclareceu.
— Em Seul, óbvio. Como aquelas mulheres atarefadas nos filmes, comprando tapeçaria para o seu novo apartamento, com um copo de café em uma mão e usando saia lápis... aquelas bem apertadas... — Me aproximei mais. — Que marcam a bunda... — E apertei. — Um sobretudo daqueles chiques. Ele vai abraçar seu corpo e te esquentar nos dias de frio. — Passei os dedos pelo tronco dela, entre os seios, sua pele se arrepiou ao meu toque. — Você vai ter um bom homem te esperando em casa, que vai te foder quando você estiver triste...
Os lábios de Lalisa colaram no meu pescoço, deixando um beijo.
— Está triste? — perguntei.
— Estou molhada, Jennie. — Ela riu. — E não é por causa do lago.
Lalisa ergueu a cabeça para me olhar e meu coração bateu descompassado, eu nunca me senti assim antes, nunca fiquei tão ansiosa com a possibilidade de beijar uma garota. Lisa tornou tudo melhor ainda, maior que minhas expectativas, anseios e medos. Ela tocou os meu lábios entreabertos com os seus, encaixando-os, e introduziu a língua tão vagarosamente que minha cabeça arqueou para trás. Quando o beijo começou de verdade, intenso, eu já estava em chamas.
Lalisa tinha gosto de água doce, suor e do meu mais novo arrependimento.
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