30: Fantasmagorie
Assim que cheguei em casa, libertei meus cachos e coloquei a touca de Mozart no sofá, deixando os dedos resvalarem pelas minhas madeixas desgrenhadas em uma massagem fora de ritmo, mas que torcia para aliviar um pouco do latejar insistente que chacoalhava meu crânio. Logo vi de relance minha mãe preparando algo na cozinha, com o celular reproduzindo o passo a passo de uma receita do que parecia ser pastel vegano.
Ela, assim como eu, ainda não havia optado por seguir o veganismo. No entanto, dizia que muitos pratos ficavam melhores seguindo a dieta vegana e todos os seus temperos saborosos, então adorava pesquisá-los e tentar replicá-los.
Meu pai diminuíra seu consumo de carne com o passar dos anos, mas não planejava se tornar vegetariano. Marcelina também nunca sequer cogitara seguir esse estilo de vida, e isto jamais foi problema para a mamãe, tampouco para mim. Respeitar a individualidade de cada um sempre foi uma coisa que todos nós tivemos em mente. É um dos principais passos para se construir um mundo melhor.
Marcelina não voltara para casa comigo, pois, de acordo com ela, ainda precisava resolver algumas outras coisas. Moz se ofereceu para me acompanhar até em casa, mas eu recusei. Queria ficar um pouco longe da sua companhia para tentar entender o porquê de todas aquelas nuvens tempestuosa estarem nublando meu peito desde que descobri sobre a existência de Letícia.
Era uma mescla angustiante de sensações estar apaixonado, e eu não sabia bem até que ponto gostava dessa bagunça de nós que se amarravam no meu peito. Em um momento, estava feliz simplesmente por saber que Mozart existia, e no outro, meio cabisbaixo por saber que ele já se envolvera com outra pessoa além de mim. Quer dizer, embora fosse uma idade ínfima, eu já tinha consciência, aos dezesseis, que assim são feitas as pessoas; de uma união de acontecimentos, afetos, desafetos e sentimentos profusos. Mas não tinha muita noção de como aceitar isso de um modo saudável podia ser complicado.
Estacionei no arco do vão que separava a cozinha da sala, mordendo o lábio inferior incessantemente enquanto meus dedos batucavam o mármore do balcão. Era como se uma bigorna tivesse caído subitamente sobre os meus ombros, instaurando um peso no meu corpo que me impedia de vencer a distância entre mim e a minha mãe.
Era meio angustiante pensar sobre o quanto tínhamos nos afastado com o passar dos anos, mesmo habitando o mesmo espaço. Parecíamos dois planetas coincidindo em um único universo, porém separados por um milhão de anos-luz invisíveis. Talvez fosse consequência natural de ficar mais velho e assumir outros tipos de responsabilidades, ou eu somente me tornara um egoísta. Não sabia ao certo, mas torcia para não ser a segunda opção.
Murmurando alguma música popular, ela inclinou a cabeça para trás, e suas orbes se arregalaram ligeiramente ao notar a minha presença.
- Oi, meu bem. - falou, esticando os lábios em um sorriso estonteante. - Quer me ajudar? Fiz uma aposta com a sua irmã, para provar para ela que minha comida-de-mato, como ela chama, pode ser boa. E quero ganhar daquela bastarda. - O apelido, apesar de parecer rude, soava extremamente brincalhão vindo dela para Marcelina.
Soprei um riso que pareceu levar junto parte do peso que jazia no meu corpo, o suficiente para que conseguisse cortar a distância entre nós com alguns poucos passos.
- Tudo bem. - respondi, dando de ombros. Sentia, de toda forma, que precisava me distrair.
No final das contas, alguns pasteizinhos explodiram feito pequenas bombas nucleares dentro da panela cheia de óleo fumegante, porque talvez tenhamos entupido demais a massa de recheio. Mas as coisas deram parcialmente certo, com um saldo de somente três pastéis suicidas e algumas pequenas queimaduras pelos chapiscos de óleo.
Quando Anne desceu a escada e percebeu o que estávamos fazendo, começou a pular incessantemente ao nosso redor para ajudar também. E foi o que tentou fazer por uma minúscula fração de tempo, ansiosa para colocar as duas luvas de pano da mamãe - embora não fosse preciso de fato usá-las -, até se entediar e ir para a sala assistir algum desenho na televisão.
- O que estão fazendo aí? - Mar quis saber assim que fechou a porta da frente, puxando os saltos para fora dos pés. - E por que você tá todo recheado de pintos? - O duplo sentido direcionado a mim não passou despercebido, e fez combo com o seu sorriso enviesado.
Não contive o riso.
A Anne me convenceu a usar um avental de filhotes de galinha para, de acordo com ela, evitar sujar minha roupa. Mas eu sabia, pelo seu sorriso travesso, que sua intenção era unicamente zoar comigo.
Confesso que a peça tinha sido muito útil, além de ser bonitinha para caramba.
Talvez eu fosse ligeiramente fissurado por coisas com carinhas, fossem elas animais fofos ou objetos inanimados. Tinha a mania um tanto peculiar de vê-las em tudo; nas tomadas, nas rachaduras das paredes e até mesmo em manchas no chão.
- Fizemos pastéis! - Nossa mãe exclamou com empolgação, capturando o prato cheio deles em cima da bancada.
O cheiro era salgado, com salpicos de um tempero verde que acariciava minhas narinas e incitava meu estômago a se revolver, gritando por comida. O aroma puxou Mar, que praticamente flutuou até o balcão onde mamãe depositou o recipiente.
- O Leo não tá de touca, e eu acho que ele não prendeu esse cabelo de fogo dele. Se tiver um fio sequer na minha comida, eu vou vomitar e a aposta já era. - minha irmã entoou com fingida seriedade, certamente para tentar camuflar o quanto estava se sentindo tentada pela refeição diante dos seus olhos.
Se estivéssemos em um desenho animado, aquele seria o momento em que suas iris se converteriam em dois corações gigantes, fixas nos pastéis alvo da sua adoração.
Nossa genitora não falou nada, apenas cruzou os braços e abriu um sorriso satisfeito, de quem sabe que já venceu um desafio antes mesmo do seu fim. E, quando sua primogênita devorou o primeiro pastel perfeitamente dourado, a curva nos lábios da mulher mais velha apenas aumentou.
Mar fez de tudo para reprimir qualquer murmúrio de satisfação que fosse conforme mastigava. E, quando terminou de comer, curvou a boca para cima, como quem desdenha.
- É... nada mau. - Sua mentira descarada se fez audível.
Eu e mamãe rimos, o eco da nossa descontração vibrando nas paredes.
- Mas o que estava em jogo nessa aposta? - perguntei, fisgando um dos bebês pastéis.
- A limpeza do quarto de tralhas. - Mar respondeu, e seu desgosto pela ideia de fazer aquilo foi perceptível. - Se eu aprovasse o prato, teria que fazer a bendita faxina. Se não, a mãe.
Não contive mais um riso. O quarto de tralhas era o cômodo mais bizarro da casa, repleto de trambolhos que não usávamos mais se atropelando uns nos outros, restos de materiais de construção de antigas reformas e coisas velhas demais para terem qualquer utilidade. Eu tinha a teoria de que também havia uma família de ratos inteira morando lá dentro, mas isso não vem ao caso.
Todos sabíamos quem iria enfrentar aquele pesadelo, e só tivemos ainda mais certeza quando Mar capturou mais um pastel e tentou enfiá-lo na boca antes que víssemos, feito uma criminosa - não tão - especializada em roubo de comida.
Nossas risadas se mesclaram no ar, polvilhando a casa com um calor que há muito não se fazia presente. Irradiava do meu peito à ponta dos dedos da mão, faiscando nos meus ossos e aquecendo os músculos com o sentimento reconfortante de pertencimento.
Optei por ajudar Marcelina a colocar no lugar o quarto da desordem. Então, pouco depois de terminarmos de comer, coletamos os objetos básicos para a limpeza e nos dirigimos até o cômodo.
Eram trambolhos demais. Encontramos até mesmo minha velha cadeira de bebê revirando as inúmeras quinquilharias iluminadas pela luz fosca e tremeluzente de teto, que banhava nossas peles suadas com vislumbres de mostarda. Depois, vieram as caixas com postais desgastados de antigas viagens da mamãe, fitas cassete com nomes de cantores de décadas passadas escritos à mão com canetinha e VHS's caseiros.
- Olha só isso! - Marcelina exclamou, fisgando de uma das caixas uma câmera fotográfica de muitos modelos atrás, recoberta por fragmentos de poeira.
- Ainda funciona? - questionei, remexendo amontoados de papel em outro compartimento de papelão para verificar se tudo no seu interior poderia ser jogado fora.
- Acho que só está sem bateria. Talvez eu encontre o que carrega ela.
Assenti, mesmo sabendo que, por sua atenção não estar direcionada a mim, não iria ver.
Em dado momento, vasculhando a caixa repleta de documentos velhos e recibos, meus dedos esbarraram em uma folha amassada que exibia um desenho tingido com giz de cera colorido. Era um elefante de traços meio precários, cuja tromba curvilínea empunhava um guarda-chuva. Eu possuía a lembrança distante de tê-lo ilustrado depois da minha primeira ida a um circo, com pouco mais de sete anos.
O rabisco me faz lembrar de Fantasmagorie, o curta-metragem francês de animação que é considerado o primeiro desenho animado da história feito por um projetor de cinema moderno. Inúmeros desenhos elaborados à mão compuseram a criação, dentre eles, um elefante.
Algumas pessoas se puseram a acreditar que o título do filme e o modo como foi feito, com todas as suas sequências, foi uma referência a um obsoleto equipamento do século dezenove, o fantasmógrafo; uma espécie de lanterna mágica que tinha como função projetar "fantasmas" pelas paredes.
Não sabia se acreditava na existência dessas criaturas sobrenaturais, mas tinha certeza que havia fantasmas muito mais abstratos submergindo no meu oceano mental.
- Vai me contar o que está te deixando com essa cara ou não? - Mar pareceu ler meus pensamentos.
Um suspiro derrotado me escapou por entre os lábios, e o ímpeto irremediável de abrir o meu peito para ela crepitou nas minhas veias.
- É só que... - Baixei a cabeça, minhas bochechas ardendo como se repentinamente houvessem se tornado incendiárias. - É normal a gente se sentir meio para baixo quando descobre que outras pessoas já foram muito importantes pra quem gostamos?
Ela pareceu ponderar por alguns instantes.
- Acho que você está com ciúmes. Mas não precisa se autocondenar por causa disso. - Seu timbre escorreu em um amontoado de maciez. - O que sentimos não é a questão, mas o que optamos por fazer com esses sentimentos. E você ainda é muito jovem. Sentir coisas confusas é normal. Não saber lidar com elas, também. Demorar um pouco para aprender a fazer isso, idem. Às vezes, aceitar nossa humanidade e nosso tempo faz muito bem, assim como conversar. Talvez devesse contar ao Mozart como se sente.
Meu pescoço ardeu em chamas.
- Eu... não falei que era sobre ele.
Suas íris escuras recaíram sobre mim com uma compreensão faiscante.
- Claro que é. - Sorriu.
Não consegui deixar de acompanhá-la no ato, minha boca se curvando em um sorriso tímido por trás do véu de calor que a minha vergonha tinha projetado.
Com os músculos turgidos de cansaço, joguei-me no chão contra uma caixa maior próxima, apoiando as costas na sua superfície rígida. Ainda não tínhamos varrido o chão, então o movimento que fiz dissipou uma pequena nuvem de poeira sob a luminescência oleosa da lâmpada que pendia pouco acima, flutuando em frente aos meus olhos como anãs-brancas em algum canto inexplorado do espaço.
- O Vicente estava na loja de guitarras para comprar uma nova para mim, porque a minha está gasta há um tempo. - Mar rompeu o silêncio, de súbito. - E a Letícia estava com ele para ajudá-lo a escolher uma aliança depois, para... para ele me pedir em casamento.
Vislumbres de surpresa invadiram meu sistema.
- Como descobriu isso?
- Coloquei os dois contra a parede. Literalmente. - Deu de ombros, como se intimidar seus dois melhores amigos fosse uma atitude corriqueira.
Contive o ímpeto de soprar um riso.
- E o que fez depois?
- Bom, combinei com eles que eu não tinha ouvido nada, e que continuariam com o plano.
Ergui as sobrancelhas em incredulidade na sua direção.
- Qual é, eu quero muito uma guitarra nova. - Defendeu-se. - Quanto ao casamento, não tenho tanta certeza se agora é o momento, mas, bom... Podemos ficar noivos por uns anos, não é? Algumas coisas não precisam ser imediatas.
Sorri.
- Com certeza, não.
Um suspiro lhe escapou, os ombros pendendo para baixo em cansaço.
- Está acontecendo alguma coisa? - resolvi, enfim, indagar. - Quer dizer, não parece mais que está aqui por ter brigado com o Vicente, porque pelo que eu notei você já se resolveu com ele, ou está muito próxima disso.
Minha observação pareceu pegá-la de surpresa, porque seus olhos se arregalaram feito bolas de gude tamanho família, na proporção que se colocou a torcer os dedos das mãos nas coxas. Notei que por trás do castanho que abraçava suas pupilas perpassou uma vontade pungente de fugir, ondulando seus sentidos com o impulso de contar uma mentira qualquer. Mas ela tinha consciência do quanto eu a conhecia, e que tentar ocultar seus verdadeiros motivos apenas me deixaria decepcionado por não confiar em mim para ser verdadeira.
Suspirando novamente, venceu o pouco espaço entre nós e se acomodou ao meu lado, escorregando a palma na cerâmica para tentar limpar um pouco o piso.
- É que eu... - Fez uma pausa, torcendo o nariz em uma careta receosa. - Eu senti saudade. - A declaração lhe escapou com dificuldade, quase como se sentisse dor. - Pronto, falei.
Cerrei as sobrancelhas, meio confuso.
- Sabe que pode vir nos ver sem precisar de um motivo, não é? E ficar quanto tempo quiser com a gente, também.
Minha irmã assentiu em um movimento lento.
- Acho que me dá vergonha a ideia de sentir saudade. Quer dizer, eu não sou mais criança, então isso soa meio... estranho.
- Não é estranho. - garanti. - Somos humanos, esqueceu? É normal sentir coisas meio confusas.
Um pequeno sorriso se esboçou nas suas feições, espargindo no ar nuvens abstratas de calor confortável. Em seguida, seu braço se esticou na minha direção, e, pegando-me completamente desprevenido, ela me puxou para um abraço, enterrando minha bochecha na sua clavícula com uma força arrebatadora.
- Às vezes, acho que preciso ser lembrada disso. - Sua voz soou abafada pela face mergulhada no meu cabelo.
Meus lábios sorriram. Com o coração palpitando em uma alegria frenética feita de fagulhas caleidoscópicas, envolvi seu corpo também, pressionando-a contra mim com a mesma intensidade.
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