
V.| Na salinha
O Sol brilhava alto e o céu reluzia com o seu azul onírico. As borboletas esvoaçavam e as moscas chatas deambulavam. As flores coloridas, com as suas pétalas bem abertas, eram visitadas pelas abelhas. Os gatos esticavam-se nos muros a apanhar banhos de Sol e os cães passeavam de cauda a abanar. Um grupo de velhos conversava sentado num banco de jardim, enquanto um outro aglomerado de gente da mesma idade avançada jogava petanca na terra batida.
Pensativa, com a cabeça quase a tocar o chão e a mente distante, Bibliós vagueava pela pequena vila. Tentava formular no seu raciocínio uma forma de dar uma vida menos solitária aos livros do falecido Senhor Palavras. No entanto, a solução verificava-se difícil de encontrar: uns não sabiam ler, e os que sabiam, não tinham paciência nem estavam interessados em utilizar a sua habilidade de decifrar aqueles símbolos chamados letras. Que chatice!
A rapariga passou rente à salinha onde, em acordo mútuo, a vila decidira entregar-lhe os constituintes da biblioteca do centenário. Estranhamente, a porta estava aberta. Que esquisito! Regra geral, aquele espaço estava sempre fechado, tirando umas quantas reuniões que lá se faziam uma vez por outra e que eram de conhecimento geral dos habitantes da localidade. Ninguém anunciara nada. No café, não fora afixado nenhum cartaz. Porque raios é que a porta estava aberta?
Um vulto encapuzado escondia-se nos cantos escuros das paredes do compartimento. Movimentava-se sorrateiramente sem permitir que lhe vissem a cara. Fosse quem fosse, parecia atarefado. Dava a sensação que colava qualquer coisa nas barreiras de tijolos que delimitavam a sala.
Intrigada, a adolescente adentrou no espaço. O outro alguém, assustado, virou-se e deixou cair um rolo de fita-cola no chão, que rebolou até aos pés da miúda.
- Deinós? - Perguntou a menina dos livros, reconhecendo o rapaz.
- Bibliós? O que é que estás aqui a fazer?
- O que é que estás a fazer pergunto eu.
- A pendurar desenhos. Não se vê? - Retorquiu o jovem, com má cara.
- Que lindos! - Elogiou a adolescente, aproximando-se dos papéis e ignorando o ar carrancudo do outro. - Foste tu que fizeste?
- Fui. - Respondeu o rapaz, envergonhado, abandonando a resmunguice.
A carvão, a lápis de cor, a pastel, a aguarela, a caneta de ponta fina, a óleo e a acrílico. Técnica mista, colagem, toda a espécie de arte ali amostrada na pequena salinha da vila, toda construída e trabalhada pelas mãos inocentes de um adolescente de meros quinze anos. Eis o artista, cujo destino na arte escrito estava! De exposições em galerias e museus consagrados havia de ser o seu futuro. O nome "Deinós" nos cartazes informativos dos grandes acontecimentos culturais haveria de estar estampado.
- A minha mãe e o meu pai dizem que ninguém vive da arte. Só traz miséria!
- Isso não é verdade! - Ripostou Bibliós, tentando confortar o rapaz. - Olha para a perfeição destes desenhos! São incríveis! Tenho a certeza de que terás muito sucesso!
- Se assim o dizes...
- Se não tivessem qualidade, não os estarias a expô-los aqui.
- Foi ideia da minha tia. - Informou Deinós, como quem não quer a coisa. - Lembras-te daquela reunião há uns dias, por causa do testamento do Senhor Palavras? Eu não estava a ligar patavina. Apetecia-me desenhar, então agarrei no meu bloco e comecei a rabiscar. A minha tia viu. E eu: "Fui apanhado! Estou feito!". Mas em vez de me pragar um ralhete, a minha tia disse-me que eu tinha muito talento e que devia fazer uma exposição. Deu-me duas semanas e meia, até ao fim das férias, para decorar esta salinha. Ainda não sei o que expor. Vim só tirar as medidas, ver quantos desenhos eram necessários.
- Por falar no Senhor Palavras... - Começou vagarosamente a rapariga, deixando o outro jovem expectante.
- Sim?
- Entregaram-me a biblioteca toda dele. E eu não sei o que fazer àqueles livros todos, mas acabaste de me dar uma ideia.
- Ai sim? Então?
- Acho que a intenção do Senhor Palavras era que os seus livros estivessem acessíveis a toda a população da nossa vila. Pelo que vi, as pessoas andam pouco motivadas para a leitura. Acham os livros chatos. Já que tens tanto jeito para o desenho e as pessoas estão dispostas a ver a tua arte, e se fizesses umas ilustrações dos livros? Boa parte deles já os li. Sei exatamente como cativar para a leitura!
- Queres que eu faça umas ilustrações? Pode ser, desde que me digas o que queres que eu desenhe. - Respondeu o rapaz. - E obrigado! Acabaste de me resolver a minha indecisão!
- Perfeito! - Exclamou a miúda, quase aos pulos. - Eu ajudo-te a tirar as medidas das paredes!
- A sério? Obrigado!
Os adolescentes passaram o resto do dia a preparar a exposição entre risos e gargalhadas. Afinal o miúdo dos auscultadores e do bloco não era tão tímido como parecia! Bem pelo contrário. Era divertido e extrovertido! E agora que estavam juntos, a sós, que bela oportunidade para a menina dos livros confessar o seu amor.
- Queria te dizer uma coisa... - Principiou a rapariga.
- Que acabou a fita-cola? Acabei de reparar agora. Vou num instante à mercearia ver se arranjo mais alguma. Até já!
E lá ficou o amor por declarar.
(863 palavras)
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