| Paradise |
Atenção: este conto é baseado na música Paradise (Never Change) do Jack & Jack. A mídia se encontra disponível no capítulo único.
https://youtu.be/y27UfGrBxX8
O mundo está acabando.
É isso.
Não é no sentido figurado não, é real. Ele chegou, o tal do apocalipse. Ninguém sabe exatamente como, mas chegou. Teve até data no calendário: dia 31 de outubro. Essa mesma data que dizem ser o Dia das Bruxas e tal. Coincidência ou não, tá aí: no dia 30 estava tudo normal, e no dia seguinte, bum! Já não estava.
Aí você vem me perguntar: como a gente sabe que é o fim do mundo?
Bem, além de todo o mundo estar nomeando assim, tudo nos leva a crer que é isso mesmo.
Sabe: tufões, tsunamis, vulcões explodindo em todos os lugares. Terremotos onde seria impossível de acontecer. A Terra basicamente se quebrando toda e se revoltando contra a humanidade. Um monte de desastres, um atrás do outro, sem aviso prévio.
Não vou mentir que nunca brinquei com isso e que nunca disse um "até que enfim" quando anunciavam um apocalipse novo, mas agora, vivendo ele de verdade... não sei. Eu ainda quero que o mundo acabe, sabe, mas podia acabar mais rápido, né? Tá sendo um pouco inconveniente, confesso. E cansativo pra caramba! Mesmo tendo assistido aqueles programas na TV antigamente, esse negócio de sobrevivência não é pra mim. Nem pra ninguém da minha família, acho.
Deixa eu contextualizar pra vocês que ainda não estão no fim do mundo — ou se ele já acabou e você sobreviveu e tá lendo isso num futuro pós-apocalíptico (Vai que?).
Apesar do uso do calendário ter mudado um pouco (passamos a ver o tempo antes e pós apocalipse, se é que entendem), sabemos que o ano já virou e que faz uns três meses que estamos nessa onda de catástrofes sem explicações. E todas elas obviamente levaram a mais ondas de efeitos colaterais aleatórios. Tipo a paralização dos transportes; não dá pra ficar andando de carro ou ônibus por aí porque, de repente, aparece uma cratera e te engole. Não dá pra usar avião porque as chuvas de granizo estão incessantes, os raios estão atingindo tudo no caminho, e a velocidade do vento está inexplicavelmente mortal. Navio então? Nem pensar. O mar virou território inalcançável, ondas enormes e animais enfurecidos, coisas das profundezas surgindo e tal.
Então quem estava fora, ficou fora. Quem está dentro não sai.
E daí as empresas de telecomunicações também começaram a falhar — sabe como é, esse monte de gente usando rede social pra falar que um peixe carnívoro apareceu no quintal da sua casa no meio do deserto de Dubai, ou que os leões estão invadindo as cidades na África... ou simplesmente pra postar que as escolas pararam e que finalmente a gente pode ficar em casa pra sempre sem estudar (seja lá quanto tempo esse pra sempre vai ser, né). Essas coisas fizeram os sistemas de comunicação pirarem. Parece que o apocalipse chegou no espaço também, porque os satélites quase todos pifaram.
As linhas telefônicas estão uma bagunça. Boa parte não funciona mais. Muitos serviços pararam, inclusive a internet virou artigo de luxo (de novo). A energia elétrica vai e volta quando bem entende, a higienização das ruas não existe, os serviços de entregas desistiram... Os supermercado estão quase vazios porque não há reposição de estoque. E água e comida saudáveis estão quase escassas. Uns dão sorte, outros dão mais azar, como sempre foi. Um dia de cada vez.
Mas o pior nisso tudo são as pessoas.
As pessoas surtaram!
Muita gente largou emprego pra ficar com a família — ou o emprego simplesmente deixou de existir mesmo. Outros pegaram o carro e foram viajar, encontrar parentes, fugir, sei lá! Abandonaram as casas, os cachorros (tadinhos), tudo! E as pessoas que restaram começaram a ficar violentas. De verdade.
Polícia? Exército? Não sei nem onde estão. De vez em quando aparece um carro ou outro por aí, mas a confusão nas ruas é tanta que ninguém se dá o trabalho de chamar as "autoridades" pra coisas "menores", digamos. Cada um resolve do jeito que acha mais certo.
É cada um por si.
Então um dia desses eu acordei e pensei: cara, o mundo tá mesmo acabando.
Foi um choque, sabe? A ficha caiu tarde demais, acho, porque só depois de mais de três meses é que percebi que não vivi nem metade do que a expectativa de vida dizia que eu iria viver — eu tenho só dezessete anos, caramba!
Tem tanta coisa ainda que quero viver! O mundo é tão grande, cheio de lugar bacana que eu não vi. Paisagem, gente, animal. Eu não vi nada desse "paraíso" que dizem ser a Terra. Não fiz nada do que queria fazer.
Na mesma hora saí de casa (que eu felizmente ainda tenho) e fui até meu amigo Hippie. O nome dele não é esse, mas até a casa do Hippie me lembra um Hippie: nos fundos de um prédio agora abandonado, um pano pendurado servindo de porta, planta por todo lugar, fumaça de cigarro... e ele. Sentado na mureta da varanda, fumando sei lá o que no meio de um matagal que já não era cortado nem antes do apocalipse, imagina agora.
Eu nem sabia que ele fumava... mas é o fim do mundo, né, cara?! Isso não vai importar porque não vai dar tempo de morrer de câncer.
— Sei lá, cara, acho que a gente tem que aproveitar a vida que nos resta, saca? — é o que ele diz quando eu pergunto sobre o cigarro na boca dele. — Viver experiências.
Hippie nunca foi dos mais inteligentes, mas agora ele tava cheio de sabedoria.
Pedi pra dar uma tragada no treco; quase morri asfixiado enquanto ele ria da minha cara.
— Tá aí, cara! Mais um item pra você riscar da lista de coisas que você ainda não fez antes de morrer.
Lista de coisas que eu ainda não fiz...
Eu nunca tinha refletido sobre isso, mas foi só ele mencionar que os outros itens dessa lista imaginária foram pipocando na minha cabeça.
Tanta coisa, tanta coisa...
— Puta merda, eu vou morrer sem ter feito nada da vida!! — eu tava começando a surtar também.
Talvez tivesse sido por isso que as pessoas largaram tudo. Eu só não tinha muita coisa pra largar...
— Relaxa, maninho Gus. Ainda dá tempo, ó! Mas só se você correr atrás agora — ele dá mais uma tragada no cigarro e ri, meio afetado. — Viver a vida, mano, tem que viver até o último segundo...
E foi aí que comecei a organizar mentalmente minha lista de coisas a fazer antes de morrer.
O primeiro item era beijar na boca.
Qual é, eu tenho dezessete anos, você queria que eu pensasse no quê?
Bem, então. Definitivamente eu não podia morrer virgem, pelo menos não virgem de boca. Um passo de cada vez, pensei. Um pequena passo de cada vez...
Não é que eu nunca quisesse ter beijado alguém, mas nunca quiseram nada comigo. Eu sou meio invisível, sabe? Do tipo que ninguém sabe que existe dentro da sala de aula. Nem na minha própria casa me notam às vezes. De exemplo vou dar a minha saída até a casa do Hippie: eu só falei "tô saindo" pro meu avô e ninguém perguntou mais nada. Mesmo o mundo estando literalmente acabado lá fora e a possibilidade de eu não voltar ser real.
Mas eu voltei. E nem quando voltei me perguntaram alguma coisa, nem pra saber se eu tava ferido ou traumatizado, sei lá.
Se fossem outros tempos, acho que ficaria feliz de não ser importunado. Que adolescente não ficaria? Mas eu tava meio pra baixo, me sentindo excluído. Porque todo adolescente que eu conhecia já tinha pelo menos beijado na boca, menos eu.
E eles também tinham aqueles pais que não os deixavam sair de casa por causa do apocalipse.
Menos o Hippie, porque os pais dele eram hippies e não ligavam pra isso.
Vagando de volta pra casa, no meio da pancadaria das ruas (um carro pegando fogo ali, uma loja sendo saqueada aqui, essas coisas normais de fim de mundo), passei em frente à padaria do Seu Zé, onde meu avô comprava pão toda manhã. Os vidros estavam todos quebrados, a porta na horizontal, estirada na calçada junto de cacos de vidro... e lá dentro tinha um casal em cima do balcão do caixa. Transando.
Eu disse que o maior problema do fim do mundo eram as pessoas.
Voltei com aquela visão dos infernos grudada na cabeça, meio que me servindo de motivação. Cheguei em casa, peguei um caderno velho e rabisquei a lista, tornando-a mais real agora. No escuro mesmo, já que a energia naquele dia não tinha dado o ar da graça. Fiquei olhando pro contorno do lápis na minha mão e pensando quais eu gostaria que fossem meus últimos desejos.
Dezessete anos de existência e eu não tinha feito nada na vida. Nadinha mesmo. Só... sei lá, empurrado tudo com a barriga.
Queria aprender a dirigir (adicionado à lista), pegar um carro e sair dirigindo por aí meio sem rumo (idem), ver o pôr do sol num lugar bacana (mais um item), viajar pro exterior (acho que esse não vai rolar...), nadar pelado na praia, talvez?
Daí notei que fazer aquilo tudo sozinho era meio deprimente também.
Pensei na minha mãe preparando a janta, meu pai sentado lendo um jornal velho (eles já tinham parado de produzir isso também) e meu avô em frente à TV desligada, resmungando. Nenhum deles sairia de casa pra fazer qualquer uma dessas coisas — eles já tinham vivido bastante, acho. Tanto que nem estavam ligando muito pro apocalipse.
Eu é que tinha que correr atrás mesmo.
Olhei pro meu caderno na penumbra. Li a primeira palavra, "beijar", em voz alta. E meu cérebro completou a fala sozinho.
— Beijar... na boca do Tiago.
Espera... do Tiago?!
O rosto dele preencheu minha mente. Tiago sorrindo na prova de matemática, Tiago tocando bola com os novatos, Tiago ficando vermelho na aula de Corpo Humano.
Tiago na quinta série, na sexta, no primeiro ano do fundamental. Tiago mudando de sala, depois voltando pra minha. Tiago falando: "Oi, Gustavo, nos encontramos de novo" pra mim. Eu felizão de ter ele na carteira do lado — pra colar na prova e pra ver ele anotando tudo bonitinho no caderno com aquela letrinha redondinha dele...
Minha nossa senhora. Eu tinha uma queda enorme pelo Tiago desde... sempre.
O que será que tinha acontecido com ele?!
Entrei em pânico pensando que fazia quase quatro meses que eu não o via. Será que ele estava bem? Será que estava sobrevivendo ao fim do mundo? Será que continuava sorrindo?
Será que ele se lembrava de mim, ainda sabia meu nome?
Minha mãe serviu o jantar (repolho, cenoura e um sopa que mais parecia água de chuva salgada), mas eu nem consegui comer direito. Fiquei pensando no Tiago, é claro. Quando terminei, decidi que tinha que ver se ele estava vivo naquele instante, porque nem eu sabia se estaria vivo na manhã seguinte. Não dava mais pra ficar postergando as coisas, né?
— Mãe, vou sair. — eu avisei, enquanto ela passava jornal nos pratos pra limpa-los. Tínhamos que economizar água pra beber e fazer comida, afinal.
Lembrei que eu não tomava banho há... sei lá quanto tempo, fiquei até com medo de levantar o braço e dar uma cheirada pra ver como tava o estado. Balancei a cabeça pra tirar o pensamento das vistas. Aquilo era só um detalhe qualquer.
Minha mãe não levantou os olhos da pia, só murmurou um "uhum, não volte tarde" e eu completei:
— Não sei nem se eu volto.
Ela aí sim olhou pra mim, meio desdenhosa, e suspirou:
— Volta sim, Gustavo. O Seu Zé tá guardando a rua. Se alguém tentar te atacar, ele vai atirar, não se preocupe.
— Seu Zé, o velhinho da padaria?!
Só que o Tiago não morava na minha rua — não era longe, era até no mesmo bairro, mas não dava tempo de descobrir se o Seu Zé ia conseguir me proteger até lá. E, pra falar a verdade, eu não tava era nem aí se ele ia. Eu tinha que sair e meio que não ligava muito se ia voltar inteiro ou não.
Então eu fui.
Eu sabia onde o Tiago morava porque já tinha seguido ele antes pra descobrir, quando estávamos na oitava série, acho. Não me pergunte o motivo (eu não lembro também). Só sei que a visão da casa de dois andares deixou sua marca na mente do meu eu mais novo. Afinal, não era todo mundo que morava numa mansão.
A casa dele continuava lá, intacta, cheia de arbustos crescidos em volta do murinho baixo que a separava da calçada. Uma construção estilo americana, com árvores e plantas em todos os lugares, meio que crescendo a esmo por, talvez, não terem sido cuidadas.
Será que eles não estavam ali mais?
Não pensei duas vezes: pulei o muro e fui rodeando a casa. Os arbustos tinham espinhos, então tive uma certa dificuldade de locomoção. Fiquei me esquivando feito um tetris pra evitar encostar neles, mas chegou um momento que ficou meio impossível e os espinhos grudaram na minha bermuda, fincando minha pele por debaixo.
Xinguei, praguejei, pulei mais umas moitas e consegui alcançar os degraus de frente à porta. Aí parei pra perceber que eu não podia simplesmente tocar a campainha. Estava escuro e era o fim do mundo: qualquer um em sã consciência não abriria a porta pra alguém que tocasse à campainha nessas condições.
Pra não encostar nas moitas cheias de espinhos, me equilibrei no rodapé que contornava a casa. Eu podia subir numa das árvores e ver se um dos quartos lá de cima era o do Tiago...
É, dava pra fazer.
Fui pé ante pé. Minha coxa coçava dos espinhos, tava dolorido e pinicando ao mesmo tempo. Alcancei uma janela no primeiro andar, na lateral, e apertei o olho pra ver lá dentro. Percebi que havia uma vela acesa bem no meio da sala. Dava pra ver que um sofá bloqueava a porta de entrada e os móveis estavam todos espalhados de forma esquisita. Mas também dava pra ver que tinha gente em casa, por causa da vela.
E pelo rosto que apareceu no vidro da janela na minha frente.
Soltei um grito e escorreguei do rodapé, caindo em cima de um enorme arbusto espinhoso.
— Ai, minha bunda! Puta que...! — xinguei mais um pouco, sem me preocupar muito com o altura da minha voz.
Resmunguei, chutei as plantas pra longe de mim e me olhei pra avaliar o estrago, me esquecendo momentaneamente do que tinha causado minha queda. Fiquei ajoelhado, tirando os espinhos da coxa e das nádegas, até a janela se abrir e alguém enfiar a cara pra fora.
Bem, pelo menos não era uma arma. Era uma garotinha com olhos grandes, arregalados.
— Você se machucou? — ela perguntou, genuinamente preocupada.
— Hm... — era loucura deixar uma menininha sozinha numa casa daquele tamanho àquela hora da noite, então ela só podia estar acompanhada. Eu só tinha que ter certeza e não assustá-la no processo. — Estou bem. Você tá sozinha?
Ela me olhou por um instante e depois desapareceu janela adentro. Como eu estava ajoelhado no chão, não dava pra ver o que se passava na sala da mansão. Só ouvi uma voz grossa e apressada mandando a menininha sair da janela.
— Mas tem um moço ali, e ele tá machucado. Não pode deixar gente machucada lá fora... — ou a ouvir dizer.
Crianças.
Daí outra cabeça apareceu na janela.
Um garoto. Os cabelos negros escorrendo pelas bochechas e pela testa.
Estava escuro e dolorido, mas eu o reconheceria em qualquer lugar.
E, aparentemente, ele também.
— Gustavo?! — ele guinchou, surpreso. — O que você está fazendo aqui?
— Você tá vivo! — eu guinchei de volta, deixando-o extremamente confuso.
Ele lembrava de mim!
— Ele tá machucado! — a menininha apareceu ao lado do Tiago e apontou pra mim. — Olha, espinhos!
Ela tinha razão. Tinha espinho pra tudo quanto é lado em mim, no chão, nas plantas.
— Como é que você conseguiu chegar até aqui?! Você ficou maluco? Meu pai colocou um monte de armadilha no jardim e no quintal, e tá cheio de espinho nos arbustos e... e em você.
— Estou ciente da situação. — eu digo, doído. — Podemos, hm, conversar?
Tiago pisca, olha pra escuridão e pergunta se eu consigo me levantar e pular a janela.
— É mais fácil, porque não sei onde estão as armadilhas. E o sofá tá bloqueando a porta. Se eu arrastá-lo, meus pais vão acordar. Acredite, vai ser pior.
Então eu fiz o meu maior esforço pra levantar, me içar e pular pra dentro da mansão do Tiago pela janela da sala. Ele e a menininha me ajudaram como puderam, fechando a janela em seguida. Já na parte de dentro, pude terminar de tirar os espinhos da minha bunda enquanto a garota pegava água pra mim à pedido do Tiago.
— É minha irmã mais nova, Clarisse. — ele explicou. — Ela tem dificuldades em dormir de noite porque a coleguinha, que tá dormindo no quarto dela agora, tem muitos pesadelos.
— Hmm. — foi só o que consegui expressar enquanto ele me via tirando os espinhos.
Tiago suspirou.
— Você vai ter que tirar a roupa pra ver se não sobrou nenhum. — Clarisse voltou com a água bem nesse momento constrangedor. — E você, mocinha, vai voltar pro quarto agora. Não pode ficar aqui embaixo sem um adulto, você sabe disso!
— Mas a Deia tá chutando as coisas de novo... — a menininha fez beicinho e Tiago se abaixou pra ficar na altura dela, suspirando pacientemente.
— Eu sei, mas você pode acordá-la e pedir pra ela se acalmar, como da última vez, lembra? A noite está bem silenciosa hoje, dá pra vocês dormirem bem. Vai, tenta, por mim. Tudo bem?
A menina cede rápido demais, abraçando o irmão, e sobe as escadas correndo, deixando Tiago e eu a sós.
Realmente, a noite estava silenciosa demais ali dentro, considerando que lá fora carros estavam sendo explodidos, tiros sendo trocados e gente gritando por tudo quanto é lado.
Tiago me pede pra subir também, porque ali embaixo era meio assustador e perigoso, e diz que vai me emprestar uma roupa, mas que é pra eu fazer o mínimo de barulho possível.
— Meu pai dorme com uma espingarda e atira em qualquer coisa que se mova. — ele sussurra. — Não é pra gente sair dos quartos depois que ele manda entrar e trancar a porta, entende?
Faço que sim com a cabeça e prendo a respiração até chegar no quarto dele, no segundo andar, que é extremamente organizado pra quem está enfrentando o apocalipse. Eu consigo enxergar tudo, porque tem duas velas acesas nos cantos opostos, mesmo a janela estando coberta por um negócio preto... Papel, plástico, não sei. Algo pra evitar que ele veja a podridão no mundo lá fora, talvez.
Não o julgo.
Assim que passo, Tiago tranca a porta atrás de mim e vai até o guarda-roupa. Enquanto vasculha as peças em busca de algo que vá me servir, eu o observo de costas. Seus cabelos cresceram consideravelmente e estão sem qualquer corte, mas ainda são escuros e lisos, meio bagunçados. Charmosos.
A porta do guarda roupa aberta revela um espelho. Na luz da vela, meus olhos se desviam pra lá e eu vejo meu reflexo com certo pavor. Sou mais magro e mais baixo que ele, que pratica esportes desde criança. Ele tem ombros largos, peitoral definido, coxas bronzeadas... nada da branquelagem espinhuda das minhas.
Eu não vou tirar a roupa na frende desse menino de jeito nenhum. Vou dormir cheio de espinho mesmo.
Espera, dormir?
— É melhor você passar a noite aqui. Não vou arriscar descer, muito menos abrir a porta da frente e, como pode ver, não dá pra abrir essa janela também, então... — ele separa uma bermuda e uma blusa que tem o logo de um time de futebol, acho. — Seus pais sabem que você tá aqui? Pra não ficarem preocupados e tal...
— Ah, eles não estão nem um pouco preocupados, pode ficar tranquilo — eu rio, nervoso, mas acho que ele não entende a piada, porque parece preocupado de uma hora pra outra, e percebo que talvez seja porque ele acha que meus pais.... bem, que eles não existem mais ou algo do tipo. — Ah, eles estão bem! Em casa. Sabem que eu saí, não vão me procurar. Sério. Tá tudo ok... — Vejo o alívio trazendo a cor de volta pro rosto dele. — Os seus também estão? Digo, seus pais estão bem? Você... está bem?
— Sim. Está tudo mais normal do que o esperado. — Tiago suspira, sentando-se na cama de casal que ele tem no quarto. É claro que ele tem uma cama de casal, dã. — Estamos bem. Você viu como a casa está toda fechada, meu pai tá se empenhando mesmo nessa história de "sobreviver ao apocalipse"... Aliás, — ele parecesse se lembrar de algo. — O que você estava fazendo lá embaixo? Eu falei sério quando disse que ele colocou armadilhas. Você não caiu em nenhuma delas? Não se machucou? Nada?
Levanto os ombros. A única coisa que tá me machucando são os espinhos no bumbum.
De repente, Tiago solta uma risada.
— Ele vai ficar bem chateado de descobrir que as armadilhas não funcionam quando você contar...
Eu contar?
— Ele vai querer me matar?
Tiago ri de novo e eu juro que o gesto me faz amolecer todinho.
Eu nunca tinha percebido isso, que o sorriso dele me faz ficar... molenga. Esquisito.
Com vontade de suspirar em voz alta.
Eca.
— Acho que não, mas eu vou preparar o terreno antes. Você pode dormir aqui, é claro, e amanhã de manhã eu falo pra ele o que houve. Ele não vai ficar feliz, mas... Eu não podia te deixar lá fora, né. — o garoto se encolhe um pouco. — Agora me responde, o que você estava fazendo aqui? Digo, você provavelmente não sabia que era minha casa, ent-
— Sabia. — essa minha língua que não para quieta! — Hm. Digo, eu sabia que era sua casa. Eu vim... vim justamente porque era a sua casa. Pra ver a casa. Sabe. E pra ver se você estava dentro dela... Pra ver você, em casa.
Tiago levanta as sobrancelhas.
— Faz três meses que não te vejo, sabe... Só queria, sei lá, ter certeza de que você estava vivo. Vivo e bem. E em casa. — reviro as roupas que ele me deu na minha mão, ainda de pé, completamente desconcertado e cheio de espinhos na bunda.
Passo a mão por cima da bermuda e coço, porque esse negócio pinica horrores, e solto um gemido, porque pinica e dói pra caramba ao mesmo tempo.
Tiago repara nisso tudo, obviamente.
— Troca de roupa. Os espinhos devem estar mais nela que em você. — ele sugere e, sem que eu fale nada, se vira de costas, remexendo em algo debaixo da cama.
É minha chance de bater o recorde de tempo em troca de roupas: tiro tênis e a bermuda quase que ao mesmo instante. Puxo a camiseta por cima da cabeça e enfio a outra, jogando minhas roupas velhas e sujas no chão. Antes de colocar a outra bermuda que ele me emprestou, noto que há uma cueca também e engulo seco antes de tirar a minha e me enfiar nas roupas limpinhas do Tiago.
Eu devo estar fedendo à carniça, não queria estragar as roupas dele... Mas assim que visto tudo, sinto um alívio imediato nas partes baixas, se é que me entente. Os espinhos, apesar de terem sim me furado bastante, estavam fincados na bermuda e, sem ela, posso coçar as nádegas sem problemas.
Tiago tira um colchonete de debaixo da cama de casal e ajeita ao lado dela, no chão, ao mesmo tempo em que fala que, se eu quiser, posso tomar um banho no banheiro particular dele.
É claro que o quarto dele é uma suíte, dã.
— Devia ter dito isso antes de eu colocar essa roupa toda limpinha... — resmungo, ele ri.
— Não tem problema. Se quiser outra roupa limpa, tenho de sobra. — ele aponta o guarda roupa semi aberto. — Sério, pode ir. Só não demora muito porque a caixa d'água ainda não encheu. Ela só enche à meia noite, então o que vai sair provavelmente é o restinho de água do dia, e eu não sei quanto ainda tem...
Ele explica mais ou menos o sistema da caixa d'água que o pai dele montou, que tira água do abastecimento público da rua, purifica e distribui pra casa toda. Assim, eles tomam banho, fazem comida e bebem água sem se preocupar muito com a falta da mesma. Claro, com parcimônia.
Tiago também conta, enquanto eu me enfio debaixo do chuveiro deixando a porta meio aberta pra ouvir a voz baixa dele, das armadilhas (mais uma vez abismado por eu ter conseguido passar por todas, que eu sinceramente nem percebi), de como eles estão trancados naquela casa desde o início do apocalipse... Desde que o pai saiu do emprego e vestiu seu papel de "homem da sobrevivência".
Em algum momento da história dele, eu rio, porque não consigo me relacionar com nada daquilo.
Minha família não estava fazendo esforço nenhum pra sobreviver. Meu pai jamais pensaria no sistema de abastecimento público, nem nos esgotos, pra gerar água pra nossa casa. Minha mãe não pensou em fazer uma estufa (só temos uma hortinha meia-boca mesmo), nem ninguém bloqueou a entrada da nossa casa com um sofá porque a porta tá sempre aberta — pra todos os vizinhos entrarem e saírem à hora que querem, inclusive.
E é aí que está o enorme abismo entre o Tiago e eu. E é aí que eu me lembro porque nunca dei muita atenção à essa minha queda por ele... Porque ele era quase impossível de ser alcançado. O outro lado do abismo sempre pareceu longe demais pra mim.
Mas agora ele está ali, na porta do banheiro me esperando sair, contando como ele sentiu falta de conversar com alguém que não fosse a irmãzinha menor, a mãe e o pai.
— E a Andréia, a amiga da Clarisse que está ficando com a gente. — ele diz.
— Por que ela está ficando com vocês? — eu pergunto, Tiago suspira.
— Porque os pais dela estavam de férias no exterior quando tudo isso começou... Ela estava com a avó, que não tem a menor condição de cuidar de uma criança de cinco anos no fim do mundo. E os pais... bem, eles não vão voltar, né...
Saio do banheiro, já completamente vestido e cheirosinho, e vejo o riso triste na boca do Tiago.
A boca que eu fui ali pra beijar.
Os pensamentos da minha cabeça passam rapidamente de "abismo, Tiago, impossível" para "apocalipse, nada mais importa" e "ele tá bem aqui na minha frente".
— Eu fiz uma lista de coisas que quero fazer antes de morrer. — solto desenfreadamente, ignorando a história triste que ele acabou de contar. Eu sou um insensível, eu sei, mas estávamos no apocalipse, caramba! — Não sei se vou estar vivo amanhã, daí resolvi começar essa noite mesmo, por isso vim na sua casa. Queria saber se você estava vivo, se estava bem, porque pensei muito em você quando tava fazendo a lista e tal... Já que você é o primeiro item dela, aí resolvi-
— Espera, vai mais devagar... o quê? Eu sou o quê? — ele interrompe meu fluxo de coragem e eu murcho totalmente. — Você fez uma lista?
— Sim. Tá no bolso da minha bermuda... Quer dizer, deve estar. Os espinhos devem ter furado ela toda também, sei lá.
Daí eu noto que ele está com minhas roupas dobradinhas em cima do móvel ao lado da cama. Tem uma lixeirinha por perto também, e vejo que ele ficou tirando os espinhos da minha calça enquanto conversava comigo.
— O primeiro item é pra ser feito com você... — eu me sinto molenga de novo porque vou fazer isso. Vou fazer isso. Vou fazer isso. Vou. E falo: — Pode ler se quiser.
Ele vasculha o bolso e encontra um papel amassado. Não tem espinhos nele, e minha caligrafia está quase indecifrável, porque Tiago passa uns bons minutos de testa franzida, aproximando o papel da vela pra enxergar melhor, tentando entender o que aquilo tudo tem a ver com ele... E eu sei que ele finalmente conseguiu ler minha letra quando suas pupilas diminuem e a boca abre, sem fala.
— Desculpa aparecer assim do nada. Desculpa por... sei lá, tudo. — eu me forço a falar várias desculpas sem dó. — É só que o mundo tá acabando, aí eu encontrei o Hippie, e a gente ficou falando sobre isso e as coisas que eu queria muito fazer e que eu nunca fiz. E eu nunca beijei ninguém... Tá, eu sei que é idiota, mas não quero morrer sem fazer isso. Todo mundo fala sobre beijos o tempo todo e eu não queria morrer sem saber como é! E pode acreditar, você foi a primeira... digo, na verdade foi a única pessoa que eu pensei em beijar. Mas pra isso você precisaria estar vivo, daí eu vim até a sua casa pra saber se você estava vivo... E eu sabia que era a sua casa porque já tinha te seguido várias vezes quando éramos mais novos. Desculpa por isso também. Eu não sei porque fiz isso, não me lembro. Mas pensando bem, deve ser pelo mesmo motivo que eu escrevi seu nome na lista depois da palavra "beijar", né, não precisa ser nenhum gênio pra fazer essa matemática aí... Desculpa.
Tiago está mudo, olhando de mim pra lista, da lista pra mim.
Se a janela não estivesse vedada, eu pularia, certeza.
— Gustavo. — ele faz uma pausa desnecessária e pergunta, como se não tivesse escutado e entendido da primeira vez: — Você quer fazer o que comigo...?
Sinto uma pontada de desafio na voz dele. Respiro fundo e respondo:
— Eu quero te beijar. — ele pisca. E eu complemento, pra ser bem claro: — Na boca. Não no rosto ou em qualquer outro lugar... Na verdade, pode ser em outro lugar também, mas só depois de ter beijado a boca. Com tudo o que tem direito... Se é que me entende.
Uma das velas se apaga, a que está mais próxima dele. Parece um presságio me dizendo que aquilo não foi uma boa ideia e que estou fazendo papel de idiota. Mas foda-se, é o fim do mundo, galera! Quem se importa, né?
(Eu tenho vontade de gritar isso o tempo todo, já percebeu?)
Tiago coloca a lista junto das minhas roupas e se levanta pra pegar a vela que sobrou, dizendo que fez uma "cama" pra mim no chão... E que a gente deveria dormir.
— Meu pai acorda cedo. Ele tem um esquema de horários meio rígido, então... — ele justifica e eu desinflo como um balão estourado. Tiago percebe meu olhar pro colchão e murmura. — Eu só preciso pensar um pouco nisso. Amanhã quando acordarmos eu te dou uma resposta sobre... sobre tudo. Ok? Eu juro que não vou evitar o assunto, eu só...
— Tudo bem. Tudo ótimo. — eu o interrompo, porque é verdade. Aquilo é melhor do que eu imaginava. Pelo menos ele não me expulsou, nem pegou a espingarda do pai pra me dar um tiro ali mesmo.
Me considero sortudo, principalmente porque estou deitado num colchonete ao lado da cama do Tiago, confortável, limpo, cheiroso, com as roupas do Tiago, com a cueca do Tiago, debaixo de um teto seguro, silencioso, fresco (porque tá um calor absurdo lá fora), protegido, pertinho do Tiago e....
Quando abro os olhos de novo, já está claro. A coisa que veda a janela é meio transparente — parece uma rede preta, não sei o que é até agora —, então a claridade me acorda no susto, me deixando atordoado por um minuto. Penso que a noite passada pode ter sido um sonho esquisito, ou uma alucinação tardia do que quer que seja aquilo que eu fumei com o Hippie, e me sento de supetão, olhando o quarto, a cama de casal... vazia.
Não foi um sonho nem alucinação, mas Tiago não está ali e está silencioso demais.
O silêncio é meio ensurdecedor.
Vou ao banheiro, faço xixi, mas lembro dele dizendo que ia contar pro pai da minha presença. Lembro também da espingarda, das armadilhas que não funcionaram e em como ele provavelmente vai ficar furioso com isso. Estou tenso feito vara verde.
Fico paralisado na porta do banheiro, sem saber se eles conseguem ouvir minha respiração.
A porta se abre de repente e eu tomo um susto tão grande que literalmente pulo pra trás, tremendo, tropeçando no vaso e quase caindo de bunda lá dentro. Ia ser uma cena e tanto.
Tiago também se assusta com meu estado e pede desculpas, dizendo que não queria me acordar, e que teve de descer pra contar ao pai que eu estava ali.
— Ele já está ciente das armadilhas... Inclusive tá lá fora checando todas elas. E minha mãe está colocando mais um prato na mesa pro café da manhã. — ele sorri, como se aquilo resolvesse tudo, e me ajuda a levantar.
— Então... ele não vai me matar? — eu pergunto pelo que parece ser a milésima vez e Tiago ri um pouco mais aberta e calmamente.
Me recupero um pouquinho ao vê-lo me analisando de perto, dando margem pra que eu o observe também.
E lá estou eu de novo, molenga, a tensão desaparecendo por completo.
Não me lembro de me sentir assim antes, quando estávamos na escola. Mas também, na escola não tínhamos o fator "apocalipse" me pressionando a pensar que nunca mais vou me sentir assim de novo... É como se eu tivesse tirado o tampão das emoções e agora elas estão simplesmente fluindo pela minha pele, sem controle algum.
Sinto um gemido se formando na minha garganta e me policio pra que ele não seja audível. Eu não posso agir daquele jeito na frente dele. Não sou um animal nem nada do tipo.
Tiago suspira e, de repente, ele está exatamente falando e falando sobre como o fim do mundo muda nossa perspectiva das coisas.
— ... Meu pai tá fazendo de tudo pra manter a gente seguro aqui dentro. As armadilhas, a vigilância, o toque de recolher... tudo. Mas sabe que você me fez pensar em uma coisa? Aliás, várias coisas. Não adianta a gente ficar trancado aqui dentro se não tiver mais mundo lá fora depois... E mesmo se tiver, isso quer dizer que eu nunca vou vê-lo? Que nunca mais vou sair daqui sem que ele venha comigo com uma espingarda na mão? Isso... isso não faz muito sentido pra mim. — ele passa a mão nos cabelos compridos. Tão bonito! E daí começa a citar as coisas que leu na minha lista do que fazer antes de morrer: — Eu sei dirigir, mas nunca peguei um carro sozinho pra sair por aí, sabe? Também nunca vi um pôr do sol num lugar legal... Aliás, acho que nunca nem vi um pôr do sol! Nunca reparei nisso! Já fui pro exterior, mas sinceramente? Isso não me acrescentou em nada, porque não aproveitei nada. Nunca nadei no mar, muito menos sem roupa... E eu também nunca beijei ninguém.
Meu coração salta pra garganta nas suas últimas palavras. Percebo, porém, que ele ainda não acabou o desabafo.
— Eu aprecio muito o que meus pais estão fazendo pela gente, mas... Queria poder sair na rua igual a você. Ver o mundo como ele realmente é... ou está. Correr uns riscos de vez em quando, mas sem a parte dos espinhos, é claro. — ele me faz rir. — Fazer algo pra vida valer a pena, sabe?
— E eu queria que meus pais fossem só um pouquinho parecidos com os seus — eu respiro fundo. — É meio difícil sair na rua sem saber se você vai ter pra onde voltar depois. E os espinhos incomodam bastante também.
Tiago sorri, mas concorda. Acho que nossas famílias são extremos demais pra gente ficar discutindo aqueles detalhes. Dava pra colocar as duas num lugar só e deixar eles juntarem suas táticas de sobrevivência pra ver no que sai. Acho que não sairia nada, mas... Por um momento, penso em dizer isso em voz alta, porque me parece uma boa ideia de verdade, mas Tiago me interrompe:
— De qualquer forma, o que eu quero dizer é: também tenho uma lista de coisas pra fazer antes de morrer e agora percebi que não quero deixar ela de lado. Vivemos num paraíso cheio de possibilidades! Você tem noção disso? Não é porque ele resolveu se revoltar contra a gente que não podemos tirar sequer um proveito disso, certo? — não consigo raciocinar muito bem naquela colocação porque ele me dá exatos dois segundos pra pensar antes de emendar: — Então vamos planejar direito os outros itens da sua lista, mas o primeiro dá pra fazer agora se você quiser.
O primeiro item...
— Espera, é sério?!
Ele encolhe os ombros.
— Acabei de te dizer que também nunca fiz isso, então pode não ser lá o que você está esperando, mas... Podemos tentar?
Eu não sei o que fazer.
Eu realmente não sei o que fazer.
"É claro que podemos tentar!", eu quero gritar, mas não sai nada. Eu só fico lá, parado, olhando pra boca dele como se fosse a última refeição que vou ter — e que comparação idiota, mas eu pensei nisso de verdade, já que seus lábios rosadinhos e carnudos me lembram cerejas, e eu estou com fome, então tenho vontade de morder e....
Tiago não espera uma reação da minha parte, é claro, porque deve ter percebido que de mim só vão sair palavras idiotas e nada concreto, então ele coloca as mãos no meu pescoço e me puxa, encostando aqueles lábios rosados nos meus... Mas só por um segundo. Ele me solta e me encara, piscando meio atordoado, como se tivesse acordado pra realidade do que acabou de fazer.
O pseudo-beijo me serve de gatilho, porém, e eu não deixo ele se afastar ao repetir o gesto, segurando-o pelo quadril. Mesmo não fazendo ideia de como se beija, deixo meus instintos me guiarem e dá pra notar que tá dando certo, porque o Tiago corresponde, ajeitando os braços sobre meus ombros, se aconchegando mais pra perto, expulsando o espaço entre a gente.
Minha mente fica vazia por um loooongo tempo. Não penso em nada, só aproveito a sensação da boca dele na minha. Ela me faz sentir vivo de verdade. Tanto que, quando a gente interrompe a pegação, meu coração está muito mais acelerado do que quando vejo os motins nas ruas, ou ouço os tiros à distância. Ou caio num arbusto cheio de espinho no meio da madrugada.
Ain't a dream so open your eyes
We're just livin' in Paradise.
— Vamos pegar um carro pra explorar por aí? Você disse que sabe dirigir... E nós vamos poder nadar pelados numa praia então? — eu questiono, fazendo o Tiago gargalhar e me abraçar ao mesmo tempo, a testa encostada no meu ombro, o corpo vincado sobre o meu. Sinto o cheiro dele. Cheiro de Tiago misturado ao apocalipse. É revigorante.
— Depois do café da manhã, ok?
— Hm. Ok. — ele se afasta, meus braços caem dos seus quadris. — Se seu pai não for me matar, é claro...
— Gustavo, — Tiago revira os olhos e me dá mais um beijo rápido. Acho que ele gostou do gesto. Eu gostei. Definitivamente. Com certeza. Podemos repetir quantas vezes ele quiser, aliás. — ainda bem que o fim do mundo não te mudou em nada. E ainda bem que estou vivo pra constatar isso.
Tiago faz uma pequena reverência, que seria idiota se fosse qualquer outra pessoa, mas se é ele só parece muito fofinho. Eu me derreto todinho e todas as preocupações desaparecem do meu futuro quando ele diz:
— Obrigado por ter vindo me encontrar. Acho que você me salvou do fim do mundo sem querer querendo.
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