(V). Um passado nem tão distante
"Acima de tudo, quero te salvar de mim." — Rupi Kaur
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O menino anda a passos lentos ao sair da Universidade do Condado, colocou a mochila nas costas e apertou as alças. Está com notas baixas em todas as matérias do seu curso, e se não recuperar, vai passar as férias inteiras em Taegon, sendo que, o que mais quer é voltar para a casa da mãe, em Busan.
A noite é densa e a rua é deserta e estreita. As repúblicas se espalham pelo outro lado da calçada, mas a sua fica a quatro ruas dali, porque não tem dinheiro para pagar uma perto do campus. Respira fundo, passando as mãos pelos cabelos tingidos de loiro e começa a caminhada.
Assim que o frio aumenta, ele fecha os três botões do casaco e tira do bolso o fone do seu mais novo walkman, soprando a fita do U2 e encaixando-a no espaço reservado, logo começa a tocar New Years Day. Se anima em caminhar, a música será a trilha sonora da sua pequena viagem.
Ele só consegue imaginar a cama macia que o espera e as 6 horas de sono que devem ser bem dormidas, porque tem aula amanhã cedo. Sempre escolhe um atalho que o faz cortar duas ruas de distância até a república que mora, é deserto e não tem tantas casas, só um lote vago que precisa de reparos antes do verão, mas ele não tem medo, os massacres de Divine completam mais de um ano.
O menino chuta uma pedrinha, aborrecido, e levanta os olhos, encarando o pisca alerta do carro iluminando a rua. Aquele modelo é o seu sonho de consumo e de todo cara da época, importado e caro. A menina enfurecida bate com força no pneu traseiro, soltando resmungos incompreensíveis. Ele caminha até ela com um sorriso no rosto.
— Olá...? Tudo bem aí? — Ela se assusta ao vê-lo e dá passos vacilantes para trás. — Desculpe! Eu não queria te assustar, vi que está com problemas com o carro.
— Ah... sim... — Ela coloca uma mecha de cabelo atrás da orelha, a pouca luz do poste a deixa tão bonita. — O pneu estourou e eu estou tentando trocar faz uma hora, mas o macaco emperrou, não quer sair.
— Eu posso ajudar. Só me prometa uma voltinha nele depois — E sorri mais largo, todo galanteador. Imagina-se contando aos amigos como conseguiu uma namorada, somente trocando o pneu do carro dela e ainda de quebra, poderia dar umas voltas no automóvel.
— Feito. — Ela sorri também, e com a chave de fenda nas mãos sujas, que limpou no casaco, estende para o garoto apertar.
Ele nem se importa com uma hora a menos de sono perdido. Joga a mochila e o walkman em cima do capô do carro e se agacha em frente ao pneu, mas na primeira vez que ele puxa o macaco, sai com uma facilidade surpreendente. O garoto encara a ferramenta com as sobrancelhas juntas, confuso, e dá um sorriso contido "...garotas", bufa, "não sabem nada sobre carros."
— O macaco não estava emperrado, gatinha.
— Eu sei — ela suspira. — Eu menti sobre isso.
Ele se vira, pronto para indagar a menina sobre o que acaba de ouvir, mas antes que possa se firmar nas pernas para levantar, sente um baque atrás da cabeça. O impacto é forte e ele se debruça no carro, levando a mão até a cabeça, e recebe outro golpe, e mais um depois do segundo. O último o faz cair no chão, soltando um muxoxo desesperado.
Ao encarar os dedos cheios de sangue, na frente dos olhos, ele nota como o céu está límpido e cheio de estrelas e como tudo parece um sonho que virou pesadelo. A garota se debruça sobre ele e acaba tampando qualquer visão anterior. Agora, o garoto só vê um sorriso diabólico estampado na face bonita dela.
— Acho que vamos ter que deixar a voltinha para depois. — E o golpeia com a ferramenta mais uma vez.
[...]
Lisa Manoban (Julho de 1985)
— Toc, toc?
— Sério mesmo, Rosé? — Aperto o fio do aparelho, em mais um dia na sala de telefones do Colônia.
— Toc, toc!
— Quem é? — resmungo, desistente.
— Divine.
— Divine o quê?
— Adivine quem é e te dou um beijo.
Preciso tirar o telefone do gancho quando a risada dela ressoa do outro lado da linha.
— Ah, Park Rosé! Nunca mais me ligue para isso! Vou ter pesadelos com essa merda!
— Não estou te ligando para isso — ela justifica. — Estou com saudades. Sabia que aboli o café da minha vida, definitivamente? Mereço um parabéns, não acha?
— Faz bem, café é um vício.
— ... Substituí por nicotina.
— Rosé!? — Minha voz parece indignada, mas estou rindo.
— Agora me diz, como você está?
— Nada de novo, continuo trabalhando o dia todo, contínuo com Jennie Kim na cabeça... — Sai mais rápido do que posso me arrepender.
— De novo com isso?
— Eu não estou enchendo o saco, estou? — Eu sei a resposta.
— É óbvio que está. Só essa semana ouvi esse nome umas dez vezes, todas vindas de você. — A voz dela é irritadiça. — O que quer saber sobre esse caso? Já não está resolvido?
— Está... está sim. Mas ano passado foi uma bagunça, eu não consigo me lembrar do que fiz a maior parte do tempo. Sei que é comum para alguém como eu e o último ano da faculdade foi pesado, mas é... preocupante, entende? Estou sentindo algo estranho.
— Você estava comigo durante todo o ano, moramos juntas, lembra? — Rosé diz, interrompendo a minha inconstância de pensamentos. — Fique tranquila, você só é uma psicóloga preocupada com uma paciente e preocupada com os seus próprios problemas.
— Acho que posso acreditar nisso — suspiro, cansada.
Dessa vez desligo o telefone primeiro, sorrindo sapeca como uma garotinha. Dois a um para mim, Rosé.
O dia é uma variação de todos os outros dias. Tenho uma roda de conversa com as pacientes até o almoço, depois, uma hora onde não faço nada a não ser me deitar em um banco do lado de fora dos prédios, com um jornal tapando o rosto e sentindo o cheiro de éter e medicamentos, enquanto ouço os gritos das pacientes, ao longe. Penso, a maior parte do tempo, nela, e quem pode ser Irene. Se é uma pessoa, uma loja, uma cidade, e como posso começar a procurar essa pista, se não posso conversar com ninguém sobre. Talvez Seulgi, mas ainda é muito cedo.
É como se a enfermeira tivesse lido os meus pensamentos. Finjo uma careta ao vê-la na porta da sala, com um sorriso que espreme os olhos pequenos e aumenta suas bochechas fofas. Os cabelos de Seulgi são escuros como a noite e possuem uma franjinha pequena, mas as enfermeiras não podem usá-los soltos, então ela prende em uma touca cirúrgica. Fica apenas uns fiapinhos da franja a mostra.
— Toc, toc?
— Até você?
— Sem piadas, Novata. Vim te chamar pra comer. — Ela dá tapinhas na porta e some da minha vista.
— Estou morta de fome! — Saio da sala, andando mais rápido para alcançá-la no corredor.
— Mas ligou para a namoradinha antes, sei.
— Rosé não é a minha namorada! — declaro, teatral. — Por que achou isso?
Seulgi pisca algumas vezes, envergonhada.
— Por nada — escolhe responder, e apressamos o passo quando nossas barrigas roncam de fome.
O refeitório é restrito a funcionários, uma multidão de jalecos brancos e expressões cansadas aparecem assim que eu cruzo as portas.
Tudo naquele lugar é branco e cinza, tão monocromático que me dá ânsia, e às vezes, à noite, gosto de folhear as revistas deixadas pela antiga moradora do quarto. Preciso de algo vivido para ter certeza que consigo ver algo além das mesmas cores todos os dias.
Seulgi me leva até a mesa das enfermeiras. A comida é alguma variação pequena do cardápio de todo dia e adiciono um lembrete mental para chamá-la para jantar qualquer noite dessas. O assunto que circula a mesa me chamou atenção depois da quarta garfada. Aparentemente, iam trocar os laudos médicos e psicológicos de lugar.
— Por que a troca? — pergunto de boca cheia.
— A fiscalização está aqui essa semana, querem vistoriar tudo — uma delas responde.
— Um entra e sai que nunca termina — outra resmunga.
— Eles precisam tomar cuidado, a segurança sempre é baixa quando acontece, e no fim, laudos a menos são engavetados. — A enfermeira ao lado de Seulgi menciona.
— O que acontece? Os laudos somem? — Me inclino até Seulgi e pergunto sussurrando, fora da conversa que as outras continuam.
— É muita gente pra tomar conta, sempre acaba sumindo alguns.
Mordo os lábios, aflita.
Nunca fui boa para manter amizades, apesar de querer com Seulgi. Rosé é uma exceção, e não a regra, não sou muito boa em manter relacionamentos de qualquer tipo, e fazer Seulgi ser demitida não está no topo da lista de como construir relacionamentos duradouros.
— Pode me levar? Mais tarde? — incito e ela pondera, me olhando com desconfiança. — Eu não posso dizer o que é, mas é importante. Confie em mim, Seul.
Esperamos a troca de plantões, é onde tem menos funcionários andando por aí em todas as especialidades do hospital. E então, Seulgi e eu, crocs amarelados e jalecos desgastados, seguimos pelos corredores pouco iluminados com o maior cuidado para não chamar atenção alguma. Ela anda a alguns passos à frente de mim e sua mão está enlaçada à minha. Não é permitido usar esmaltes no Colônia, mesmo de luvas, mas as unhas dela são pequenas e vermelhas.
Vermelho me lembra ela, Jennie Kim, minha nova paranoia, o motivo de me fazer arriscar dois empregos de uma só vez.
— É aqui. — Seulgi pára na última porta do corredor, localizada na ala dos menos afetados. É uma porta de aço grande, mas quando ela aperta a maçaneta, abre num só clique. — Precisa ficar aberta, são muitos fiscais para poucas chaves.
— Obrigada. — Fiz um gesto de preces com as mãos, preparada para adentrar no lugar.
— Nem tão depressa, Novata. — Ela coloca o braço na frente, como uma trava. — Não sei o que vai fazer aí dentro, mas algo me diz que tem a ver com a maluca do Divine, por isso, tome cuidado. — E aponta o dedo indicador em advertência. — Além do mais, ainda não sei o que eu ganho te ajudando com nisso.
Tiro a mão dela da minha frente antes de entrar.
— Um jantar amanhã à noite.
Seulgi pareceu satisfeita.
O lugar é imenso, com prateleiras de cima a baixo que parecem nunca ter fim. Pego uma pequena lanterna no bolso para iluminar o breu, mas ela tem dificuldades de cumprir o serviço. A luz amarelada e fraca dança a medida que eu aponto para as prateleiras ocupadas por caixas cheias de papéis. O cheiro é como entrar em uma livraria subterrânea.
Procuro a fileira da letra K, a subseção J e depois, o ano, 1984. A ficha de Jennie está bem ao meu alcance. Minhas mãos tremem ao pegá-la, coloco a lanterna na boca e alguns fios de cabelo para trás da orelha, enquanto folheio o que encontro na pasta.
— Jennie Ruby Jane Kim, 26 anos. Esquizofrenia Paranoide desencadeada pelo uso constante de TSM, psicoativo de efeito alucinógeno, sintético, de uso oral... — Passo mais uma folha. — Sentenciada judicialmente pela morte de cinco homens nos três dias do Festival Divine, 20 de fevereiro de 1984, 23 de... — As palavras somem até não sobrar nada a não ser incredulidade.
Quem quer que tenha feito o que acusam Jennie Kim de fazer, foi cuidadoso, limpou o local, cortes limpos e uma frieza calculada para concluir a tortura.
A médica legista informou que as vítimas ainda estavam vivas quando tiveram suas línguas arrancadas, o corte no nervo muscular não havia sinais de precisão já que o objeto utilizado fora uma faca de serra, a mesma faca foi encontrada acima da mesa onde a tortura havia acontecido. Além disso, os corpos tinham queimaduras de terceiro grau em suas bocas — acredita-se que teria sido feito com um dos maçaricos que ela utilizava na produção das drogas que vendia — os órgãos genitais foram arrancados com a mesma faca de antes, sendo colocados em conjunto com os pares de olhos, arrancados com uma chave de fenda, em um béquer de vidro grande. O peito fora aberto e o punhal utilizado no ato, estava cravado em suas testas.
Um surto esquizofrênico é bem provável que dure três dias, mas é caótico, confuso e nada calculado. É uma perturbação mental. É Impossível que uma pessoa tenha a paciência e foco para fazer o que fez para aqueles homens num surto esquizofrênico.
— Quem foi o responsável por esse laudo? — Passo as páginas, desorientada ao ler a assinatura cuidadosa da Dra. Kim Jisoo.
O silêncio é cortada por passos leves, mas quando tudo é quieto demais, até o arrastar de páginas parecem um tornado. O som é precedido de uma luz que mira os meus olhos, e preciso levar as mãos para a frente do rosto porque aquela lanterna, diferente da minha, é potente.
— O que faz aqui, Lalisa?
Minha boca se abre e a lanterna cai, o laudo de Jennie também. Mesmo que eu reconhecesse a voz dela, demora algum tempo até ver com clareza o rosto de Jisoo. Ela não usa jaleco, e sim calças de linho bege e casaco preto. Tenho certeza que esse conjunto de roupas não é capaz de protegê-la do frio lá fora.
— Eu queria dar uma olhadinha no laudo de Jennie Kim.
Ela tira a luz da lanterna do meu rosto.
— Não precisava ter entrado escondido, era só ter me perguntado. — Jisoo se aproxima. — Eu mesma escrevi.
— Que bom que... — Que bom que fui pega com a boca na butija? Maneio a cabeça em descrença e recomeço. — Fico feliz que queira tirar as minhas dúvidas.
— Dúvidas sobre...? — Ela está perto agora, perto demais.
— Tudo.
Jisoo se rompe em gargalhadas, a luz da lanterna rodopia por todo o lugar. Ela coloca a mão na boca.
— Ai meu Deus! Você tá falando sério. — Jisoo pisca algumas vezes, aturdida. — Desculpe! Pegue o laudo, podemos discutir melhor fora daqui. — Ela aponta com a lanterna para a saída. — Urgh, esse lugar fede a mofo, vamos, vamos! Espero que amanhã possam passar um paninho nesse chão... — E caminha para fora da sala.
Passado alguns minutos para que eu possa assimilar o que acabou de acontecer, eu pego o laudo jogado no chão e minha lanterna, e a acompanho.
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