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Paraíso.



"Quando penso na minha vida, gosto de imaginar que ela não começou no exato momento em que minha mãe me expeliu de seu corpo, e senti o ar penetrar meus pulmões pela primeira vez, mas sim naquele dia conturbado, nos meus quinze anos, quando a Heaven enxergou o mundo, segurou minha mão, e nós duas finalmente nos tornamos uma só."

...

É difícil lembrar a data exata, já que naquela época, todos os dias eram iguais. Mas pelo calor, e pelo canto dos pássaros, que ainda surgem vez ou outra em minhas memórias, chuto que foi no verão.

Não fazia muito tempo que tinha me esgueirado as escondidas de volta para meu quarto, e já estava ouvindo o barulho do despertador. Apanhei a farda da escola, alguns números menores que o meu, para que ficasse justa. Escovei os dentes e encarei as olheiras no espelho, feliz por meus cabelos crespos e negros já estarem quase passando da orelha.

Qualquer pessoa que entrasse em minha casa sabia que minha família era privilegiada. Os corredores largos, cheios de vasos e quadros, levavam para o maior cômodo da construção, uma sala com cozinha, onde ela já esperava.

Minha mãe, uma senhora baixinha, de traços asiáticos, falava no telefone enquanto tirava croissants do forno. Assim que bati os olhos em seu rosto inchado, já sabia que meu pai estava em casa.

–Por que esse sorriso idiota a essa hora da manhã? – A voz grave do meu pai surgiu atrás de mim, me fazendo olhar para o chão.

–Nada, eu só... Acordei de bom humor.

–Sei...

Minha mãe nem disse nada. Tomava seu café calada, tentando disfarçar o olho inchado com maquiagem.

Ela sempre fora uma figura misteriosa para mim. Lembro que era uma artista renomada, algo bem raro naquela época conturbada, em que pouquíssimos ilustradores conseguiam viver do seu trabalho.

Já meu pai era o contrário. Ele era policial. Um homem enorme, musculoso, sempre com uma expressão odiosa. Naquela época, achava que era assim por ser preto, e precisar ter uma atitude defensiva para aturar o preconceito, algo recorrente na sociedade pós-moderna do Brasil...

...Mas as vezes, quando paro pra pensar, acho que estava enganada.

–Que porra você acha que tá fazendo? – Ele gritou assim que apanhei um pedaço de pão.

–Eu só...

Naquela manhã, como todas as outras, sequer pude responder...

...Pois eu não tinha voz.

Senti a mão do meu pai apertar a parte de trás da minha cabeça, e a empurrar contra a mesa. A pancada foi tão forte, que por um instante, esqueci quem eu era, e o que estava acontecendo.

Claro, aquilo não era o suficiente para ele. Minha testa se chocou contra madeira mais um, duas, três vezes... E quando o sangue já manchava o mogno, ele me arremessou no chão.

–Que porra de cabelo grande é esse? Eu já disse que não vou sustentar viadinho nessa casa!!!

Eu sequer cheguei a chorar...

Não era a primeira vez que aquela cena se repetia em meus olhos. Até aquele momento da minha vida, nunca pude deixar meu cabelo passar de dois centímetros, portanto, por mais que tentasse me enganar...

Já sabia que aquilo ia acontecer.

–Jorge!!! Para!!! – Minha mãe gritou, se jogando entre nós dois – A culpa é minha, eu esqueci de levar ele pro barbeiro!

PÁ*

O braço forte e musculoso dele se chocou contra o rosto dela, fazendo seu corpo pequeno cair no chão.

–É sempre culpa sua!!! Tudo de ruim nessa casa é culpa sua! Eu não sei por que ainda perco meu tempo aqui com você!!!

A perna do meu pai voava pra lá e pra cá, chutando a barriga da minha mãe, e ainda assim...

...Ela não dizia uma palavra, sequer gemia.

–Já chega! Vou pra delegacia. Se eu voltar e esse moleque estiver com cabelo de menina...

...Vou matar vocês dois.

...

–Nem pense em falar nada! – Ela resmungava enquanto me arrastava pelos corredores do hospital – E segura esse pano direito, não quero eles vejam sangue no chão e pensem que é pior do que está!

Aquela cena também era recorrente, tanto que os médicos e enfermeiras já estavam acostumados a me ver ali. Eu sempre percebia a forma que eles olhavam para minha mãe, os rostos e expressões de desaprovação. Na época eu me perguntava o porquê de nenhum deles fazer nada, mas hoje eu sei o motivo.

Minha ficha era vermelha, eu era filha de um oficial da lei, se qualquer um deles ousasse fazer algo, perderiam o emprego na hora, e teriam muita sorte se um carro preto do governo não estivessem os esperando do lado de fora do hospital.

–Acidente de novo? – A médica resmungou enquanto a enfermeira fazia os curativos.

–Pois é, desculpa... – Minha mãe sempre repetia as mesmas palavras.

–Pelo visto a senhora também se machucou dessa vez.

–Sim, batemos com o carro...

E novamente, a médica repetiu aquela mesma pergunta, encarando minha mãe com seus olhos relutantes:

–Senhora, tem certeza de que foi um acidente?

–Claro que tenho! E vai rápido com isso, que ainda vou levá-lo para a escola.

...

Sim, mesmo com três pontos na testa, eu fui para escola. Até hoje eu não sei direito o que minha mãe pensava, mas dou crédito por ela querer que eu não perdesse aula, mesmo que todos fossem julgá-la ainda mais.

Naquela manhã, eu ignorei o professor e apenas observei o jardim pela janela. No fundo eu já sabia que não ia me formar e ir para uma faculdade, aquela não era minha vida... Quando estava entre as paredes cinzas, e corredores cheios de adolescentes fúteis de classe média, sentia como se estivesse numa espécie de limbo.

Ninguém nunca falava comigo. Bom, eu sempre ouvia as mesmas palavras pejorativas, palavras feitas para me diminuir como pessoa, apenas por causa da minha feminilidade. Aquilo não me incomodava, não mais. O que me fazia respirar, e continuar viva, naquele inferno miserável, era exatamente o lado que a sociedade desprezava...

...Meu paraíso.

Claro, tinha um garoto. Seus cabelos estavam sempre caindo sobre o rosto, e seus olhos tinham cor de escuridão. Ele fora o único que nunca disse nada maldoso sobre mim, na verdade, ele não era de socializar, passava os intervalos lendo livros sobre figuras revolucionárias. Ele era tão apagado, que só o notei, quando certa vez derrubei minha caneta. Ele a apanhou, e me entregou com um sorriso... Estranho, sincero, mas ao mesmo tempo, doloroso... Ninguém nunca sorriu para mim daquele jeito.

Nós nunca nos falamos muito, e no fundo, eu gostava disso. Naquele dia em especial, senti que era o momento de tentar, mas tive medo de descobrir o que existia por trás daquele sorriso doloroso, de perceber que aquela fantasia não passava de uma máscara, e que no fundo, ele era igual a todos os outros.

Às vezes, as palavras mais bonitas, são aquelas que nunca foram ditas.

...

Ao chegar em casa, minha mãe já me esperava com uma máquina de raspar cabelo recém comprada.

Eu queria dizer tanta coisa, queria gritar, enfiar a máquina na garganta dela, ou só raspar seu cabelo, para que ao menos uma vez na vida, aquela vagabunda se sentisse no meu lugar.

Mas eu não fiz nada, meu cabelo foi raspado, e quando encarei aquela imagem doentia, ainda mais horrível do que podia suportar, eu corri para meu quarto e me tranquei.

As horas se passaram, minha mãe bateu na porta na hora do jantar, mas apenas a ignorei. Continuei deitada, encarando o teto no escuro, vendo cada minuto daquele dia de merda passar em frente aos meus olhos, até que o relógio bateu meia noite.

Minha hora chegou.

Arranquei um pedaço de madeira que ficava por baixo do meu guarda-roupa, e encarei as coisas que mais me traziam felicidade: Um batom rosa, um sutiã com enchimento, algumas maquiagens, uma peruca loira, um vestido vermelho e um par de sapatos salto alto.

Passei horas fazendo a maquiagem perfeita com o pouco que tinha, me preparando para finalmente voltar a ser eu, e quando acabei, observei o resultado no espelho.

Não era perfeito, tinha tanta coisa errada, tanta coisa que eu queria mudar naquele rosto... Naquele corpo... Mas ainda assim, estava grata, mesmo que tivesse tão pouco, era melhor do que não ter nada.

Apanhei minha bolsa, pulei a janela e caminhei pela escuridão. O toque de recolher já tinha batido a várias horas, não seguir era um crime, e como vivia numa vizinhança de classe média, com poucos guardas, não me preocupei de encontrar alguém que me dedurasse.

Quando cheguei no parque, o ponto de prostituição mais famoso da cidade, finalmente consegui ficar calma.

A imagem das outras garotas, sorrindo para mim, é algo que guardo com dor e felicidade em meu coração. Estávamos juntas, num ato considerado de perversidade para a sociedade, mas todas nós sabíamos da nossa realidade: Era aquilo, ou a morte.

Não me levem a mal, vender nossos corpos não era o que nos tornava indecente, afinal, dava para encontrar prostitutas a torto e a direito em todas as áreas da cidade.

Nosso crime era ser quem somos, era vestir as roupas que vestíamos, era a necessidade de ser vista, de ser tratada, como mulheres. Muitas precisavam do dinheiro, algumas pra conseguir os hormônios no mercado clandestino, outras para poder comprar comida para a família, mas naquela sociedade podre cercada de armas e morte por todos os lados...

...Nós só queríamos ser vistas por dentro.

Eu puxei um cigarro que tinha roubado da minha mãe e acendi, sentada bem na ponta do parque. Não demorou muito para que procurassem meu serviço: Um carro preto parou bem em frente, e uma mão surgiu da janela, chamando minha atenção.

–Caralho, você é muito linda, sabia?

A voz grave ecoou em meus ouvidos, me deixando ainda mais extasiada por um homem me elogiar como a mulher que sou.

–Entra aí, não importa quanto cobra, eu quero você – Ele sussurrou.

Soltei um sorriso abobado, joguei o cigarro no chão, e entrei no carro.

A iluminação da cidade era fraca. Graças ao toque de recolher.

Sequer conseguia ver seu rosto.

–Qual seu nome? – Ele questionou.

–Heaven – Eu respondi.

–Como o paraíso, não é?

Aquela era a intenção. Minha vida era um inferno, eu odiava cada segundo, mas quando podia ser eu mesma...

...Me tornava meu próprio paraíso.

–E o seu? – Eu questionei.

Mas ele não respondeu.

Meus olhos bateram sobre seus braços fortes guiando a direção, sobre a pele negra que tanto parecia com a minha, sobre o olhar mal-encarado na sombra, a aliança no dedo, a respiração, o jeito...

–Eu sou policial, tenho esposa e filho, não posso falar meu nome.

Em todos os lugares, a luz viaja, refletindo as bordas, atravessando a escuridão do espaço, sempre tocando todas as superfícies. Apenas um pequeno feixe, penetrando o para-brisas, foi o suficiente para me fazer perceber.

O homem que dirigia aquele carro, que falou de forma doce comigo, que me tratou como uma dama, sorrindo e passando a mão sobre minha coxa...

...Era meu pai...

O sentimento que invadiu minha mente naquele momento, continua fresco na minha memória. Inicialmente... Pavor, de ser descoberta, de ir para prisão, de ser morta ali mesmo e ter o corpo abandonado, jogado numa vala, como se eu fosse descartável... Mas depois, fui tomada por ódio, daquele filho da puta desgraçado bater na própria filha, e ter a audácia de...

...Para ele, alguém como eu, servir apenas para transar.

Ele me levou para um motel, e quando descemos do carro, quase não conseguia conter o medo de que me reconhecesse...

...Eu não podia morrer...

–O que acha? Bem confortável, né?

Ele ligou o interruptor do quarto. Senti a luz bater dentro dos meus olhos, pensei em olhar para o chão como sempre fazia, para que ele não notasse, mas quando vi o seu sorriso, eu percebi...

...Meu pai me odiava tanto, que nem me reconhecia.

Não demorou muito para ele me encarar de perto, e começar com os sussurros.

"Seu corpo é delicioso..."

"Você é perfeita, sabia?"

"Quero saber o tamanho do que guarda por baixo dessa calcinha"

Meu corpo se tremia de nojo e medo. As unhas enfiadas na carne da minha mão, a raiva pelo sofrimento de ser abusada todos esses anos, por minha mãe não ser nada mais do que uma boneca de ossos que apanhava todo dia.

–Eu vou só tomar um banho, tudo bem? – Comentei.

–Pra que?

–Quero ficar limpinha pra você me ter.

–Nesse caso, tudo bem – Ele comentou, tirando a camisa, apanhando a pistola do cinto e colocando sobre a cabeceira, bem ao lado da cama.

Eu me tremia tanto, e estava tão desesperada, que quando me encarei no espelho, percebi que não parava de chorar. Mas eu não estava triste, chorava de ódio, chorava de medo, sentindo a dor monstruosa escapar de dentro, revivendo bem diante dos meus olhos, todas as vezes...

...Que ele me machucou, que ele me humilhou, que ele me torturou...

...Que ele tirou minha voz...

Quando saí do banheiro, ele já estava de cueca.

–Uau!!! – Ele murmurou da cama ao me encarar só de calcinha e sutiã – Você é gostosa demais! Quantos anos tem?

–Quinze – Respondi, caminhando lentamente até o lado da cama.

–Vejo que não colocou nenhuma porcaria nos seios, eu prefiro assim, ao natural...

Sua mão passou pelas minhas costas, senti seus lábios sobre minha barriga, sua pele me tocar com carinho, após quinze anos me tocando com violência.

O empurrei e me sentei em seu colo. Passei a mão por sua barba impecável, encarando aquele rosto que tanto me dava repulsa.

–Gosta de transar com uma travesti, não é?

–Sim... Eu amo... – Ele respondeu, apalpando minha bunda, enquanto estendia minha mão até a cabeceira.

–Gosta tanto que não percebeu, que está prestes a transar...

...Com o próprio filho?

POW*

O sangue se espalhou por todos os lados, deixando as paredes com tons escarlates. O metal frio da sua pistola, contra a minha pele, causava um arrepio confortável. O deleite de ver o pouco de fumaça escapar do cano, o cheiro de pólvora, de poder, só não me agradava mais do que seus olhos...

Olhos...

Presos eternamente com o mesmo sentimento de pavor, mesmo que estivessem sem vida... Presos no momento em que observava meu rosto... Presos enquanto admirava...

...O primeiro sorriso, que dei na vida, em quinze anos.



...



"131 pessoas transexuais foram assassinadas por motivos de preconceito no Brasil, apenas em 2022. Entre elas, 130 eram mulheres. Um número pequeno comparado as travestis e transexuais que sofrem abuso físico na rua, e até na própria casa, realidade que as faz abandonar o lar, os estudos, e se prostituir pela falta de oportunidade de emprego, resultante do preconceito. Atualmente, o Brasil é o país que mais mata mulheres trans e travestis no mundo, pelo 14º ano consecutivo."

Se você sofreu ou presenciou qualquer tipo de violência discriminatória quanto uma pessoa trans ou travesti, denuncie. Não são só números e estatísticas, são pessoas, como eu e você, que tem amigos, família, alguém que as ama esperando em casa. Quebre o silêncio, grite, não tenha medo, pois sua voz pode impedir alguém de ser a próxima vítima.

Fonte: ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais)


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