Contraditório
Estou no supermercado com Ran, empurrando o carrinho enquanto percorremos os corredores em busca dos ingredientes para fazer pizza. Ran troca olhares comigo, olhares de julgamento e observação que me deixam inquieto.
— Qual é o problema? — pergunto, cansado da tensão silenciosa.
— Você está sendo muito frio e rude com o Angry. — ele responde, direto ao ponto enquanto escolhe as massas de tomate.
Reviro os olhos. Não é possível. Será que a praga do pior dia da minha vida ainda não acabou?
— Eu não gosto dele, Ran. Ele é insuportável e faz de tudo para me irritar. — respondo seco.
Ran sorri, com aquele sorriso provocador que ele sabe usar tão bem. Debochado do caralho.
— É meio contraditório você dizer que não gosta do Angry, considerando que você também gosta de homens.
— Sim, eu sou pansexual. — digo, irritado. — Gosto de homens, mulheres e pessoas não-binárias. Mas isso não tem nada a ver com o Angry. Ele é insuportável, independente do gênero.
Ran apenas ri, balançando a cabeça.
— Você está se contradizendo e nem percebe.
Solto um suspiro frustrado, ele só pode estar brincando com a minha cara.
— Olha, Ran, minha orientação sexual não tem nada a ver com isso. O Angry é insuportável porque ele simplesmente é. Não porque ele é homem.
— Então, por que ele te irrita tanto? — Ran pergunta, sua voz calma e curiosa.
— Porque ele sempre está por perto, me observando, tentando se aproximar. Ele não entende quando eu quero meu espaço. — explico, sentindo a raiva borbulhar. — E ele age como se me conhecer fosse um direito, não um privilégio.
Ran fica em silêncio por um momento, refletindo sobre o que eu disse.
— Talvez ele só queira entender você melhor. Nem todo mundo é bom em lidar com as barreiras que você levanta. Nem mesmo eu te entendo as vezes. — ele diz e pisca para mim.
Olho para Ran, meu irmão mais velho, e percebo que, por mais irritante que seja, ele tem razão em partes. Mas isso não muda o fato de que Angry me irrita.
— Talvez, mas isso não torna ele menos insuportável. — resmungo e arrumo o meu óculos no rosto.
Ran ri novamente, e sinto que a conversa não mudou muito a minha opinião. No entanto, ao observar a expressão dele, sei que ele não vai desistir tão facilmente. E enquanto eu empurro o carrinho pelo supermercado, percebo que essa questão está longe de ser resolvida.
Será que eu estou na terra pagando por algum castigo?!
Chego em casa com Ran após voltarmos do supermercado. Ajudo a carregar as compras para dentro, colocando as sacolas na bancada da cozinha. Ran começa a organizar os ingredientes, mas eu logo me dirijo para as escadas.
— Vou subir e tomar um banho. — digo, mais para informar do que para pedir permissão.
Ran acena com a cabeça, concentrado nas compras, e eu subo as escadas até o banheiro. Fecho a porta atrás de mim e ligo o chuveiro. O som da água caindo já começa a acalmar meus nervos. É tão reconfortante.
Entro no chuveiro e sinto meus músculos relaxarem imediatamente assim que a água quente toca minha pele. É como se todas as tensões do dia começassem a se dissolver. Deixo a água escorrer pelo meu corpo, fechando os olhos e me permitindo um momento de paz.
Enquanto me ensaboo, reflito sobre tudo o que aconteceu hoje. Foi um dia cheio e tenso, repleto de provocações e confrontos. Ran com suas perguntas e provocações sobre Angry, e a constante presença do Angry que parece sempre encontrar uma maneira de me irritar.
Tento afastar esses pensamentos, mas eles continuam voltando. A conversa com Ran no supermercado foi especialmente perturbadora. A insinuação de que eu possa estar agindo de forma contraditória, a implicação de que há algo mais nos meus sentimentos sobre Angry do que simples irritação.
Solto um suspiro longo e profundo, deixando a água levar embora o estresse acumulado. Tudo o que quero agora é esquecer isso, pelo menos por um momento. Deixar de lado as complicações e simplesmente aproveitar o conforto do banho quente.
Saio do chuveiro me sentindo um pouco mais leve, mesmo que os pensamentos persistam no fundo da minha mente.
Pego a toalha, e começo a secar meu corpo com movimentos automáticos. Em seguida, seco o cabelo, fazendo os fios loiros com mechas azuis se bagunçarem. Enrolo a toalha ao redor da cintura e encaro meu reflexo no espelho. Está um pouco embaçado pela umidade, e sem meus óculos, não consigo enxergar com clareza.
Passo a mão no espelho tirando a umidade do vidro e pego meu óculos que está ali encima da pia e lavo as lentes cuidadosamente, usando a toalha para secá-las antes de colocar ele novamente no rosto.
E quando coloco o óculos, o mundo se torna mais nítido, e vejo meu reflexo com mais clareza no espelho.
Meu abdômen e peitoral definido são destacados pela luz suave do banheiro. As tatuagens se destacam na minha pele, cada linha e curva contando uma parte da minha história.
Do lado direito do meu corpo, a tatuagem tribal de aranha se estende do braço até o ombro, descendo pelo final do abdômen. As linhas intricadas e os detalhes minuciosos capturam a essência de força e complexidade que sempre gostei.
Me viro levemente para ver melhor a outra tatuagem nas costas. A serpente tribal, também no lado direito, se enrola pela minha pele com uma elegância feroz. Cada escala e contorno cuidadosamente desenhados, simbolizando transformação e renascimento.
Fico ali, contemplando as imagens que decidi marcar permanentemente em meu corpo. Elas não são apenas arte, são uma parte de mim, uma extensão da minha identidade e minhas experiências. Respirando fundo, percebo que, por mais que eu possa ser difícil de decifrar, essas tatuagens são pistas visíveis das camadas que compõem quem eu sou.
Cada traço, cada sombra, é uma lembrança de que, independentemente das barreiras que eu possa erguer, há sempre algo mais profundo esperando para ser descoberto.
Respiro fundo. Talvez Ran e até mesmo Angry estejam certos. Talvez eu realmente seja uma pessoa difícil de decifrar e entender. As camadas de defesa, a frieza calculada — tudo faz parte de um escudo que construí ao longo dos anos.
A imagem no espelho me devolve um olhar pensativo, questionador.
Decido que, se alguém quiser me entender, terá que cavar fundo, assim como eu talvez precise cavar fundo para entender outras pessoas. Afinal, ninguém é simples, nem mesmo eu.
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