31: Pollock e Poeira de Giz
O Centro de Cultura da cidade possuía suas paredes desbotadas repletas de pinturas de artistas locais e poesias impressas em quadros, exibindo ao seu redor salpicos caleidoscópicos de uma aquarela sem muita noção de sentido que tingia os espaços ausentes de poemas e telas, assim como uma das paredes do lugar por completo. Incontestáveis baldes de tinta pareciam ter sido despejados nela, compondo um bordado caótico de cores inspirado na técnica do gotejamento criada por Pollock.
As cores, em sua arte, são dispersas de forma tão profusa e instável quanto nossos próprios sentimentos. É abstrato, espontâneo e indelével, como estar submergindo em um oceano de tinta fluorescente cujo fulgor se infiltra em um emaranhado disforme de vislumbres multicoloridos.
Distraído no meu próprio mundo luminoso, acabei por não reparar na proximidade de Leo, fazendo-o somente quando seus braços enlaçaram meu tronco por trás e a bochecha se pressionou contra minha omoplata, a pele morna resvalando ao longo do jeans da minha jaqueta.
Meu coração entrou em disritmia, bombardeando meu esterno com suas pulsações eufóricas. De repente, senti-me sem ar, sufocando dentro do fulgor incendiário que abraçou minhas veias.
Virei-me para fitar seus olhos, e as elipses adornadas pelos cílios rubros escorreram pelas minhas feições com uma atenção pungente, como se estivesse querendo sorver cada contorno que me compunha. Gostava quando me observava assim, porque me fazia sentir arte; uma manifestação colorida e palpável de alguma traquitana que sua cabeça um dia imaginou.
Seus dedos se ergueram, pairando um instante no ar antes de tocarem minha mandíbula. Então, viajaram um tanto atrevidos até os meus lábios, sorvendo a textura da pele nas linhas difusas carimbadas nas digitais. Fechei os olhos, muito mais ciente da sua outra palma que pendia no meu quadril, pincelando carícias na lateral do cinto que suspendia meu jeans.
Um arrepio solene se dissipou nas minhas células. Estremeci, sendo atingido pela vontade faiscante de pedir que me tocasse mais, embora soubesse que haviam seguranças espalhados pelo Centro e eles poderiam brotar do chão feito ervas daninhas a qualquer momento.
— Acho que a gente tá atrasado. — Seu sussurro se dissolveu contra minha boca.
Agarrei sua cintura com ambas as mãos em uma tentativa mantê-lo perto de mim o máximo de tempo possível, o tecido da mochila que pendia nas suas costas arranhando suavemente meus nós. Não queria que precisássemos ir.
Sabia que existiam alguns finais possíveis para o universo; uma espécie de big-bang reverso, no qual o cosmos passaria a encolher sob si mesmo e todos os objetos celestes se esbarrariam e implodiriam até não testar nada além de poeira de astros fugazes. Outra alternativa era o contrário; o universo continuaria se expandindo até chegar em um ponto que tudo ficaria distante e opaco, frio demais para brigar qualquer tipo de vida.
Os cientistas dão alguns trilhões de anos para conseguirem constatar o que de fato vai se transcorrer no final de tudo. Antes de conhecer Léo, soava aos meus tímpanos como um tempo infinito. Mas ali no Centro de Cultura, sentindo-o tão próximo a mim e ao mesmo tempo prestes a se esvaecer, só conseguia pensar sobre como trilhões de anos pareciam estupidamente pouco para contemplar a sua existência do modo como ela merecia.
Eu te amo tanto. Sua declaração sonolenta ainda ecoava como um sopro fresco na minha memória.
Como colocar em palavras que eu sentia o mesmo? Era como se nenhum termo humano escrito em quaisquer línguas, do latim-morto ao português contemporâneo, fosse capaz de traduzir toda a metafísica do sentimento que se enrolava no meu coração com seus fios cintilantes.
Na ânsia que percebesse o quanto eu o adorava, recostei meus lábios na sua bochecha e me pus a beijar cada zona da sua face que consegui alcançar, escorregando até a ponta do nariz, depois para a testa e por último atingi suas pálpebras fechadas, as pestanas imprimindo cócegas suaves no meu queixo enquanto ele gargalhava, meio bobo e eufórico.
— Para! — Riu mais, sua fronte esquentando sob a timidez que lhe era típica.
Eu não queria, mas resolvi fazê-lo. Afastei-me um pouco para mirar seu rosto, e a imagem das bochechas vermelhas me arrancou um sorriso imediato.
Tão adorável. Tão incrível. Tão único.
— Moz... — Meu nome lhe escapou em um sussurro, rompendo o véu de deslumbre que se estendeu diante dos meus olhos. — Você... Você já se apaixonou antes?
Não precisei pensar muito antes de responder.
— Não. Antes de você... não houve ninguém.
Suas orbes se estreitaram ligeiramente, instáveis e receosas.
— Nem mesmo a... Letícia? — A vulnerabilidade escondida nas sílabas o fez parecer minúsculo.
Comprimi os lábios, entendendo finalmente o porquê de ter agido estranho quando descobriu sobre minha antiga amiga.
Estava na hora de admitir, para o mundo e, principalmente, para mim mesmo.
— Eu sou... gay, Leo. — As palavras fluíram para o espaço, meio enroladas, como se uma centena de nós estivessem se diluindo no ar. — Tipo... bem gay. Sempre fui e sempre vou ser. — Enfatizei com dificuldade, meio engasgado pela maré de intensidade que arrebentou contra minha garganta.
Seus lábios se esticaram em um sorriso fechado. De súbito, Leo circundou minha cintura, pressionando o corpo no meu com uma ternura que explodiu uma supernova ancestral no meu coração, dilatando o órgão até parecer que eu ia explodir.
— Eu também sou.
Sorri contra seus cachos inflamáveis, e o repuxar na minha camisa me fez ter certeza que ele havia feito o mesmo.
Passamos um minuto ou dois procurando a porta específica que levava para a sala do palco. Assim que achamos, olhei pela pequena janela de vidro retangular instalada na madeira a movimentação que se transcorria lá dentro. Após confirmar que era o lugar certo, entramos.
As aulas de teatro que Alisson frequentava eram um projeto da prefeitura para incentivar os jovens à arte, e já estava em vigor há cerca de dois anos. Dentre os participantes, havia artistas de todos os tipos, de modo que a elaboração dos cenários, análise de figurino e criação de roteiros era tudo feito entre os membros das formas mais loucas e bonitas possíveis, com muita alma, cor, palavras e sentimentos.
Quatro jovens estavam reunidos em volta de um papel-metro não muito extenso, fitando a imensidão pálida que compunha a folha vazia. Eram Alisson, Tony, Ana e um garoto de fios azuis que não recordava de já ter visto, circundados por potes de tinta, canetas coloridas e borrachas.
O sol infiltrava seus tentáculos de óleo através dos vidros das espaçosas janelas com esquadrias de madeira espalhadas pelo ambiente, derramando retângulos cor de girassol nas ripas do piso marrom. O ar carregava um aroma fosco de verniz e poeira volúvel, cujos grãos dançavam no ar em vislumbres afogueados que desapareciam rapidamente, feito estrelas cadentes fadadas a rodopiarem no vácuo até sumirem no infinito.
— Leo! Moz! — Alisson exclamou, assim que suas vistas recaíram sobre nós. — Cheguem aqui, tenho que mostrar uma coisa que eu achei para vocês! — Sua empolgação era notável.
Fisgados pela animação que ondulava o ar, fomos até ela e sentamos ao seu lado. Leo tirou sua mochila e a colocou perto da coxa sob o olhar castanho de Alisson. Então, a garota fisgou três canetas de formatos ligeiramente diferentes, estendendo-as na nossa direção.
— São canetas de tinta invisível! — explicou rapidamente. — O que a gente escreve só consegue ser visto se acender essa luz negra aqui... — Clicou em um botão na lateral de uma delas, e um azul luminoso explodiu em todas as direções, banhando os poros do seu rosto com um brilho fluorescente.
As orbes arregaladas em deslumbre de Leo denunciaram o quanto aquilo lhe pareceu fascinante, considerando seu gosto particular por coisas que brilham. Diante daquela visão, o esboço de uma ideia pipocou na minha cabeça, tingindo-se de contornos cada vez mais definidos e fulgurantes.
— É bonito para cacete. — concordei.
— Pena que não vai ser muito útil pro que a gente vai fazer hoje. — Allie torceu o nariz em uma careta, apagando a luz.
— Só a montagem de cenário? — quis confirmar.
— E um ensaio rápido. — Tony complementou.
Eu e Leo assentimos, pondo-nos a mirar o papel que certamente abrigaria o cenário ou algum tipo de esboço deste.
— A peça é inspirada em Dom Casmurro, de Machado de Assis. Então, a paleta de cores e o estilo deve ser algo que remonte ao século da obra, de acordo com certas passagens da história. — O garoto com os cabelos tingidos de azul se manifestou, notadamente não ciente de que eu já sabia de tudo aquilo há tempos para ajudar no meu processo criativo. — Esse vai ser somente uma parte do cenário. O resto, vamos fazer com papelão, papel paraná e objetos de verdade.
— Gostei das ideias. — Leo comentou, mas acabei por não prestar muita atenção, absorto no amontoado de ideias que se pincelavam em algum lugar abstrato do meu crânio.
Fisguei um lápis e, afundando em um mar de inspiração repleto de bolhas iridescentes, me pus a esboçar ideias com base no que me lembrava a respeito da história de Capitu, Bentinho e todo o enigma que rondava a possível traição da mulher. Linhas surreais viraram formas distinguíveis em pouco tempo, com o auxílio de uma régua, borracha e grafite, maculando a textura antes inatingida do papel.
Meu sangue começou a ferver como se um sol inteiro tivesse acabado de descer pela minha garganta, estalando fagulhas em cada uma das minhas células turgidas de agitação.
— Queria ter uma noção real da dimensão de tudo isso... — comentei, baixo, mais para mim mesmo do que para os outros.
— Você poderia... desenhar com giz no chão. A Alisson sempre guarda alguns coloridos no estojo, para fazer resumos e essas coisas. — Tony sugeriu, arregalando as orbes em um surto de empolgação semelhante ao meu.
— Não posso fazer isso... — Minha insegurança se dissipou no ar. — Quer dizer, e se alguém vir?
— Acho que ninguém vai passar por aqui, o chão é de madeira lisa, eu tenho uma garrafa de água e um pano na mochila para limpar depois. Acho que não tem como descobrir. — Leo fomentou a ideia de Tony, sussurrando como quem conta um segredo.
Foi mais do que o suficiente para que eu acatasse a sugestão.
Sorrindo, Alisson me entregou sua pequena coleção de gizes, mas optei por fisgar somente o branco. Abaixei-me, pouco depois do papel. Poeira desbotada matizou meus dedos assim que comecei a pintalgar a madeira opaca do piso, rabiscando os contornos de um jardim florido em frente a um muro alto dominado por ramos de trepadeiras e pequenas ranhuras.
O giz estava em menos da metade quando acabei, não pelo desenho ser gigantesco, mas pelo número de detalhes que este possuía. Levantei-me meio ofegante, soltando o objeto no chão, e espalmei as mãos na calça para limpar parte da poeira pálida que revestia minhas digitais.
— Cacete, isso cansa. — Arfei, jogando uma mecha escura do meu cabelo para trás.
— Ficou tão incrível! — Leo declarou, com uma centena de constelações crepitando nos olhos cor de espaço.
Sorri, meio sem jeito.
— Acho que vamos precisar de um papel maior para abarcar tudo isso. — Allie riu, em um misto de descontração e o que parecia ser deslumbre.
Então, pescou o celular do bolso e o posicionou para tirar uma foto. Leo se agachou próximo à ilustração, alheio à vontade da garota, mas isso não a impediu de bater algumas fotografias.
Fiz esboços de mais dois cenários pelo piso. O grupo começou a ensaiar pouco depois, e não demoraram muito para findar todos os atos da peça, que seria apresentada em cerca de um mês.
Quando acabaram, o céu explodia em tons frescos de laranja por trás das janelas, anunciando a chegada do pôr do sol. Estava ficando tarde para eles, por isso não tardou para que começassem a se despedir.
— Tem certeza que não querem ajuda com o chão? — Allie indagou pelo que pareceu ser a quinquagésima vez, torcendo a alça da sua mochila no ombro.
As sobrancelhas estreitas denunciavam seu receio em nos deixar sem contribuir muito na limpeza.
— Está tudo bem. — Leo garantiu.
Com um suspiro, ela aquiesceu.
— Obrigada novamente pela ajuda, Moz.
— Sempre que precisar, é só chamar.
Sorrindo, ela acenou para nós e girou na própria órbita, dirigindo-se à saída.
A percepção de que estávamos sozinhos desencadeou no meu corpo uma reação em cadeia.
Fisgado por um eletromagnetismo indistinguível, puxei Leo pelo quadril e selei nossos corpos e lábios. O contato repentino não o assustou como eu imaginava. Em uma fração de segundo, começou a devorar a minha boca com a mesma intensidade, agarrando-se aos meus cabelos, pintando quadros abstratos nas minhas costas e soprando o ar da garganta em intervalos curtos. Senti-me naufragar na nebulosa resplandecente que abarcava o cheiro de jujuba carimbado na textura ensolarada dos seus cachos, e nos vislumbres ardentes de sal e laranja tatuados na curva do seu pescoço.
Tombamos rumo ao chão em dado momento, bêbados de torpor, com meu tronco estendido acima do seu. Mas não por muito tempo. Nossos corpos nos conduziram, rolando pelas ripas de madeira em uma troca desenfreada de posições enquanto nos beijávamos como se o fim do universo fosse iminente. Poeira de giz salpicava nossos cabelos e roupas debaixo dos raios fulgurantes do crepúsculo que inundavam nossos poros com seu filtro oliva.
Pousando sobre mim como um pássaro de fogo, Leo acariciou meu lábio inferior com a língua, puxando-o em um mordiscar lento logo depois. Minha mão tombou rumo ao meridiano da sua cintura, pressionando a mescla de pele e tecido da camisa amarela por entre os dedos. Meus sentidos haviam se convertido em estática há muito, atropelando interferências disformes que não pareciam ter qualquer significado, porque a única coisa que conseguia processar eram todos os pontos de contato entre nós.
Eu o amava. Esta era uma verdade irremediável.
E já havia descoberto o que fazer para externalizar isso.
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