14
Às vezes ela sentia que estava perdendo o controle sobre aquilo, ou simplesmente se importando demais. Aquilo era passado, seus pais estavam mortos e enterrados há dezoito anos, e ela tinha sobrevivido, ela estava viva, e isso bastava. Ela tinha tido uma segunda chance e não era sempre que isso acontecia. Quando a vida queria te ferrar ela ferrava mesmo. Então ela era uma sobrevivente.
Então por que era tão importante remoer o passado? Por que eles estavam naquela casa? Qual era o propósito em entender tudo aquilo?
Eram coisas que nem mesmo ela conseguia responder.
Talvez tudo fosse uma tremenda perda de tempo. O que ela deveria fazer (e já tinha passado da hora) era superar a coisa e pronto. Vida que segue.
Por que tentar reviver algo que já estava morto e enterrado? Era como abrir a sepultura e desenterrar os ossos de seus pais.
Era por conta do mistério? Havia alguma coisa oculta no assassinato de seus pais e essa coisa perseguia, incomodava, e seu subconsciente dizia que enquanto aquilo não fosse revelado ela não poderia ter paz. De certa forma fazia sentido. Ela não tinha paz porque não saber exatamente o que tinha acontecido, e nem o motivo de ter acontecido a incomodava.
Então era aquilo que ela estava fazendo ali, ela estava buscando paz. Mesmo que essa paz fosse uma tênue esperança. Talvez a paz fosse apenas uma ilusão. Não se pode ter paz quando aos sete anos você vê um machado partindo a cabeça de sua mãe ao meio.
Deitada na cama que um dia tinha sido de seus pais, Kelly fechou os olhos e tentou se concentrar, tentou chamar o passado lentamente de volta, ouvir os sons da casa, e logo aqueles sons desapareceram, e o que ficou foram os sons do passado, os sons que ainda rimbombavam dentro de sua mente, como um sino a badalar aterrorizantemente.
Uma noite tenebrosa. Ela se lembrava quando a escuridão do sono simplesmente se dissipou, quando os gritos de sua mãe encheram a Kombi e ela abriu os olhos. O que viu foi o terror, o que vislumbrou foi a verdade.
"Sua mãe gritando. O vidro estourando. A machado partindo a cabeça dela ao meio. O sangue espirrando por toda a parte enquanto o corpo dela sofria espasmos violentos.
— MAMÃE! MAMÃE! NÃO!!!!"
Sua mãe estava gritando, e poucos segundos depois ela estava morta com um machado fincado na cabeça. O sangue manchou o vidro, seu rosto foi salpicado com algumas gotas.
Ela gritou desesperada achando que talvez tudo não passasse de um pesadelo. Ela pedia a Deus para despertar, ela fez força para que isso acontecesse. Mas por algum motivo continuou dormindo. Não se pode despertar do pesadelo quando ele é real.
Então a porta lateral da Kombi se abriu, e lá estava ele, envolto naquele manto de escuridão. O assassino usando a capa impermeável preta, o machado ainda pingando sangue na mão. E ele estava sorrindo.
Sim. Pela primeira vez aquela lembrança vinha à tona em sua mente. Havia um sorriso nos lábios da "escuridão", o sorriso mais sinistro que alguém podia ver.
Deitada ali, de olhos fechados, Kelly vislumbrou dois olhos vermelhos em sua mente. O rosto coberto de escuridão se revelava mas era insano, imperfeito, como o rosto da morte, como o rosto do diabo.
Kelly abriu os olhos e enxugou as lágrimas. Esperava acordar dentro da Kombi, no meio daquele pesadelo, como se tivesse sido transportada para o passado, mas ainda era o quarto, e ela já era uma adulta de 25 anos.
Não estava pronta para aquilo, não mesmo, e achava que nunca estaria. Não havia como estar pronto para algo assim. Algo assim não deveria existir nunca. Uma criança de sete anos não deveria presenciar a morte dos pais daquela maneira. Algumas marcas podiam ser eternas. Não saiam nunca.
Kelly suspirou. Sentou-se na cama ouvindo o silêncio que desabava sobre a casa como uma mortalha.
Ela pensou nas possibilidades do que poderia fazer com aquela casa, já que era a proprietária direta. Talvez pudesse reforma-la. Quem sabe alugar e ganhar algum dinheiro. Não pretendia voltar ali de novo, mas podia manter a casa em ordem. Lembrava-se vagamente de quando seu pai era vivo. Ele gostava de manter as coisas em ordem.
Kelly ouviu um ruído e ficou em alerta. Por um momento procurou saber se onde vinha o ruído até que ele se repetiu e ela olhou para o teto.
Estava vindo de lá, do sótão. Parecia... Parecia o som amorfo de passos, alguém andando no sótão.
Kelly sentiu seu coração palpitar e buscou uma explicação plausível. Felipe e Adilson tinham ido na cidade mas os outros estavam ali. Talvez algum deles estivesse andando no sótão, provavelmente Bruno fuçando as coisas.
O ruído se repetiu, e sim, eram passos, passos amorfos no sótão.
Kelly se levantou pisando descalço o piso frio de madeira. Saiu no corredor e olhou na direção do hall.
A escada que dava acesso ao sótão não havia sido acionada.
Kelly franziu o cenho e começou a caminhar lentamente na direção do hall. Tinha a leve impressão de que o piso rangia sob seu peso.
Ela chegou perto da mesa de sinuca e ficou ali em silêncio olhando para o alçapão. Não havia um único ruído sequer, mas no silêncio havia vozes gritos de terror no meio de uma noite convulsa.
Kelly se viu puxando o alçapão com uma certa dificuldade. A escada desceu e ela ficou olhando para a abertura, e era como olhar para a boca escura e ferida de um monstro que estava prestes a engoli-la.
Havia um interruptor na parede à direita e ela o acionou. Ficou aliviada quando viu a luz se acender lá em cima.
Kelly ficou parada ali por mais alguns segundos, como se precisasse tô ar coragem para dar o próximo passo. Então colocou os pés no primeiro degrau e subiu.
O sótão estava abarrotado de quinquilharias e poeira. Não havia ninguém lá. Mas então Kelly olhou para o chão e viu rastros marcados na poeira. Seu coração palpitou ainda mais e ela arregalou os olhos sentindo uma pintada de medo tomando conta de si.
Alguém estivera ali, recentemente.
Podia ter sido qualquer um. Talvez fosse realmente Bruno. As marcas eram de pés relativamente grandes, pés de homem, então devia ser realmente Bruno. Ele estiveram ali a pouco.
"Mas por onde ele saiu? "
Kelly sentiu-se incomodada.
" Bem, ele... "
— Bruno. Você está aí?
Silêncio.
Kelly avançou seguindo as pegadas. Parte dela queria sair correndo dali, mas ela caminhou até o meio do sótão.
Vou alguém parado no meio da penumbra e soltou um grito de pavor. Seus olhos arregalaram-se em pânico.
— Quem está aí?! Quem...?
Kelly franziu o cenho e se aproximou vendo que era um espelho de corpo inteiro, e que a pessoa que ela vira era seu reflexo.
Suspirou aliviada, experimentou um sorriso de nervosismo.
" Histérica. "
Kelly viu uma escrivaninha perto do espelho e ela se aproximou.
Puxou uma pesada cadeira e bateu a poeira de cima do acento. Sentou-se e experimentou as gavetas. Havia três, nada nas duas primeiras. A terceira estava meio emperrada e ela teve uma certa dificuldade para abrir.
Havia alguns papéis. Pareciam notas, alguns documentos antigos com o símbolo da prefeitura.
Kelly examinou alguns deles e então achou um livro de capa preta acolchoada.
Ao abri-lo viu que se tratava de um álbum. Logo viu que não era um álbum comum de família.
Kelly viu uma foto estranha. Parecia um quarto preto havia um castiçal com velas acesas de cada lado da cama. Na parede tinha um pentagrama desenhado.
— Mas que merda é essa?! - Exclamou Kelly.
A próxima foto mostrava duas pessoas na cama. Um homem desconhecido que estava nu e uma mulher usando uma camisola preta.
Na próxima foto o rosto da mulher estava mais nítido e Kelly arregalou os olhos.
Era a mulher da padaria!
Na foto ela estava mais jovem e mais bonita, mas inconfundivelmente era ela!
Kelly estava confusa. Que tipo de álbum era aquele, e o que aquilo estava fazendo na sua casa? Parecia algum tipo de ritual. A julgar pelo pentagrama na parede parecia ser ocultismo.
Ela foi passando as fotos. Tinha a impressão que conhecia algumas daquelas pessoas, as lembranças estavam borradas em sua mente.
Seus olhos saltaram da órbita quando ela viu uma foto de seus pais. Seu pai beijava o rosto de sua mãe. Eles pareciam felizes. Ela estava usando uma camisola preta e seu pai parecia estar nu.
Kelly ficou olhando para aquela foto por um longo tempo, apoiando os cotovelos na escrivaninha e segunda do o queixo com as mãos.
— Mas que tipo de merda é essa? O que vocês faziam?
Sua voz soou estranha, como se ela falasse de dentro de uma caixa.
Foi passando as fotos e outra lhe chamou a atenção.
Parecia haver um espelho à esquerda e nele estava o reflexo difuso de uma criança. Na foto nada mais era do que um borrão preto, mas era inconfundívelmente uma criança.
Kelly passou o dedo sobre o borrão.
Uma pontada de assombro percorreu seu corpo e ela estremeceu. Será que aquelas pessoas levavam crianças para presenciarem aquela "orgia ritualística"? Será que seus pais levavam ela para ver aquela coisa?
Era bizarro, um pensamento abominável.
Ela parou em outra foto, no final do álbum. Mostrava quatro pessoas nuas naquela mesma cama. Dois homens e duas mulheres. Os rostos das quatro pessoas tinham sido rabiscados com caneta preta, mas de alguma forma ela sabia que seu pai e sua mãe estavam ali.
Teriam eles participado de alguma espécie de orgia no passado, um ritual satânico?
Era bizarro, mas parecia que sim.
Kelly estremeceu com a ideia, ela virou a página do álbum mas a última foto havia sido subtraída dali.
Ela fechou a coisa e suspirou.
Ficou ali, parada, tentando entender aquilo, mas não vinha compreensão nenhuma.
Ela se lembrou da estranha mulher na padaria, a mulher que de forma mais estranha ainda estava nas fotos daquele álbum, ali, na sua casa. Então, era mais do que óbvio que ela tinha alguma ligação com seus pais no passado.
Kelly precisava conversar com ela o quanto antes.
Ela pegou o álbum e saiu do sótão.
Deu de cara com rose no hall e tomou um susto.
— Merda! Você me assustou!
— Eu não queria. Desculpe. O que tem lá em cima?
— Apenas poeira.
Kelly fechou o alçapão.
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