19: O Pote de Sapos
A manhã caiu sobre a cidade em um amontoado de raios cor de girassol que embeberam os telhados das casas com seu filtro oliva, acordando os gatos fugidios que se puseram a caminhar sobre as telhas, bem como os pássaros que começaram a derramar seu canto vibrante sobre os fios elétricos dos postes.
Passei um bom tempo apenas ouvindo os sons do bairro que começava a despertar, com os olhos fechados e a consciência de que meu corpo estava junto ao de Mozart, encolhido contra a sua camisa enquanto sorvia todo o calor macio que a sua pele emanava e torcia o tecido que a recobria por entre os dedos.
Não sabia por quanto tempo mais conseguiria ficar imóvel na esperança de não acordá-lo. Cordas de luz envolviam minhas pernas sobre as suas, turgindo-as de furor para serem movimentadas, mas tentava me manter congelado a qualquer custo.
Tinha consciência de que ele tivera dificuldade para se manter dormindo por tempo prolongado durante a noite, porque eu possuía a mania inquieta de ficar perambulando pelo quarto à procura de coisas para fazer durante a madrugada, flutuando na minha insônia efervescente costumeira que, por vezes, fazia-me derrubar algum livro ou outros objetos, e o baque dos impactos o fazia despertar abruptamente para depois voltar a cochilar de novo.
Esperava que não me odiasse por causa disso.
Em dado momento, pude senti-lo escorregar o polegar pela minha bochecha, resvalando-o rumo à têmpora até que fosse barrado pela haste dos meus óculos. Um feixe de luz abrasadora despejou seu ouro líquido na lateral do meu rosto quando abri as pálpebras; um dos tentáculos translúcidos de sol que adentravam pelo vidro da janela, e fitei as imensidões cor-de-café-quente-e-mar que circundavam suas pupilas fixas em mim.
O disco tingido com órbitas negras girava preguiçosamente na vitrola há alguns metros, fora do alcance da agulha em sua lateral e, portanto, incapaz de emitir qualquer música. Alguns papéis e cartas aleatórias de um baralho que jogamos pouco antes de pegar no sono jaziam na mesa, ao lado do terrário fechado que abarcava o Donatello, e os ramos da samambaia que pendia do teto até alcançar os meus post-its rabiscados por quase toda a parede deslizavam com uma calma morna pelo ar, roçando vez ou outra na extremidade do aquário azul-céu dos axolotes.
As ondas bagunçadas do cabelo de Moz escorriam pelas laterais do rosto em uma cortina de fios escuros, e minha mão viajou de imediato até a sua bochecha repleta de marquinhas de travesseiro que o faziam ficar extremamente adorável.
— Você dormiu em algum momento? — indagou, vaporizando minha cara com aquele hálito de túmulo típico de quando acabamos de acordar.
Torci o nariz em uma careta.
— Não fala nada. Você tá com um bafo horrível.
Seus lábios se curvaram em um sorriso malicioso. Então, ele assoprou meu rosto propositadamente.
— Vai se ferrar. — reclamei, com um vislumbre de sorriso ameaçando se esticar nos meus lábios.
Sua risada ecoou nos meus ouvidos por alguns instantes, até ser rompida por um grito súbito que estrondou de algum canto da casa.
Após o rugido quase animalesco ecoar e me fazer dar um sobressalto, ouvi o baque da madeira da minha porta se chocando contra a parede quando foi subitamente aberta, revelando as feições apavoradas da minha irmã mais velha.
— Leo, tem um monstro no banheiro! Mata, mata, mata! — As palavras vieram acompanhada de um sapatear apavorado contra a cerâmica, enquanto movia as mãos no ar euforicamente.
A surpresa mesclada a choque preencheu minhas células até a borda.
Marcelina quase nunca parava na nossa casa. Estava durante a maioria esmagadora dos dias no apartamento do namorado, Vicente, e só aparecia na sua antiga residência quando tinha alguma discussão com ele — o que, dado as manchas escuras de olheiras por noites mal dormidas que circundavam seus olhos enegrecidos, certamente havia acontecido.
Não éramos tão próximos, na verdade. Os cinco anos de espaçamento entre os nossos nascimentos se encarregaram de contribuir para um distanciamento natural, como se fôssemos duas espécies diferentes de pássaros que tiveram de compartilhar um mesmo ninho de miúdos gravetos por um certo tempo. Ela raramente se interessava pelas minhas brincadeiras, piadas ou qualquer coisa que fosse enquanto crescíamos. Era como se não tivéssemos muito em comum além de alguns genes mixurucas, mas, ainda assim, gostávamos um do outro.
Mar tinha uma toalha lhe cobrindo o corpo e outra que falhava na tarefa de manter seus fios cor de amêndoa envoltos no topo da cabeça, já que metade do cabelo caía feito uma cascata pelas maçãs da face, ocultando parcialmente a visão dos inúmeros piercings que cintilavam nas suas orelhas sob o alvorecer
A garota notou a presença de Mozart meio segundo após externalizar seu desespero, e parou todo o movimento que fazia para fitá-lo com as sobrancelhas estreitas e o olhar recheado de uma curiosidade maliciosa.
— Caramba, por que não me contou que tem um namorado?! — Sua pergunta escorreu em um misto de anseio e notas de indignação.
O sangue entrou em combustão nas minhas bochechas, tanto por ser pego naquela situação quanto pelo olhar inquietante da garota sobre mim, que queimava contra os poros do meu rosto como se todos os meus pecados estivessem brilhando em néon na minha testa.
— Não somos namorados. — Mozart afirmou rapidamente, impulsionando o tronco até se sentar no colchão. — Eu precisava de um lugar para passar a noite. Só isso.
Uma fisgada desconfortável se revolveu no meu coração, embora não soubesse ao certo o porquê. Quer dizer, de fato não éramos namorados. Só tínhamos nos beijado. E... falado coisas bonitas um para o outro. E... dormido juntos, no sentido mais literal que existe para esse termo. Eu não tinha o direito de exigir muito dele, certo?
Não fazia ideia. Nunca antes vivenciara qualquer situação minimamente parecida. Só sabia que era... confuso.
— Mostra onde está o bicho. — pedi para minha irmã, na esperança de dissipar seu interesse em nós dois, pondo-me de pé ao lado da cama.
Ela nos lançou um último sorriso sugestivo e girou nos calcanhares, ganhando o corredor. Sem pensar muito, eu e Mozart a seguimos, e congelamos os três em frente à porta do banheiro encostada durante alguns segundos, por receio de empurrá-la.
Meu coração estremeceu no peito, vibrando feito as cordas de uma guitarra desgovernada em um show repleto de luzes pulsantes na minha cabeça. Os dois pares de olhos que se derramam sobre mim espetavam fios de gelo na minha pele feitos de uma expectativa desconcertante.
— A gente pode fazer assim... — Moz começou a falar. — Você abre a porta e sai correndo — Apontou para minha irmã. — E o Leo me ajuda com o resgate do bichinho.
Com os lábios torcidos em uma evidente careta de nojo, Marcelina empurrou o retângulo de madeira até escancará-lo, meio segundo antes de dar dois saltos para trás como se tivesse acabado de ver um cadáver estendido no chão.
O animal que tanto causara pânico na minha irmã era um filhote de perereca minúsculo, perfeitamente acomodado no interior do box como se estivesse dentro de uma piscina de hidromassagem para anfíbios.
Mozart me fez descer as escadas e buscar um pote na cozinha. Assim que lhe entreguei, ele desrosqueou a tampa e, com receio pairando nas orbes, engoliu o animalzinho com a boca de plástico translúcido. Saltando de susto, a perereca grudou suas ventosas na parede do recipiente e o moreno o tapou na velocidade da luz, para que não escapasse.
Tomei o pote nas mãos e corri para o jardim, onde soltei o bicho em meio ao canteiro de flores que minha mãe tinha começado a construir há alguns meses, quando iniciou um estudo de jardinagem para fazer disso seu novo hobby.
O sol se diluía sobre a explosão de cores que se pintava em cada pétala de flor, irradiando também nas gotas de orvalho fresco que se acumulava na grama e nas minúsculas teias de aranha penduradas em seus ramos verdejantes.
Um caracol costumeiro escalava a parede como se fosse detentor de todo o tempo do mundo, balançando suas antenas ao vento com uma lentidão preguiçosa. Minha mãe se enfurecia sempre que os via perambulando pelo jardim, porque infestavam suas plantas de buracos para encher os próprios estômagos, e eram uma praga muito difícil de controlar. Mas eu, particularmente, os achava fascinantes, com aquelas conchas espiraladas e tentáculos miúdos no topo da cabeça.
Já havia tentado criar alguns, e foi bem legal por um tempo. Tive quatro; o Romeu, a Julieta, o Shakespeare e o Otelo. Pintei a ponta das conchas de cores diferentes, para conseguir distinguir cada um, e passava minutos inteiros os observando dentro do aquário vazio. A questão foi que perdeu a graça depois de alguns meses e uma infestação de filhotes de caracol menores que a ponta do meu dedo mindinho quando procriaram, e decidi libertá-los para caçar novos possíveis bichos de estimação.
As rãs foram as escolhidas.
Quando adentrei na sala novamente, subi os degraus da forma mais rápida que consegui, ansiando por encontrar Mozart. Entretanto, após passar pelo corredor vazio, apenas um quarto igualmente estático me recebeu, sem qualquer resquício dos seus sapatos no chão ou do seu cheiro inflamando o ar.
Ele fora embora.
Quase pude ouvir o ruído do meu coração quebrando na caixa torácica. Só que foi muito baixo, e chiado típico do fluxo de água do chuveiro deslizando pelo pequeno vão da porta fechada do banheiro se sobressaiu ao meu barulho interno.
Por um momento, senti-me como os dinossauros talvez tenham se sentido vendo o meteoro sideral que muito em breve os atingiria, riscando o céu com seu fogo veloz e ofuscante: um misto bagunçado de medo, curiosidade e tristeza. Eles, diante da ideia trágica do fim da existência, e eu submerso no sentimento quebradiço e indistinguível que alavancou terremotos no meu peito.
Ouvi um pigarro baixo atrás de mim e, assim que virei o rosto na direção do som, vislumbrei Marcelina na porta do banheiro há alguns metros, com sua escova de dentes pendendo da boca, uma camisa surrada que quase alcançava seus joelhos virada ao avesso e o cabelo completamente afoito, cujos fios escorriam em desordem úmida pelas maçãs do rosto.
— Ele tentou fingir indiferença indo embora, mas só comprovou a minha tese de que tá caidinho por você. E, pela sua cara, você também tem um penhasco por aquele guri. — minha irmã falou, a voz engasgada graças à boca cheia de saliva e pasta. — Confesso que estou meio surpresa. Quer dizer, jurava que você era algum tipo de ser assexual e essas coisas.
— Acho que ainda meio que sou um pouco. — Dei de ombros, tentando perpassar casualidade. — E sua blusa tá ao contrário.
Ela adentrou no cômodo abruptamente. Ouvi o eco de quando cuspiu na pia e segundos depois se enfiou no corredor de novo, a veste já arrumada do jeito certo e as íris no mesmo tom de castanho das minhas irradiando sobre meu rosto. Na parte frontal da sua camisa preta ligeiramente desbotada por inúmeras lavagens, se lia, em inglês: “Eu raspei minhas bolas para isso?”.
Tive vontade de rir do senso de humor bizarramente controverso de Marcelina, mesmo já estando acostumado com suas blusas repletas de estampas e frases icônicas daquele tipo.
— Cara, fala sério, vocês realmente não tem um caso?
— Por que se interessou tanto por isso? — busquei desconversar, ainda tentando entender por que Mozart havia ido sem me dar ao menos um tchau.
Será que eu tinha dito ou feito algo errado?
— Porque vocês se olham como um chocólatra olharia pra um bolo com cobertura tripla de chocolate, recheado de chocolate e com bolinhas de chocolate por cima! — esclareceu, como se fosse óbvio.
Comprimi os lábios com força, os dentes pressionando a carne.
— Ele é muito... confuso. E isso me deixa confuso, também. Então, só... não quero falar disso.
Seu foco se manteve em mim por segundos infinitos, como se ponderasse em silêncio.
— Tá a fim de tomar sorvete no café da manhã? — inquiriu, finalmente. — Eu comprei um pote enorme ontem para passar a madrugada me entupindo de açúcar, mas não consegui comer tudo.
Um sorriso inevitável se aflorou nos meus lábios.
— Só se não tiver nozes.
Ela sorriu também, espargindo uma nuvem macia de calor no meu peito que só aumentou durante os minutos seguintes, nos quais ficamos sentados contra o balcão da cozinha nos empanturrando de quanto sorvete coubesse nos nossos estômagos, conforme o som de algumas batidas provenientes dos pedreiros recém chegados do lado de fora da casa se mesclavam aos ecos do nosso diálogo sobre coisas banais.
Em dado momento, Mar parou de comer e fisgou um cigarro do bolso da calça de moletom, acendendo-o com um isqueiro que capturara no mesmo lugar. Entretanto, mal o tragou; parecia distraída, de modo que a chama fraca já se aproximava do filtro do cigarro, queimando impetuosamente.
— O que houve entre você e o Vicente? — Minha voz soou embolada graças à colher gigante de creme com flocos que enfiara na boca.
Mar deu de ombros, tentando exalar uma casualidade que evidentemente não sentia, graças a todos os buracos negros que pesavam suas gravidades enormes nas pupilas dilatadas fixas em qualquer ponto, menos em mim.
— Nada demais. É só que... pessoas são difíceis de se conviver às vezes. Elas têm manias que não nos agradam, mas aprendemos a lidar com o tempo, porque o que sentimos por elas é mais essencial do que pequenas imperfeições. A questão é que há dias em que não estamos bem com o mundo, e nesses dias, se não souber controlar a si mesmo, você só... explode, feito confete. — Soprou o ar, e mergulhou sua colher presa na outra mão no balde entre nós, raspando de leve no fundo para capturar um pouco dos últimos resquícios de sorvete.
Assenti devagar, tentando absorver um pouco de como estaria se sentindo ao discutir com um alguém tão especial quanto era seu namorado.
Quando eu nasci, eles já se conheciam. Eram amigos desde pequenos, de modo que faziam praticamente tudo juntos; passeios à tarde de bicicleta, pesca de girinos em um pequeno rio perto das nossas casas, e até mesmo o primeiro porre de bebida ao entrarem na adolescência. Lembro-me de que saíam para os quatro cantos da cidade nessa fase, assistiam filmes com cobertor e pipoca doce no sofá mais dias do que dava para contar, ajudavam um ao outro em seus respectivos projetos mais malucos e Vicente já tinha, até mesmo, segurado o cabelo da minha irmã umas dez vezes enquanto ela despejava sua alma no vaso sanitário depois de festas.
Entretanto, só deram seu primeiro beijo aos dezessete anos. Sei disso porque me recordo claramente de Marcelina batendo a porta de casa e correndo pelas escadas até chegar ao seu quarto, parecendo transtornada como nunca antes. Meio confuso, interrompi minha lição de casa na sala e percorri o mesmo caminho que fizera, invadindo seu quarto sem ao menos pensar que talvez quisesse ficar sozinha — uma consequência infame de se ter doze anos.
Porém, ela miraculosamente não se importou. E, no meio daquele cômodo cheio de pôsteres mórbidos de banda de rock, com uma guitarra solitária apoiada na cama e um aroma áspero de nicotina preenchendo o ar, minha irmã me contou o que aconteceu: andavam de skate, ela caiu, ralou o joelho e Vicente se abaixou à sua frente para avaliar o machucado. Acabou por se aproximar demais, e, antes mesmo que pudessem perceber, seus lábios estavam juntos debaixo de um véu de timidez.
Foi difícil para mim entender o motivo de terem se beijado somente naquela tarde, tendo existido tantos dias antes daquele para que tal contato se transcorresse, até notar que certos desejos, de tanto se acumularem com o passar do tempo, acabam não possuindo um momento exato para serem libertos; simplesmente ocorrem, e talvez nunca se encontre uma explicação no espaço inteiro para isso.
— Espero que se resolvam logo. — entoei com sinceridade, lançando um pequeno sorriso à morena próxima a mim.
Marcelina também sorriu, girando uma das pulseiras de couro que circundavam seu pulso esquerdo com o dedo polegar e o anelar; o médio e o do meio ainda sustentando seu cigarro quase apagado.
— Obrigada, maninho. — Soltou a colher no pote, esticou a palma e bagunçou meus cachos, como costumeiramente fazia desde a minha infância.
De algum modo, eu percebi que o ato, embora simples, era o seu modo de dizer que me amava. E, diante dessa consciência, sorri de novo; dessa vez, um pouco mais.
Saudações, terráqueos!
Capítulo meio atrasadinho, mas finalmente veio. Por ser um tanto maior, eu precisei de um tico mais de tempo para revisar, e acabei não tendo muito durante esse final de semana. Mas agora, está tudo certo :D.
E aí, o que acharam da atitude do Mozart?
Gostaram de finalmente conhecer a Marcelina?
Será que ela e o Leo se parecem?
Leo e Mozart vão se reconciliar?
Cenas do próximo capítulo da nove... Digo, história.
Espero que estejam gostando. E respirem fundo, ainda tem muita água pra rolar por aqui.
Tenham uma ótima semana! Beijos de nuvem pra vocês <3.
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