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Queria ter te conhecido melhor

No corpo idoso da minha avó

Vivia muito de mim, do que eu sou.

Mulher que foi dada a um marido

E duramente educada

Num tempo de poucos pretextos

Traída

Sem jeito de querer nada além de simplesmente

Ver três filhos crescerem

Lhe darem um orgulho

Um orgulho difícil de ter,

Quando só se tem um corpo

Feminino e pobre

Sozinho no mundo

Pra trabalhar... alimentar e vestir outros corpos.

Sei que nas fendas da sua pele, vó

marcas do tempo

Muita história ficou sem ser contada

Esquecida em alguma calçada

Em alguma parede descascada ou encardida

De Minas e de Goiás

Paredes que a senhora trabalhou até a última vértebra

da coluna, ou das "cadeira entrevada"

O ultimo nervo que doeu...

Pra pintar, por cerâmica, por gesso, cortina de renda branca e blindex.

Sei que quando em casa, vó, a senhora me mandou mensagem

E disse que tudo estava igual: "quente e empoeirado"

As dores eram as mesmas, não precisava preocupar.

Uma vontade te doía, um último desejo

De sair pra dançar um forró?

Talvez,

Caminhar?

Comer um tira gosto de linguiça frita

tomar uma skol gelada com uma pitada de sal...?

Não pude te ver a tempo, vó, nem segurar sua mão

que eu achava tão elegante

Meio fortes de tanta limpeza,

meio agudas de um mistério de mulher

que aprendeu tudo sozinha, "na marra"...

De uma história sobre a senhora

Que eu nunca ouvi,

Sobre um baile, ou um romance, sobre uma tristeza ou um sonho...

Nunca aprendi a costurar, nem a fazer pão de queijo

Não dançamos nenhum forró

Mas sei de um suspiro de orgulho

que a senhora deve ter dado,

De ter ido "parar lá naquela Itália" e ter sabido se virar

E ainda trazido presentes,

Que uma pessoa que fosse avarenta não iria comprar.

E de já ter viajado "muito"

(não foi tanto, mas tinha sido bastante)

de ter até se divertido alguma coisa

(beber umas caixas de cerveja na companhia dos sobrinhos, e dar risada a noite inteira poderia ter sido mais frequente)

E não ter mais colocado homem dentro de casa...

Palavras da senhora,

Faltou alguma coisa vó? Ou sobrou?

Queria ter ouvido mais...

Eu tenho orgulho do orgulho que a senhora tinha,

Das escolhas que fazia.

"Eliara, quando a gente faz uma escolha, não pode arrepender"

E é verdade, se não, como é que se pode seguir em frente? Eu aprendi, vó.

Sei que do seu choro seco, ou escondido

Pouca gente entendia

o gemido espremido, rouco,

De um ser que ficou preso lá no fundo

Sem poder ter sido...

Uma menina

Que poucas vezes teve a chance de brincar

E com as bonecas sonhar a vida que teria...

Uma coisa que eu tenho, e que tomei da senhora

De quando a via fumar seu cigarro, sentada na varanda

Confabulando a próxima reforma na casa

Final de tarde sempre quente, 

Fresca de depois de molhar as plantas...

"Obrigada, meu Deus, obrigada Nossa Senhora!"

Calada observava tudo.

Minha mãe dizia: olhos pequenos que enxergam longe.


Sei que não tinha as palavras polidas que eu queria escutar

Pra responder minhas teorias,

Me convencer a concordar

"Eu acho que eu sou doida, vó - Não, eu acho que você é normal."

Mas eu sentia, 

Que te ouvir, ainda que nada tivesse a ver

Elogios melosos

Ou conselhos clichê

A senhora era a segunda metade da minha mãe

Da minha casa, da minha infância.

Do que eu aprendi a chamar de eu.


Obrigada, vó, pelo que disse no último áudio

Eu entendi a senhora, e eu sorri, e fiquei aliviada

Porque com tão pouca voz, tão pouco verso

Pouca prosa

Eu ouvi, que a senhora me entendia.


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