017 - O que ela achou que fosse liberdade
Antes de o sol raiar a Madre Superiora começava a se preparar para desempenhar suas funções diárias. O último e mais agradável passo da sua preparação consistia na ingestão de um dos bombons da caixa dourada.
Na verdade, um ou dois bombons.
Ou três, em dias que davam a impressão de serem difíceis.
E a julgar pelos passos apressados que ecoavam no corredor, a Madre podia afirmar que aquele dia se incluiria no segundo caso. Portanto, antes de mais nada, ela enfiou mais um dos bombons e começou a mastigar com rapidez.
Havia quem pudesse confundir a pressa da religiosa com gula. No entanto a Madre desconfiava que não seria o caso do dono daqueles passos.
Ele, ou ela, parecia estar ainda mais apressada que a Madre.
Na verdade, os passos que se aproximavam da porta tinham um quê de desespero. E coisas que provém do desespero nunca tendem a perceber o ambiente em volta.
Essa era uma teoria que a Madre tinha acabado de inventar. Mas esperava que funcionasse.
– Algum problema, Mary? – ela perguntou assim que a Noviça bateu à porta.
Mary entrou de supetão, sem pedir licença, a Madre nem se incomodou em ficar surpresa. Afinal, passos desesperados são acompanhados de ações desesperadas.
– Não! – a Noviça respondeu em alarme. – Por que haveria? Estou com cara de quem tem problema?
Evidentemente, a Madre quis dizer. Mas aquele não era o jeito mais apaziguador de conduzir a situação. Por isso ela achou melhor pontuar que horas eram. Era cedo. Cedo demais. Ambas sabiam como estar de pé tão cedo não era normal para Mary.
– Foi somente uma noite mal-dormida – a Noviça falou.
Ela se preocupava mais em retorcer as mãos do que olhar nos olhos da pessoa com quem conversava.
Desse jeito o assunto não evoluiria nem tão cedo. Logo, a Madre se achou no direito de dar um empurrãozinho.
– Então temos um problema – a idosa constatou. – Se eu bem me lembro, você dorme feito uma pedra. E geralmente acorda atrasada.
A Noviça ruborizou e apertou mais firme o nó que formava com as mãos. Coitada, tinha horas que ela parecia apenas uma menina. E naquele momento ela era uma menina angustiada, um tanto quanto perdida, como se não soubesse para onde ir, nem por onde guiar aquela conversa.
– Devo ser uma noviça muito ruim para a senhora, não é mesmo? – ela perguntou com uma urgência que conseguia ser ainda maior do que a urgência que guiaram seus passos.
E perguntas urgentes exigiam respostas sinceras. Isso era uma teoria antiga da Madre, que vinha desde antes de se tornar uma religiosa. Ou seja, desde muito, muito tempo. E a Madre Superiora não era o tipo de pessoa que romper tradições duradouras.
Aliás, muito pelo contrário, ela estava ali para mantê-las. E sendo assim, respirou fundo antes de começar a dizer:
– Você como noviça eu diria que é bastante indisciplinada, assim como foi como aluna. Porém, é inteligente e esforçada. Quando te dou uma missão, sei que vai ser cumprida, contanto que não esteja relacionada à limpeza do seu hábito, devo dizer, porque aí já é outra história.
– Prometo que não vou mais sujar! – a Noviça se apressou em fazer uma promessa que, em sentidos práticos, ela não tinha como cumprir.
Mas, ainda assim, ela não deixava de ter um fundo de verdade.
– Sei que não vai – a Madre concordou antes de dar continuidade à lista de qualidades da Noviça Mary.
A Madre superior mantinha uma lista de qualidade individual para cada pessoa. Era bom ressaltar, ainda que mentalmente, o que cada um tinha de bom. Além do mais, era uma mão na roda em momentos como aquele.
Sendo assim, a Madre recitou item por item do que tinha em mente, na esperança de amenizar os ânimos da conversa.
Contudo, o tiro saiu pela culatra quando Mary questionou:
– Mas Madre, se eu tenho tantas qualidades, por que ainda não posso ser freira?
A Madre se ajeitou melhor na cadeira antes de responder:
– Você não está preparada, querida.
– É provável que eu não esteja nunca – Mary disse com uma resignação melancólica que fez a Madre voltar a se sentir desconfortável na sua posição.
– Talvez você não queira estar – a Madre rebateu.
E Mary olhou para baixo antes de murmurar:
– E esse deve ser o problema que a senhora tanto queria saber.
– Descobrir que não se tem vocação não é necessariamente um problema – a idosa pontuou.
– Eu não disse isso! – a Noviça alegou com uma voz tão aguda que parecia muito perto do choro.
Fazia tempo que a Madre não a via chorando. E não queria voltar a ver. Por mais que a situação se enveredasse por caminhos estranhos. Eram caminhos estranhos inevitáveis.
– Mas não pretendia dizer? – a Madre perguntou, indo direto ao ponto.
– Talvez.
Aquele foi o momento em que a Madre achou propício para assumir a responsabilidade por um erro que há muito ela achava que tinha cometido.
Não precisava ser um gênio para saber que Mary-Claire não tinha vocação. O que a Madre quis ao convidá-la para participar do noviciado, era lhe dar mais uma opção. Jamais pensou que seria considerada a única opção que ela tinha.
Mary era inteligente, capaz, com um tino forte para os negócios, ela tinha outras opções. O Senhor LaDonne ficaria contente em dar a ela um estágio quando ela saísse do colégio. E se Mary não tinha nem sequer pensado em seguir outro caminho na época, foi por consideração a tudo que o Colégio a ofereceu desde que ela foi acolhida ali.
E isso não era motivo suficiente para alguém seguir a carreira religiosa. Por mais que a Madre gostasse de ter Mary por perto.
Foi isso que a Madre tentou dizer à quase-ex-noviça.
Gentilmente tentando lembrá-la que era tinha outros lugares para onde ir, suavemente se desculpando por ter achado que vocação era algo que pudesse ser despertado numa pessoa.
Talvez até pudesse ser despertado, mas certamente não em Mary.
E por isso a Madre pedia desculpas, por pensar que daria certo, quando claramente não estava dando.
Mary era de grande ajuda no Colégio, principalmente com as crianças, mas isso não acontecia porque ela era boanoviça, era porque ela era uma boa pessoa, possivelmente uma boa mãe.
Ela merecia ter essa chance no futuro.
Talvez fosse hora de ela seguir seu caminho.
Talvez a hora já tivesse até passado. No entanto, Mary não parecia cem por cento segura:
– Não tenho para onde ir. Não pode me desligar tão rapidamente da minha posição.
A Madre entendia que a rapidez com que o evento se desenrolava poderia ser assustadora. Mas era assim que as coisas eram: nada acontecia até que tudo mudava.
Sair da zona de conforto era difícil. Mesmo quando ela não estava nem tão confortável assim.
– Há muita gente que adoraria uma visita sua – a Madre tratou de lembrá-la.
Afinal, os LaDonne era uma família grande, dava para serem classificados como "muita gente". E era notável o como Mary estava perpetuamente com saudade de Kara e vice-versa. Seria ótimo se elas "colocassem os assuntos em dia", ou qualquer coisa do gênero que os jovens viviam dizendo.
A Madre achou que ela ficou contente ao considerar esse ângulo da sua liberação.
Até arriscou falar:
– Deixe de cerimônia, não precisa esconder o sorriso. Vá fazer suas malas.
E Mary foi. Não sem antes dar um abraço apertado na idosa e sair saltitando pelo cômodo.
– Mary, e seu trabalho com Theodore Hopkins? – a Madre questionou antes que a agora-ex-noviça saltitasse cômodo a fora.
Seus saltos pararam de repente, ela tentou segurar o sorriso no rosto, mas dava para notar o esforço.
Ela se esforçou também em parecer despreocupada ao falar:
– Ele já sabe tudo que tem que saber. Vai conseguir se virar sozinho.
– Quem sou eu para duvidar de sua dedicação em seus ensinamentos... – a Madre comentou sem deixar transparecer o quanto àquilo a agradava.
Theodore Hopkins era um bom rapaz. Tinha lá suas falhas, mas era um bom rapaz.
Não que isso fosse um assunto apropriado para aquela hora da manhã.
Um passo de cada vez. Grandes mudanças também podiam ser feitas por etapas. E a etapa atual era deixar Mary ir embora do Colégio.
Com um último pedido para não sujar o hábito, só para coroar a memória.
Mary saltitou mais uma vez em direção à saída.
A energia dela nunca deixou de ser um pouco infantil, ou travessa. Por mais que ultimamente ela não tivesse tido a oportunidade de se exercitar nesse quesito, a Madre arriscava a dizer que Mary poderia ser classificada como uma pessoa aventureira.
E não tinha como negar que aquela seria uma bela aventura de re-estreia.
A Madre não duvidou disso nem por um segundo.
Sendo assim, ficou faltando adjetivos para descrever o tremendo anticlímax que se instalou ali naquela mesma sala quando, quatro horas mais tarde, ainda a tempo do almoço, Mary voltou falando:
- Acho que cometi um erro. Será que a senhora pode me aceitar de volta?
E existia menos adjetivos ainda para descrever o aperto no coração da Madre quando ela se viu na obrigação de falar:
- Mary, não é assim que funciona.
_________________________________
Olá! Quanto muitíssimo tempo! Como vão vocês?
Se você chegou até o final dessa capítulo, quero agradecer por não desistir de mim, nem dessa estória. Mais de um ano se passou, "O Mundo dá Voltas" se acabou, eu lancei dois(!!!) livros de contos com autores maravilhosos e agora é hora de colocar meu esforço e força de vontade aqui de volta.
Mas preciso da ajuda de vocês, tá?
Tô MUITO AGRADECIDA por todo mundo que ainda me cobrava o desfecho da nossa noviça, é por vocês que eu tô continuando isso aqui e espero muito (muito mesmo) que vocês fiquem felizinhos com a volta.
Esse capítulo é mais uma recapitulação do que aconteceu no capítulo anterior do que qualquer outra coisa, tirando esse finalzinho bombástico, né? Mary foi, mas não foi, como é que vai funcionar essa história?
Pretendo trazer essa resposta no domingo, mas não PROMETO porque preciso achar meu ritmo de escrita outra vez. Ganhei um cãozinho na semana passada e minha vida virou de ponta cabeça. Ele é tão lindo que não consigo prestar atenção em outra coisa (quem quiser admirar a beleza dele junto comigo é só me seguir no instagram: aimeeoliveira, igual aqui).
E preciso dizer que estrelas e comentários são um belo de um incentivo pra eu encontrar o ritmo perdido? Pois eles são! Então, por favor, quem puder, dá pra me dar essa forcinha?
Desde já agradeço. E aviso que as noticias de postagem e tudo o mais vai ser postado no grupo de leitores do Facebook (invisibilidade & aimee oliveira).
Por último, queria GRITAR e ao mesmo tempo informar que fui selecionada junto com 9 outros autores do Wattpad pela editora Abril pra fazer parte de uma antologia chamada "Mundos Paralelos". Eu participei com um conto muito fofo sobre uma menina que só tem um robô como amigo. O livro começou a vender na sexta passada e pode ser encontrado nas livrarias e nas bancas de jornal. Quem quiser dar uma lida, o livro tá uma GRAÇA e adoraria saber o que vocês acharam do meu conto.
É isso. De volta com a programação de BEIJOS ESTRELADOS*
É sempre muito bom voltar.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro