13: Bolhas
As bolhas estavam por toda parte, tingindo o ar com seu amontoado de cores translúcidas que ferviam debaixo dos tentáculos de sol embebidos em ouro líquido do meio da tarde, que escorriam sem pudor pelo vidro aberto da janela do meu quarto.
Anne gargalhou quando seu sopro fez mais uma dezena delas escapar do objeto plástico com dois círculos em uma das suas mãos pequenas; a outra apertando firmemente o frasco cor de morango cheio quase até a tampa do líquido-fazedor-de-bolhas.
Sua risada empolgada vibrou nos meus tímpanos, desencadeando um efeito dominó de pontadas ásperas no meu crânio dolorido, como se uma coleção inteira de besouros estivessem mordendo meus miolos. Finquei os dentes com força na ponta do lápis que estava insistindo em girar por entre o indicador e o médio há horas, enquanto minhas íris se mantinham fixas nas duas frases meio tortas que dançavam na folha do meu caderno, escorregando nas linhas como se fossem ondas bagunçadas do mar.
Meus pensamentos se tingem de cores que sequer existem quando pairam até você, M.
Aquilo estava uma porcaria. Qual é. Eu já fora muito melhor nessa joça de escrever.
— Para onde as bolhas vão quando estouram, Leo? — O timbre inocente de Anne voltou a chacoalhar na minha mente, em uma altura que soou como um coral de pássaros se agitando em cada um dos meus neurônios em brasa que fumegavam sob a dura-máter.
Ela estava tentando chamar minha atenção a todo custo. Queria que brincássemos juntos, como por vezes fazíamos após terminar suas lições de casa. Mas eu estava exausto, inutilmente inspirado e consequentemente desejando arrebentar a minha testa na parede para, com sorte, dormir um pouco.
— Elas... se misturam com o vento. — disse, largando o lápis para esfregar o rosto com força, como se tivesse algum parasita grudado na epiderme que meus dedos se sentiram obrigados a expurgar.
Inconscientemente, comecei a usar o que restara das minhas unhas roídas, apertando as pontas já rentes à carne contra as bochechas, de novo, de novo e de novo, até uma palma miúda segurar meu pulso mais cheio de pulseiras de tecido do que o normal; fruto da minha tentativa de esconder uma sequência de arranhões acidentais provenientes de mais uma queda de bicicleta no asfalto, para não atropelar um gato que não reparei estar se aproximando até seu focinho estar quase contra o pneu frontal.
Acontece que eu não queria ser alvo de mais uma sequência de interrogatórios por parte dos meus pais. Eles sempre estavam atentos a qualquer marca que pudesse aparecer em mim, para, de acordo com estes, avaliar o meu estado de distração e tendência a me machucar com tiques nervosos constantes. E, apesar de saber que a intenção de ambos era a melhor possível, a sensação de estar constantemente sendo analisado feito um besouro por trás da lupa de uma criança curiosa não era lá muito legal.
O susto pelo contato repentino mesclado a algum tipo de temor que Anne visse os hematomas me fizeram puxar o antebraço com um pouco de força além do necessário.
— Hoje não, que droga! — resmunguei, e só após as sílabas se espargirem pelas paredes reparei que tinha sido um completo idiota.
Notando meu deslize, forcei-me a relaxar os músculos e soprei todo o ar que enchia meus pulmões, fitando as orbes piscantes da minha irmã, que começavam a adquirir centelhas de lágrimas prestes a pender.
— Você... você prometeu que não ia mais gritar comigo da última vez. — apontou, a vozinha ligeiramente embargada.
Minhas artérias espremeram meu coração em um nó.
— Eu... me desculpa. Foi sem querer. Me desculpa, desculpa... — pedi, quase como uma súplica.
Ela pareceu pensar por um instante, retorcendo os lábios finos em sua típica careta analítica.
— Só desculpo se você brincar de escorregar no sabão comigo.
Criança perspicaz.
A patinação no sabão não era a nossa melhor invenção para nos divertirmos, sem dúvidas. Mamãe particularmente ficava assustadíssima quando nos via deslizando pela varanda de casa entupida de espuma feito dois destrambelhados; Anne com joelheiras e o capacete de plástico que normalmente usava para andar nos seus patins, e nossa mãe insistia que se enfiasse dentro quando fôssemos patinar em toda aquela espuma com potencial de nos levar direto para o chão.
Mas, no final das contas, mamãe dava um sorriso ou dois; especialmente ao nos ver limpar toda aquela desordem de bolhas e deixar sua varanda reluzente no processo.
Não pude fazer outra coisa senão sorrir e aceitar. Estava frustrado demais para continuar persistindo na minha tentativa de poesia, e sair do redemoinho de hiperfoco deveria me ajudar a desanuviar.
Peguei a grande embalagem retangular de sabão em pó no mini-cômodo debaixo da escada destinado aos produtos de limpeza, e fui com uma Anne saltitante portando seus equipamentos de segurança até a parte externa da casa. Ela não gostava de ter que usar aqueles trambolhos, é claro; mas mamãe encheu tanto a nossa cuca com paranoias envolvendo traumatismo craniano e fratura de ossos que não nos restou outra saída.
Em pouco tempo, tudo diante dos meus olhos era espuma. O chão era um tapete de água mesclado aos fragmentos iridescentes que se diluíam sob o dourado do disco solar acima das nossas cabeças, enquanto eu e Anne deslizávamos com os pés descalços sobre as bolhas de diversos tamanhos, rindo vez ou outra da nossa bobeira particular e do quanto tudo aquilo era mais do que extraordinário.
Tropecei algumas vezes, é claro, e caí o suficiente para inundar a minha camisa repleta de ilustrações de rãs, bem como a bermuda de tecido amarelo-manteiga que descia até os meus joelhos. A ausência de óculos não me deixava enxergar tão bem assim, mas não importava muito. O melhor era sentir.
Até que, em dado momento, o tilintar estridente da campainha nos fez parar um pouco. Meio confuso, limpei o rosto rapidamente, fisguei meus óculos no beiral da janela e cambaleei até o portão, ajustando as lentes em frente às íris. Quando puxei o trinco e abri o retângulo metálico, meus lábios se partiram diante dos olhos permeados de imensidões interestelares de Mozart.
Uma camisa jurássica de Ultraje a Rigor recobria seu tórax até estacionar na barra da calça jeans preta rasgada nos joelhos. Seus dedos meio sujos de tinta estavam em volta de um pequeno vaso de plástico, em cuja superfície terrosa descansava um minúsculo girassol.
— Ah, eu... É uma hora ruim? — questionou, apertando os cílios em receio enquanto os tons destoantes das íris me avaliavam de cima à baixo.
— O quê? Não, não... — Joguei alguns cachos molhados que desaguaram na minha testa para trás. — Pode entrar.
A pane nos meus parafusos não me permitiu lembrar que o avisasse do quanto o piso estava escorregadio; coisa que só me veio à mente no exato momento em que colocou o tênis surrado para dentro e seu pé traçou um arco no ar, fazendo-o cair sentado sobre o aglomerado de espuma que entupia o chão.
Seus olhos se arregalaram tanto com o susto que pareciam prestes a rolar das órbitas por trás das mechas desgrenhadas de cabelo que deslizaram pelas maçãs do seu rosto, as palmas ainda firmes no vaso do girassol como se estivesse protegendo a cura de todas as doenças do mundo. Um pouco da sua terra fora salpicada na cerâmica com o impacto.
— Mas que po... negócio é esse? — se corrigiu rapidamente, ao se dar conta da presença de Anne.
A garotinha tinha estacionado perto dele rindo incessantemente, a mão pequena pairando em frente à boca. Ergui a sobrancelha para ela em uma tentativa discreta de censurá-la, embora eu mesmo tenha começado a prender os lábios para não rir.
— Você se machucou? — perguntei, tentando me aproximar. E digo tentando porque, assim que dei um passo meio afoito adiante, meus dedos resvalaram por uma porção de bolhas instáveis que me fizeram desequilibrar e tombar de costas no chão bem ao lado de Mozart.
Ah, caramba. Agora, era oficial; eu tinha literalmente uma queda por ele.
Sua gargalhada ondulou meus ouvidos, e, envergonhado, sentei-me com as bochechas em chamas e as peças turgidas de água grudadas à minha pele. Mozart colocou o girassol próximo à sua perna e se inclinou na minha direção, sorrindo, e seus dedos riscaram o ar até o polegar tingir minha têmpora, a digital esfregando de leve algum resquício de espuma. Então, sacudiu meus cabelo, as orbes cintilando algo com gosto de açúcar e explosões cósmicas que me fizeram sorrir em um misto de ternura e ligeiro embaraço.
— Trouxe... para você. — Capturou novamente o vaso, e o estendeu para mim. — Pensei em chamar ele de Hélio. Tipo, por causa do sol e tudo mais.
Meu sorriso aumentou conforme fisgava a planta.
— Hélio é um nome bem legal. Obrigado.
Seus dedos sujos de sabão foram de encontro à nuca, um sorriso tímido esboçado em seus lábios cor de algo que pairava entre morango e a superfície de Marte. O Planeta Vermelho tinha tudo a ver com aquela boca, com toda certeza. Talvez ali tão perto dele eu devesse ser algo como Mercúrio ou Vênus caindo na parte mais abrasadora da órbita do sol, girando na elipse que circundava a atmosfera daqueles olhos bonitos...
— Meu Deus, vocês estão ensopados! — Anne exclamou, de súbito, e eu caí de volta para o solo terrestre.
— Você também, mocinha. — falei. — A propósito, a gente deveria trocar de roupa...
Seu nariz pequeno se torceu em uma careta adorável.
— Só depois de pular no pula-pula! — E bateu uma sequência de palmas animadas.
Moz e eu trocamos um olhar rápido, ligeiramente confusos acerca do que responder.
Deu que, menos de dois minutos depois, estávamos os três saltando na cama elástica feito um trio de crianças enérgicas — eu e Mozart um pouco menos, pelo receio de causar algum dado à estrutura metálica do brinquedo que minha irmã tanto amava. Brincamos de pega-pega, esbarramos uns nos outros uma dezena de vezes e rimos por segundos incontáveis, até desmaiarmos de exaustão no tapete elástico flutuante, ofegantes e embebidos em uma mistura de suor e vislumbres de sabão.
Mirando o céu que explodia seu tom de azul vibrante acima de nós, eu tentava regular a minha respiração. O braço de Moz estava contra o meu, e seu peito subia e descia em uma velocidade alucinante sob o riso derradeiro que escapava da sua garganta.
Sem perceber, acabei sorrindo, e ele pendeu a cabeça na minha direção, os lábios ainda esticados. Então, sua mão sutilmente se arrastou para cima da minha, as digitais dele contra os paralelos que se desenhavam na minha palma compondo novas linhas em nós.
— Foi uma aranha. — soprou, em um gracejo.
Dei risada.
— Gostei dela.
Tivemos dificuldade em convencer Anne a interromper a brincadeira, mas após muito esforço, eu e Moz conseguimos.
Ele removeu os sapatos antes de entrarmos em casa e lançou um sorriso embaraçado para minha mãe, que parecia ter nós de fumaça pairando sobre seus fios incendiários enquanto fitava o amontoado de livros enfileirados na estante da sala. Seu indicador batia em um tique constante contra o polegar, para vez ou outra correr ao longo da madeira polida do móvel. Parecia estar inquieta com alguma coisa.
— Tudo bem, mãe? — Indaguei, estacionando no primeiro degrau.
Suas íris se voltaram a mim por trás das lentes riscadas por arranhões irregulares dos óculos, fruto da sua tendência incurável a esquecê-los por aí ou simplesmente deixá-los cair.
— Sim, querido, eu só estou pensando em uma nova organização para os livros. Talvez, ordem alfabética torne tudo mais fácil... — ponderou, esfregando as palmas no macacão jeans meio desgastado que tinha o costume de usar em casa, especialmente quando estava matutando acerca de alguma possível mini reforma em algum cômodo ou em um pedaço dele.
Ela gostava de mudar as coisas do lugar e revirar a própria mente em busca de novos meios de tornar tudo cada vez mais harmônico. Papai teorizava que um dia isso poderia adoecê-la, mas eu me perguntava o que no mundo não era capaz de adoecer qualquer pessoa.
Fui com Mozart e Anne para o andar de cima. A garotinha seguiu rumo ao seu quarto para trocar de roupa, e eu conduzi Moz até o meu. Lá dentro, sua atenção foi imediatamente fisgada para o Morfeu e a Ofélia, e seus pés descalços trilharam caminho no piso até estacionarem em frente ao aquário.
Notei a rápida careta de desgosto que lançou para o terrário do Donatello, que descansava preguiçosamente sobre um graveto pouco abaixo da tampa de plástico do recipiente. As pupilas verticais que nadavam no amarelo dos olhos do anfíbio pareceram fitar Mozart de volta, como se estivessem se torrando mutuamente com lasers de retina invisíveis.
Sorri por um ínfimo instante, abrindo o guarda-roupas para selecionar alguma peça que se encaixasse nele. Meus dedos esbarraram em uma dezena de camisas multicoloridas, até fisgarem uma preta que exibia a estampa simples de uma banda de rock que minha irmã mais velha, Marcelina, me dera de presente no meu aniversário anterior.
Eu gostei bastante, apesar de não fazer muito o meu estilo. Curtia Linkin Park, principalmente por ser uma das poucas bandas que eu e Mar ouvíamos juntos na época em que ela ainda morava na casa dos nossos pais.
Virei-me para fitar Mozart e vislumbrei seus dedos agarrarem a bainha da camisa, deslizando-a ao longo do abdômen até o tecido se desvencilhar do seu tronco magro e ser capturado por suas mãos, os nós dos dedos ainda manchados de tinta desbotada; como se ele houvesse tingido uma galáxia inteira antes de chegar ou se sujado com um cereal à base de planetas de corante mais cedo.
Fiz de tudo para não mirar a entrada demarcada no centro do seu quadril, que se escondia na barra cinza da cueca debaixo do seu jeans sustentado pelo cinto meio frouxo, mas minhas vistas me traíram completamente. O que me salvou de passar um constrangimento estratosférico foi o desviar do seu foco para os axolotes novamente.
Droga.
Como era possível que ele fosse tão lindo?
Sua barriga exibia salpicos de sinais que se reuniam em forma de lua crescente ao lado do umbigo, e outros traçavam constelações abstratas ao longo das elevações das suas costelas, juntamente com cicatrizes de formatos abstratos acumuladas durante a vida que modelavam um universo inteiro em expansão tingido na sua epiderme; repleto de histórias, segredos e desventuras por trás de todas aquelas marcas.
Olhei para cima, envergonhado, e suas orbes caíram rapidamente sobre o meu rosto, parecendo meio avoadas.
— Você está bem? — questionei depois de alguns instantes, ajustando a ponte dos meus óculos no nariz.
Mozart deu de ombros.
— Eu acho que sim. Só estou... pensando em algumas coisas.
— Quer falar sobre elas?
Um suspiro escapou por entre seus lábios.
— É só que... meu pai é uma das minhas maiores inspirações. Falam dele de um jeito tão incrível, sobre como era uma pessoa maravilhosa... — Os olhos baixaram para os próprios pés. — E eu tenho medo de não conseguir ser como ele, entende? Porque... parece que eu tô fazendo algo errado. Sendo uma pessoa errada. Eu não sei explicar, é só... — Torceu o nariz em uma careta. — Esquisito.
Venci a pouca distância entre nós com alguns passos e toquei sua bochecha, atraindo a órbita do seu olhar novamente para a elipse do meu.
— Você está sendo você, Mozart. E isso não é errado. — pontuei. — Tenta... não se cobrar tanto com isso. Seu pai era uma pessoa diferente, viveu em uma época diferente, com sonhos e desejos diferentes dos seus. Você não é menor que ele por ser você, é só... único, como todo mundo é. E isso é extraordinário.
Um sorriso quase imperceptível se esticou em seus lábios, mantendo-se neles por um instante que pareceu infinito enquanto sustentava o olhar no meu.
— Obrigado. — murmurou.
Antes que eu pudesse falar mais algo, ela deixou a cabeça pender para frente, recostando-a no meu ombro. Seus fios longos escorreram pela minha camisa em um emaranhado desordeiros de fios escuros, remetendo-me ao mar no litoral que dissolviam suas ondas contra a praia em algum ponto distante do horizonte.
Em um gesto automático, resvalei as mãos para trás do seu corpo, puxando-o de leve até que se aninhasse no meu tórax. A textura morna da sua pele escorregou pelos meus braços quando relaxou a coluna, encolhendo-se contra mim em um movimento solene.
E, de repente, todas as bolhas iridescentes do mundo fizeram morada no meu estômago, revestindo milhares de estrelas, vaga-lumes e outras coisas que brilham.
(Artezinha do Leo que saiu de um collab aleatório entre eu e o tio Canva)
Saudações, terráqueos!
Cá estou eu com mais um capítulo.
Concordam que foi um misto de emoções?
O que acharam do Leo?
E do Moz?
Sim, o girassol era para o nosso ruivo. Como adivinharam? Hahaha.
Acham que esses dois já deveriam ter se beijado ou nem?
Estão curtindo a evolução da relação deles?
Espero que sim!
Tenham um ótimo final de semana. Beijos de nuvem pra vcs! <3.
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