NORMAL
Eu olhei para o pôster pendurado perto da enorme televisão. Definitivamente eu estava a cara daquele sujeito. Eu não via nenhuma graça nele, mas precisava garantir a confiança de Luna antes de qualquer outro passo. Se ela gostava do tal Tomás Toledo, então eu assumiria a forma dele. E me amaria assim. Ele até que tinha um cabelo legal, e embora eu preferisse minha aparência de origem, Luna ficaria mais à vontade com um rosto conhecido.
E estava funcionando. Ela não havia acionado nenhum dos seguranças e não parava de sorrir para mim. Eu queria sair e explorar a Casa de Gaia, mas antes tinha de fazer o primeiro contato com a Humana. Ela era minha Missão. Eu tinha muito com o que trabalhar, porque ela não parecia ser uma pessoa fácil. Qual seria a graça se eu conseguisse resolver a questão em alguns dias? Eu também não queria voltar para casa, porque estava muito animado com o cheirinho de poluição.
— Pedi para que trouxessem um suquinho de laranja — ela anunciou. Eu assenti, porque não fazia ideia de qual gosto tinha aquilo, mas estava curioso para experimentar. Ela sentou cautelosamente na cama e bateu no espaço vazio do colchão, chamando-me. — Sente-se, Toledo, por favor. Eu estou muito feliz em tê-lo na minha casa hoje, sabia? Se eu soubesse... Ai, eu teria me arrumado melhor! Eu estou bem?
Será que ela estava dando em cima de mim? Eu já ouvi alguns desses casos. Sabia que alguns Primeiros cediam ao deslumbramento, e outras existências especiais nasciam do romance proibido. Mas nunquinha era um final feliz. Potências não podiam ser os criadores de seres humanos, então simplesmente precisavam abandonar suas crias. E muitos sofriam com isso. Bem, alguns conseguiam ser indiferentes, porque o nosso Lado Ruim era muito mais forte. Mas outros, mais experientes e conhecedores dos sentimentos do Universo, não conseguiam lidar com o trauma. Eles sabiam que a relação era algo proibido nas Escrituras, mas não eram capazes de superar. Então se aposentavam antes da hora, deixando um vácuo em sua posição anterior e desequilibrando a Natureza por um instante até outra Potência assumir o cargo.
— Você está ótima, Luna — comentei. Precisei sentar ao lado da garota antes que ela surtasse de vez.
— Você sabe meu nome — ela riu bobamente. Parecia uma constatação, quase como se eu não pudesse ouvir a frase e por isso ela havia dito em voz alta. — E eu sei o seu: Tomás Toledo.
Ela havia enchido a boca para falar o meu suposto nome. Eu também ri, mas baixinho, diferentemente dela.
— Normal — corrigi. Mas ela não pareceu captar a ideia. Permanecia com o sorriso muito estranho no rosto. — Eu tenho algumas coisas para falar contigo.
— Tudo bem. O quê? — ela ajeitou-se na cama.
Um outro Humano bateu na porta. Luna gritou um "pode entrar", e uma mulher alta e magra passou para dentro do quarto, acenando simpaticamente para mim. Ela trazia uma bandeja com dois copos em cima. Havia um líquido laranja dentro deles. Claro. Luna havia dito sobre o "suco de laranja". Então era um caldo da cor laranja. Agora fazia total sentido. Eu estava bem mais curioso para provar do gosto.
— Obrigado — agradeci a mulher e peguei o copo geladinho. Ela abriu um sorrisão e saiu na mesma velocidade em que entrou.
— Espero que esteja gostoso. Às vezes a Anastásia erra na mão. Até mesmo em algo simples como um suco de laranja, acredita? — Luna contou.
— Sinto muito — falei, porque não sabia bem o que responder para o desabafo.
Pus a beirada do copo nos lábios e tive medo de empurrar o conteúdo goela abaixo, porque ainda estava me acostumando com as novidades. Eu tinha de manter o profissionalismo, mas isso não significava que eu não podia curtir um pouquinho também, não era? Derrubei o caldo da cor laranja para baixo e senti uma sensação maravilhosa quando o líquido alcançou o meu interior.
— Isso é fantástico! — exclamei, impressionado.
Era bom demais para ser verdade. Tomei o resto em um único gole e fiquei decepcionado por não ter aproveitado mais. Mas era tão delicioso que eu não podia desgrudar meus lábios. Lambi-os dez vez ainda, mas o gosto logo se dissipou. Ah, droga! Eu queria mais, porém tinha de agir normalmente. Ela suspeitaria se eu ficasse o dia todo tomando daquela bebida estupenda.
— Sim — ela riu da minha atitude. Seu copo estava pela metade. Eu olhei um pouco sedento, confesso. — Você quer o meu?
Eu arregalei meus olhos. Pensei que Luna Azevedo era uma pessoa ruim, e era exatamente por isso que eu estava ali naquela Missão. Eu devia torná-la uma boa pessoa, embora não fizesse ideia de como fazer aquilo. Era a graça, claro, porque todas as Potências da Dimensão Oculta sabiam mais sobre fazer o que moralmente consideravam "errado" do que qualquer outra coisa. Mas havia o equilíbrio no Universo inteiro, e até mesmo nós, originalmente "maus", precisávamos seguir de acordo com as regras. Todas as existências tinham o Lado Bom e o Lado Ruim dentro de si, senão nossa essência se despedaçaria em um segundo.
Alguns, entretanto, conservavam mais de um do que do outro, e era nesse momento que os Primeiros do Século entravam na jogada. Na Dimensão Primordial — onde as Potências de origem positiva moravam — as existências que residiam ali aprendiam em como fazer o mal para ajudar quem só conseguia fazer o bem. Era o contrário. Nós, o Lado Ruim, ajudávamos os Humanos a serem um pouco melhores. E eles, o Lado Bom, tinham de fazer os Humanos a fazerem umas maldades. Perfeito equilíbrio.
Luna, por sua vez, estava abrindo mão daquele elixir divino por mim. Ninguém que estava beijando os pés do Lado Ruim teria uma atitude assim fácil e prontamente. Talvez ela não fosse uma Missão tão difícil quanto pensei.
— Sim! — disse antes que ela mudasse de ideia.
Ela me entregou o copo e eu também bebi de uma vez. Eu devia ter me demorado mais, porém o êxtase de engolir aquilo era estonteante.
— Você gosta mesmo de suco de laranja.
— É meu suco favorito — garanti. Nunca havia tomado nenhum outro, mas duvidava que algum pudesse superar aquele.
— Então... — ela cruzou as pernas, ansiosa. Eu podia ouvir seus batimentos cardíacos fora do ritmo. — Qual é o propósito da sua viagem?
Tomei a liberdade de fazer o mesmo movimento.
— O que eu vou te falar pode parecer um pouco estranho, mas todo mundo é estranho. Certo? — comecei. Ela concordou com seus cachinhos sacudindo no topo da cabeça. — Eu sou o seu Anjo da Guarda.
Era uma mentira, obviamente. Mas ninguém havia me dito que não podíamos mentir para nossos Humanos. E ela estava boquiaberta e seus olhos brilhavam, então não parecia tão errado assim. Em minha visão, para fazer o bem, às vezes tínhamos de fazer o mal. Como eu já havia dito, existia um certo equilíbrio nisso. O Universo era tão perfeito que me doía nas entranhas.
— O quê? — ela repetiu pela segunda vez naquele final de tarde.
— Anjo da Guarda! — falei mais alto e mais animado, porque ela precisava acreditar naquilo.
Luna Azevedo franziu as sobrancelhas. Bom, agora eu devia me preocupar um pouquinho, porque ela não me parecia muito feliz. E, para provar o que eu estava pensando, a jovem atriz se levantou em um impulso.
— Então... Então você não é o verdadeiro Tomás Toledo?
Fitei o sujeito-não-tão-bonito-assim colado na parede dela. Eu não tinha ciência da magia que ela havia visto nele. Tudo bem que ele tinha um lindo topetinho castanho, olhos gigantes e expressivos e era alto como uma Árvore-Mãe, mas ele ainda continuava sendo Humano. Não havia nada místico nele. Luna não devia ficar tão animada ao vê-lo.
— Eu sou o Normal. Tentei te falar isso desde o primeiro momento — tentei justificar a confusãozinha.
— Eu não me importo se você é o meu "Anjo da Guarda" — Luna fez aspas com os dedos. Achei bastante desrespeitoso, mas eu entendia o seu nervosismo. — Você não é o Tomás Toledo. Tem noção disso? Tomás Toledo é tudo!
— Bem — levantei o indicador e tentei formular minha replica sem que eu fosse ofendê-la também. —, ele não é tudo. Se você conhecesse o Tudo, com certeza mudaria seus conceitos. Sabia que ele se acha o dono da razão só porque é a base sólida da existência de todos? — Bufei, gesticulando. — Ele é um metido. Mas é gente boa. Mas o seu Toledo não é nenhuma Potência; é só Humano.
Ela cruzou os braços e trancou sua expressão a qual eu estava quase achando adorável.
— E o que você tem contra os humanos, Sr. Anjo da Guarda? Eu pensei que anjos não mentiam, mas você se achou no direito de fingir ser outra pessoa.
— Tecnicamente não me apresentei como Tomás Toledo, mas entendo o seu ponto — levantei-me da cama. Ela afastou-se dois passos. — E não precisa ter medo. Eu sou alguém que está disposto a ajudá-la.
— Eu não preciso de ajuda, ok? Só com meu cabelo e com uma massagem, mas se você não vai fazer nenhum dos dois, então, por favor, saia do meu quarto antes que eu chame alguém para arrastá-lo para fora — Luna estava respirando com pesar.
Estralei os dedos enquanto pensava em uma solução. Eu não podia simplesmente sair, porque não tinha noção dos perigos lá fora e não podia correr o risco de perder alguma fagulha de existência. Precisava pensar rápido, porque Luna falava sério mesmo.
— E se nos apresentássemos de verdade? — soltei.
— Eu não quero saber como um Anjo se parece. Se você não for igual ao Tomás Toledo, então, por favor, saia do meu quarto.
— Eu sou mais bonito que o Tomás Toledo — sorri de maneira convencida. Acho que a imagem que eu ainda estava espelhando me ajudou a fazê-la hesitar. Ela, querendo ou não, estava vendo o ídolo em sua frente. Embora soubesse que eu não era o tal Toledo, ainda estava tentada a olhar para mim.
— Ninguém é mais bonito que o Toledo — disse.
Eu ri, caminhando calmamente em sua direção. Ela não podia se arrastar para trás porque uma parede bloqueava a sua passagem. Pus meu braço na altura da sua cabeça e travei a única saída também. Ela respirava contra meu rosto, e eu sentia seu hálito mordo contra minha pele sensível, embora impenetrável.
Devagar, como um pintor espalhando um pouco da tinta contra a tela em branco, deixei minha forma real ganhar espaço. Eu não sabia como seria para ela assistir a transformação, tampouco se os seus olhos de Humano aguentariam a imagem sublime que se estenderia a poucos centímetros. Mas o fiz mesmo assim, porque não havia nada nas Escrituras dizendo para não "se trocar" na frente daquelas existências inferiores. Permiti que o dourado dos meus cabelos escapulisse no meio do acastanhado de outrora e senti as flores brotando em profunda felicidade neles. O âmbar dos meus olhos reluziu. A pele brilhou. E meu corpo ganhou mais peso graças ao colete de aço contra meu tórax.
Luna piscou algumas vezes, nitidamente impressionada. Eu continuava na mesma estatura, na mesma posição, mas estava diferente. Sim, eu era uma Potência muito bela, como também já havia mencionado antes. Éramos muito similares às feições dos Humanos, porque estes foram criados a partir da nossa imagem. Mas éramos muito mais, íamos muito além, porque um astro estava no lugar do nosso coração. E, embora ele também batesse como um órgão vital humano, não sangrávamos. Potências eram seres divinos, imortais, cheios de Universo dentro de si. Tínhamos meteoros dançando dentro da gente, e eles eram impossíveis de serem vistos pelos Humanos sem que suas pupilas derretessem.
— Você é mesmo um anjo... — ela sussurrou.
— Mais bonito que o Tomás Toledo? — brinquei.
— Não – ela respondeu prontamente. Eu fechei um pouco os olhos, desafiador. – Está bem. É sim. Feliz?
Deitei minha mão sobre o peito e fingi que choraria.
– Eu estou realmente lisonjeado em receber sua aprovação no quesito beleza, Luna Azevedo. Eu nunca pensei que poderia superar as qualidades físicas do nosso querido e desejado Tomás Toledo.
– Você pode ser um anjo, mas eu ainda tenho coragem de mandá-lo para o inferno – Luna afirmou.
Sei lá, mas estava me simpatizando com a Humana.
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