Capítulo Único
Está frio lá fora.
E eu, presa aqui dentro dessa cozinha. Devem estar 50 graus aqui dentro, mas não vou reclamar. Fico feliz por ter essa oportunidade de trabalhar aqui. Sr. Mathew me estendeu a mão e vou aceitar. É uma ótima experiência para mim, e quem sabe não sou promovida!
Só não gosto muito da ideia de trabalhar no Natal. Não que eu fosse comemorar de qualquer forma, estou sozinha aqui. Mas não reclamaria de estar em casa assistindo TV e comendo um bom hambúrguer. Que ninguém aqui me escute falando isso. Tenho certeza que vão me matar se sonharem que como fast food. Parece que todo mundo automaticamente torce o nariz para esse tipo de comida depois que entra na faculdade de gastronomia e se a comida não for francesa, não serve. Me processem então.
Me concentro em mexer o molho para que não grude no fundo da panela. Não sou sedentária, mas meus exercícios matinais não me prepararam para mexer uma panela tão grande. Meus braços estão cansados! Não vejo a hora do meu intervalo, estou morrendo de fome.
- Isadora! - Ouço alguém gritar meu nome. - Como está o molho? - o sous chef pergunta em meio ao caos da cozinha, correndo de uma praça a outra para tentar colocar tudo em ordem, enquanto alguém grita as ordens que chegam das comandas e os outros cozinheiros se apressam para montar os pratos que são pedidos pelos clientes. Essa festa de Natal veio a calhar. Toda essa confusão e correria de servir cento e cinquenta pessoas nesse evento de gala que uma socialite resolveu organizar serve muito bem para ocupar minhas mãos e minha mente. Pelo menos assim não fico conferindo o telefone de cinco em cinco minutos na esperança de alguma mensagem. A verdade é que nem sei quem eu quero que me mande mensagem.
Quando saí do Brasil e vim para Nova York para, finalmente, começar minha vida, tinha certeza que estava fazendo a escolha certa. E ainda tenho. Sair de casa foi a melhor coisa que fiz. Mas, ainda assim, é como se uma partezinha rebelde da minha mente ainda esperasse uma ligação, uma mensagem, um e-mail, uma corrente de ano-novo com uma mensagem padronizada que com certeza todo mundo ignora. Qualquer coisa. Qualquer sinal de que minha existência é lembrada. Valorizada? Não, aí já é esperar demais.
- Quase pronto - respondo. Esse calor me lembra o Brasil. Ok, talvez isso seja um exagero, mas lembro que alguns dias durante o verão enquanto eu morava lá que pareciam de verdade tão quentes quanto essa cozinha abafada. O que é ridículo considerando toda aquela neve grudada no chão lá fora.
- Isa. - Lorena, a única outra brasileira que trabalha no restaurante, como garçonete, para ao meu lado com o caderninho na mão, fingindo que está discutindo algum pedido. - Tem um gato lá fora - ela sussurra no meu ouvido. - E ele está jantando sozinho. - Ela para por um segundo e morde a tampa da caneta. - Na verdade é bem triste ele estar jantando sozinho no Natal. Tadinho. - Ela suspira.
Lorena é uma mulher baixinha, magra e muito espevitada. Seus olhos azuis são grandes demais para o seu rosto e dão a ela uma aparência encantadora. Ela é simplesmente linda. E minha maior fonte de diversão aqui.
- Será que ele é nosso presente de Natal? - ela pergunta, esperançosa. Eu rio. Nosso?
- Papai Noel não é Santo Antônio, garota.
....
O serviço está, finalmente, no fim. Estou ajudando com a última parte da sobremesa e não vejo a hora de ir para casa. Passa da meia noite e eu ainda não consegui tirar meu intervalo. Que saco. Preciso fazer xixi. Cutuco um homem que está ao meu lado e indico que preciso sair, e corro para o banheiro que fica perto da cozinha. Puxo o celular do bolso e aproveito para ver minhas mensagens. Algumas mensagens de feliz natal e três chamadas perdidas do meu irmão. Abro o aplicativo de vídeo-chamada e retorno. Vou tirar cinco minutos, ninguém vai morrer. Se alguém reclamar, digo que estou com dor de barriga.
O telefone toca algumas vezes e estou quase desistindo quando ele atende.
- Feliz Natal, pirralha! - ele grita do outro lado da tela quando atende e eu reviro os olhos.
- Feliz Natal, cabeçudo - respondo. - Que barulheira toda é essa? Onde você está?
Ele gira o celular ao redor e vejo uma multidão barulhenta ao redor. Me apresso para diminuir o volume antes que alguém me pegue no flagra. Ele está em uma festa. Em plena véspera de Natal. E tem uma loira pendurada no ombro dele. Ai, Gabriel.
- Eu tenho que voltar para o trabalho, só liguei para dizer oi. - digo e ele faz uma careta confusa como se não tivesse me ouvido direito. - Você está em boa companhia, então vou indo - brinco e ele sorri.
- Vou dizer para a mamãe que você mandou Feliz Natal - ele me responde, aos gritos, com um sorriso sacana no rosto. Reviro os olhos mais uma vez.
- Eu não mandei - sibilo, irritada. Ele dá os ombros e desliga. Na minha cara. Filho da mãe!
Saio do banheiro e volto para minha praça na sobremesa, de mal humor. O cara que está trabalhando ao meu lado faz alguma piadinha espirituosa e eu apenas olho para ele de cara feia. Vou até o forno pegar a grande assadeira com as tortas e tento equilibrar o peso e o calor enquanto abro passagem por entre os outros cozinheiros. Quando consigo colocar a assadeira em uma mesa, esbarro em uma ponta quente e queimo meu pulso. Com um xingamento alto, corro para a pia e enfio meu braço debaixo da água gelada.
- Você tá bem, Isa? - Lorena aparece do inferno, me assustando.
- Eu estou bem. Não pareço bem, Lorena? Agora você vai dizer que eu não pareço bem? - respondo, casada, irritada, frustrada, e todos os outros ada da vida. Ela levanta os dois braços para cima e aponta para a porta.
- Só vim te chamar para ver o gato que ainda está lá. Ele está comendo a sua sobremesa agora e pediu para elogiar o chef. - Ela me olha com um olhar de cumplicidade e eu não sei se abraço ou se bato nela. Não tenho tempo para isso agora. Não posso sair daqui para conversar com cliente ou o Sr. Mathew vai arrancar meu coro!
Ela me olha com aquele olhar fingido de inocência e eu me rendo. Sorrateiramente, saio da cozinha e vou até o salão, e vou para a mesa que Lorena me indicou. E... Uau!
Que mundo ridiculamente pequeno. É o mesmo homem que eu encontrei na livraria semana passada! Me controlo para não soltar uma gargalhada histérica no meio do salão. Imagina? Ser demitida antes de ser contratada de verdade? Já posso ver as manchetes: "mulher tem crise de riso no meio de restaurante com estrela Michelin e precisa ser socorrida por bombeiros depois de desmaiar com falta de ar". Claro que a manchete só existe na minha cabeça, na vida real só iam me olhar como se eu fosse doida e chamar a polícia.
- Boa noite, senhor - cumprimento, tentando não babar diante de toda a beleza que está sentada na mesa. Me pergunto se ele me reconhece. Será que se eu acidentalmente esbarrar na taça de vinho e derrubar na blusa branca dele, ele vai ter que tirar a roupa aqui mesmo?
- Boa noite, senhorita...?
- Isadora - respondo, quebrando o protocolo de me apresentar pelo meu sobrenome, como é costume aqui. Tenho vontade de fazer biquinho por ele não ter me reconhecido, mas isso é ridículo demais até para mim. Ele sorri e acena com a cabeça. Não sei o que é mais bonito: seu sorriso, seus olhos castanhos, seu cabelo preto caindo na testa, seu queixo, seu pescoço, seu...
- Gostaria de te cumprimentar pela sobremesa. Fez um trabalho magnífico - ele elogia e eu me controlo para não derreter toda com esse sotaque maravilhoso dele. Sotaque americano não era para ser bonito, era? - Eu sou Josh, aliás - ele se apresenta, ainda sorrindo, e eu rapidamente agradeço e volto correndo para a cozinha antes que alguém dê por falta de mim.
Troco um olhar cúmplice com Lorena e movo meus lábios formando um "uau" quando passo por ela.
- Eu sei! - ela diz em um grito sussurrado. Dramática, ela começa a se abanar com o bloquinho de comandas. - Só de olhar para ele, eu tô tendo cada ideia...
Mudo de bancada para começar a recolher os utensílios e levá-los para lavar e, quando passo pela estação de legumes, cato uma cenoura e entrego para ela.
- Aqui. Vai lá ter suas ideias longe daqui e me deixa trabalhar.
Já passa das três da manhã quando saio do restaurante. Estou exausta, mas feliz. Acho de verdade que vou ser contratada quando me formar, o Sr. Mathew elogiou muito meu trabalho essa noite. E acho que não notou minhas escapadas para falar com Gabriel nem para cumprimentar o cliente-gato.
A noite está fria mas, depois de passar horas naquela sauna forçada que é a cozinha do restaurante, decido caminhar um pouco para me refrescar.
Confesso que Lorena não foi a única que teve ideias sobre o tal Josh essa noite. Não reclamaria nem um pouquinho se ele caísse no meu colo aqui vestindo um gorro natalino e nada mais. Eu encararia até esse frio vestida de Mamãe Noel sexy se fosse o caso. Tenho certeza que ia valer a pena.
Nova York não é exatamente uma cidade segura para andar sozinha de madrugada, então dou um grito quando sinto uma mão agarrar meu braço. Viro em direção ao infeliz que me assustou desse jeito e vejo Josh, com as mãos para cima em sinal de rendição e um sorriso de canto de rosto que me faz ter vontade de pular no seu pescoço. Se para esganá-lo ou outra coisa, ainda não decidi. Mas a adrenalina do susto faz com que eu dê um ataque.
- Você é maluco? Quer me matar do coração? Achei que fosse um bandido, que ia me assaltar, matar, vender meus órgãos no mercado negro! Qual é o seu problema?! - eu grito, e é só quando ele me olha mais confuso ainda é que percebo que estou gritando em português. - Tá me olhando com essa cara por que? Tá achando que eu sou a doida? Sou doida sim! - continuo meu ataque descompensado, em português mesmo. Azar.
- Desculpe, não queria te assustar - ele responde na língua que nós dois conseguimos entender. - Mas tenho que admitir que essa língua que você estava gritando é linda. Espanhol? - Josh pergunta sedutoramente e eu bufo. Por que todo mundo sempre acha que é espanhol?
- Português - respondo. - O que você quer, além de quase me fazer ter um ataque do coração? - pergunto. Depois que falo é que percebo que soei mal-educada, mas é tarde demais. Ele ainda está sorrindo, então acho que está tudo bem.
- Na verdade estava esperando você sair do trabalho para te convidar para beber alguma coisa - ele explica. - Alguém que faz uma sobremesa maravilhosa como aquela só pode ser uma excelente companhia.
Sou mesmo uma ótima companhia. Ele ganha pontos comigo por perceber isso.
- Você tem o costume de esperar estranhas na porta do trabalho, assustar a alma delas para fora do corpo e depois oferecer uma bebida? - pergunto, meio brincando, meio falando sério, meio preocupada que eu vá terminar de verdade nas manchetes de um jornal, mas dessa vez nas páginas policiais. Ele oferece o braço e, depois de pensar se isso seria uma boa ideia por um segundo inteiro, decido que é uma péssima ideia. Aceito seu braço de bom grado.
- Você não é uma estranha. Nós nos conhecemos naquela livraria semana passada, lembra? - Ele inclina a cabeça para o lado e me olha com interesse. Então ele lembra!
- Vagamente. - minto, sem evitar sorrir. Ele sorri de volta.
Caminhamos de braços dados em por alguns minutos, conversando amenidades sobre a noite, sobre a comida, sobre o tempo, sobre a neve e, quando percebo que estamos quase chegando no meu apartamento, paro e viro de frente para ele.
- Bom, muito obrigada por me acompanhar, mas você pode ir. Tenho certeza que tem coisa mais importante para fazer na noite de Natal - digo e ele arqueia uma sobrancelha e me olha como se eu tivesse acabado de falar o maior absurdo do universo.
- Não tem nada que eu gostaria de fazer mais do que estar com você, Isadora - ele diz, e é a minha vez que arquear a sobrancelha. Acho meio exagerado. Mas fofo. Ah, quem estou querendo enganar? Qualquer coisa que esse homem disser vai me ganhar.
- Nesse caso, que tal tomarmos aquela bebida? - sugiro, e ele sorri. - No meu apartamento – concluo, falando cada sílaba bem devagar. Me controlo para não rir da expressão surpresa no rosto dele. Por fim, ele sorri e concorda.
Talvez Papai Noel seja Santo Antônio afinal.
Pelo menos por essa noite.
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