6 - Lampejo fugaz
Foi o miado arrastado e preguiçoso de Harrison Ford que acordou Hadassa. Ela resmungou, segurando o gato e o apertando contra o peito.
— Só porque não tenho aula de manhã e achei que poderia dormir até mais tarde, um despertador felino decidiu me arrancar da cama.
Em resposta, Harrison Ford miou outra vez. Mais alto.
— Tá bom, tá bom. Já entendi. Você quer seu petisco matinal.
Sentando-se na cama, Hadassa esfregou o rosto. E então viu a caixinha de música em cima da mesinha de cabeceira.
O coração dela falseou na batida seguinte.
Não foi um sonho.
Dimitri havia ido até o seu quarto, a segurara, tentara despertá-la dos sonhos horríveis que a devoravam.
Ela se lembrava de abrir os olhos bruscamente e ver o rosto dele, o castanho-esverdeado das íris, como uma luz que a guiava por entre os ramos da escuridão.
Esticou a mão, tocando a pequena bailarina.
Dimitri não tinha feito nenhuma pergunta; apenas tentara acalmá-la.
Gentil da parte dele. E até mesmo inesperado, devido a forma como haviam se tratado nos últimos dias. Mas gentil.
Contudo, a onda de vergonha veio logo em seguida.
Hadassa enterrou o rosto nas mãos, grunhindo baixo. Céus, ela tinha gritado durante o pesadelo. Deveria ter sido alto o bastante para fazer Dimitri correr até ali. Esperava mesmo que ele não contasse sobre o ocorrido para ninguém. A última coisa que desejava era olhares preocupados e palavras de conforto.
Ela se levantou, se enrolou no cobertor e espiou do lado de fora do corredor. Não viu ninguém, nem Dimitri, nem seu pai, nem os empregados, e se sentiu aliviada. Não queria conversar com ninguém até tomar um banho, trocar de roupa e esquecer o pesadelo e de qualquer outra crise.
Harrison Ford miou, se esfregando em suas pernas para mostrar que ainda estava ali.
Pegou o pacote de petiscos que deixava guardado em uma gaveta, agradou o gato gordo e faminto, se enfiou embaixo do chuveiro e só saiu quando estava se sentindo completamente renovada.
Enquanto trocava de roupa, optando por um conjunto leve, e colocava seu colar de coração inseparável, checou o celular. Havia várias mensagens de Cecília.
"Amiga"
"Amiga"
"Amiga, você já acordou?"
"Já ouviu falar da academia de ballet francesa Musique et Danse?"
É claro que Hadassa já tinha ouvido falar sobre a academia francesa. Todo mundo que se envolvia no mundo do ballet conhecia a história de um dos maiores estudos de dança clássica da Europa. Qualquer bailarina de renome sonhava com um lugar na Musique et Danse.
"Eles estão em turnê pelo Brasil"
"Hadassa, as apresentações são lindas!"
"E vai haver uma apresentação em Belo Horizonte"
"Vamos assistir juntas?"
"Por favor"
"Por favor"
"Vou te enviar um link para você ver uma das danças"
"Por favor"
"Meu pai só vai me deixar ir se você for comigo"
"Vai ser incrível"
"É a primeira vez que eles estão vindo para o Brasil em mais de vinte anos!"
Hadassa piscou, ainda atordoada com a enxurrada de mensagens que seus olhos registraram.
Abriu o link enviado por Cecília, ligeiramente curiosa.
A música clássica encheu seus ouvidos, e Hadassa assistiu a uma das apresentações mais lindas que já tinha visto em toda a sua vida.
Não eram só bailarinas na faixa dos vinte anos; havia algumas mulheres que pareciam ter quarenta anos. E dançavam como se flutuassem entre as nuvens e as estrelas.
Hadassa se pegou suspirando, admirando uma das bailarinas mais velhas. Era negra, alta e graciosa. Dançava com tanta paixão que Hadassa quase rodopiou pelo quarto, tentando imitar os movimentos. Com uma rápida pesquisa, descobriu que o nome dela era Chantel.
— Chantel...
Quando tivesse a mesma idade daquela bailarina, estaria executando seu trabalho com tanto amor e devoção?
Porque a vida era algo que poderia se desfazer tão rápido e...
De súbito, o ar faltou. Hadassa estremeceu e esfregou o peito. Fechou os olhos com força, desligando o vídeo e expulsando a sensação de que as paredes estavam se fechando ao seu redor.
Ela só deixou o quarto quando se sentiu bem outra vez.
Desceu as escadas, cumprimentou os funcionários que encontrou pelo caminho e, enquanto servia para si mesma uma xícara de café, se deparou com seu pai entrando na cozinha.
— Bom dia, pai.
— Bom dia. Que bom que já está em pé. Precisamos conversar.
O coração dela acelerou.
— Aconteceu alguma coisa?
— O pai da Cecília dará uma festa importante hoje à noite, e quero que você me acompanhe. Já avisei Dimitri também.
Uma corrente de alívio passou por ela. Dimitri não havia comentado nada sobre o pesadelo.
— Certo. — Hadassa estreitou os olhos, tentando ler por detrás do semblante criptografado do pai. — Mais alguma coisa?
— Você está quase concluindo sua graduação e tem pouca experiência. Já está na hora de começar a se inteirar dos negócios da família. É para isso que estudou sua vida toda. A partir de semana que vem, você irá ao escritório todos os dias comigo. Tenho que ensinar tudo o que sei.
Com tanta urgência assim, tão de repente?
Hadassa precisou morder a língua para não questionar o pai e fez de tudo para disfarçar a inquietude que sentiu.
— Estamos entendidos, Hadassa?
— Sim, pai.
— Esteja pronta para hoje à noite. Não se atrase — ele disse, virando-se para sair da cozinha. — Será um evento muito importante.
Hadassa assentiu. Assim que ficou sozinha, fitou a mesa posta para o café da manhã.
De repente, a fome tinha ido embora.
Deixando a xícara de lado, decidiu ir até o jardim para cumprimentar Amendoim, Biscoito, Cacau e Quindim. Seus bebês de quatro patas tinham um poder especial de fazê-la se sentir bem rapidamente.
— Meninos! — ela chamou por eles, assoviando. — Onde estão os meus meninos?
Hadassa atravessou o gramado, rindo, atraída pelos latidos.
— Por que meus meninos não vieram correndo quando eu chamei? O que vocês...
Ela parou diante da cena que se viu.
Agachado, Dimitri brincava com os quatro rottweilers, alternando os carinhos nas quatro cabeças que disputavam sua atenção.
Ele vestia as roupas sociais que o trabalho exigia, mas as mangas da camisa estavam dobradas até a altura do cotovelo, deixando a pele bronzeada à mostra e demarcando os bíceps embaixo do tecido branco.
O sol brilhava contra o orvalho cintilante da relva.
Atônita e surpresa, Hadassa deu um passo silencioso para frente; seus cachorros dificilmente socializavam tão bem com alguém que era de fora, mas Dimitri parecia tê-los cativado.
E o sorriso dele...
Era a primeira vez que Hadassa o via sorrindo.
E quase podia escutá-lo rindo baixo, um tilintar no vento, um estremecer na pele, que fez as pernas dela bambearem.
Amendoim se virou, farejando-a, e correu até ela.
No mesmo instante, Dimitri ergueu o rosto, seus olhares se entremeando por entre as primeiras cores da manhã.
Ele a olhou demoradamente, como se a assimilasse, a sorvesse, o verde se sobressaindo ao castanho dos olhos, a luz contornando seu rosto de traços marcantes, a palidez do sorriso ainda manchando seus lábios.
Hadassa prendeu o ar.
Como ele é lindo!
Quase como se estivesse se movendo em câmera lenta, Dimitri se levantou, os olhos acorrentando os olhos dela.
O vento soprou, balançando os cabelos soltos de Hadassa.
Incapaz de se mover, ela deixou que ele se aproximasse, cada passo dele roubando o ar ao seu redor conforme o sorriso se esvanecia.
— Bom dia, senhorita Hadassa.
A rouquidão da voz dele a atingiu como uma flecha no peito.
Por um momento, ela achou que não se lembraria mais de como deveria juntar as palavras e formar uma frase. Mas o fitou, erguendo o queixo, um raio de sol os atravessando.
— Bom dia. E não precisa ser tão formal. Só Hadassa já está ótimo. E... Hã... Obrigada outra vez... Pelo que você fez por mim essa noite. E por não ter comentado nada com ninguém.
Dimitri se limitou a um aceno de cabeça. O vento trazia o cheiro da colônia dele até ela. Hadassa engoliu em seco, recriminando-se por estar agindo como uma tola, e forçou um sorriso, apontando para os rottweilers.
— Vejo que meus meninos gostaram de você.
— São bons cachorros.
Para escapar da prisão do olhar dele, Hadassa se agachou, acariciando a cabeça de Cacau.
— Você tem algum animalzinho de estimação?
— Não. Não mais.
— Por quê?
Ele inspirou fundo, o peito subindo por debaixo da camisa social, as mãos descendo para o bolso da calça. Hadassa ergueu a cabeça. Por um momento, um lampejo fugaz, foi como se os olhos dele tivessem se aberto, e ela quase podia se reconhecer atrás daquele portão, visualizar o caos e o silêncio que tanto tentava esconder dentro de si mesma.
— Às vezes, basta um acontecimento para mostrar que a vida é...
— Efêmera? — A palavra escorregou como um suspiro por sua boca antes que ela pudesse segurá-la.
O silêncio se espalhou como um cortinado ao redor deles, isolando-os do jardim, do mundo.
As mãos de Dimitri deixaram os bolsos, pairando no ar.
Ainda agachada ao lado de Cacau, Hadassa sentiu os dedos formigarem, se levantarem lentamente, como se buscassem pelas mãos dele e...
Dimitri deu um passo para trás.
— Estarei por perto fazendo meu trabalho de vigilância, caso você precise de algo, senhorita Hadassa.
— Eu já disse que pode me chamar...
Mas Dimitri se virou, quebrando o contato visual entre eles.
"Apenas de Hadassa".
Abraçada a Cacau, ela franziu o cenho e observou Dimitri se afastar, a luz do sol batendo em suas costas largas.
Que segredos e mistérios você esconde, Dimitri Alencar?
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