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Pequena lembrança

— Nosso casamento funciona desse jeito — Rodrigo murmurou antes de voltar a beija-la.

As palavras tiveram o impacto de um soco em sua cabeça, bem no local que a cicatriz, causada pelo acidente, se escondia entre os fios acobreados. Forte, potente, desequilibrante, empurrando-a para um lugar desconhecido, um filme antigo e exclusivo para ela.

~*~

Sentada na cama de casal, digitava freneticamente, uma mensagem atrás da outras, todas sem resposta, nem um sinal de serem visualizadas.

Limpou o rastro das lágrimas com uma mão, após uma gota quente e pesada cair na tela do aparelho telefônico. Secou os dedos na lateral da camisola preta e curta, retornando aflita para a busca de respostas.

Deu um sobressalto quando o celular tocou indicando uma ligação. Com os olhos mergulhados em piscinas de amargura, não conseguia identificar a pessoa. Também teve dificuldade em atender, culpa dos dedos ainda úmidos e a angústia, oprimindo seu coração e deixando suas mãos trêmulas.

Enfim, depois de angustiantes segundos se atrapalhando, conseguiu aceitar a ligação.

— Rodrigo?

— Sarinha, jura que imaginou que fosse ele? — A risada do outro lado da linha causou um espasmo na mão de Sara. Seus dedos se apertando em volta do aparelho contra sua orelha, desejando que fosse o pescoço daquela mulher. — Nós duas sabemos que ele está nos braços da amante e nem lembra que você existe.

— Isso é mentira — gritou esganiçada, sentindo a garganta travada por causa do choro antes da ligação, e do bolor causado por - mesmo negando - concordar com o que ela dizia.

— Mentira? Por favor, Sarinha, não tem provas o suficiente? Olhe que horas são, e ele não está ao seu lado. Está com ela, como sempre esteve e estará — a mulher destilou venenosa. Riu ainda mais alto ao finalizar: — Acostumou-se tanto com mentiras que é incapaz de enxergar e encarar a verdade. É assim que seu casamento funciona, querida Sarinha, com mentiras.

Logo depois a ligação foi encerrada com um baque e uma dor intensa tomou conta de Sara, mais lágrimas quentes e velozes descendo por sua face pálida.

~*~

As sensações da lembrança foram tão fortes que Sara empurrou Rodrigo, lançando-o para o chão, e moveu-se em busca de suas roupas, recolhendo e vestindo as peças em desespero. Uma dor aguda cortava peito, os olhos ardiam e o ar parecia insuficiente para encher seus pulmões. A inquietação causada pela memória a dominava, deixava suas mãos trêmulas e fazia crescer a urgência em se afastar, sumir, se esconder, qualquer coisa que a fizesse Rodrigo ficar bem longe dela.

— Sara...

Confuso com a inesperada reação da esposa, Rodrigo, refeito do tombo, a tocou no braço, sendo repelido com um tapa na mão.

— Não me toque! — gritou afastando-se. Como ainda estava agachada, procurando seu cropped, caiu de bunda ao fazê-lo, as costas batendo no sofá.

— Está bem? Se machucou? — Preocupou-se Rodrigo ao ouvi-la resmungar de dor. — Eu te machuquei? — questionou após tentar uma nova aproximação, o que fez Sara encolheu-se contra o sofá, os olhos arregalados, mãos em volta das pernas e a respiração apressada. Era evidente que estava apavorada e, de alguma forma, ele era o responsável.

— Você tem uma amante — Sara declarou com uma mescla de mágoa e fúria, as sensações que se infiltraram em suas veias com a pequena lembrança.

— O quê? — Rodrigo encarou Sara com o cenho franzido, confuso com a inesperada acusação.

— Lembrei que você mantém uma amante em algum lugar, que passava, passa, todo seu tempo com ela, enquanto fico sozinha nessa casa, nessa prisão.

— Sara, jamais te trai — retrucou e se inclinou na direção dela, que se espremeu ainda mais para evitá-lo.

Frustrado, Rodrigo sentou-se e desistiu de chegar mais perto da esposa do que seria necessário para conversarem. Embora isso lhe custasse muito, pois sentia o corpo ardendo de desejo pelo que quase conseguiu instantes atrás, e os seios desnudos subindo e descendo não ajudavam.

Relanceou o olhar ao redor e, encontrando o cropped dela, o pegou e estendeu para que vestisse.

Sara o pegou com um movimento rápido, vestindo-o com a mesma urgência. Um escudo contra Rodrigo, contra o que ele a fez sentir com seus beijos, contra o que a fez sentir na lembrança e agora, quando ambas as sensações, tão vívidas em sua pele e alma, desnorteavam sua mente.

— Seja lá que lembrança teve, não fiz isso — garantiu.

Ela queria confiar na palavra dele, e assim acabar com aquele aperto em seu peito. No entanto, havia as vozes em sua mente, a dor de uma Sara esquecida, que acreditara e ainda acreditava na infidelidade do marido.

— Uma mulher me disse que você estava com outra — revelou, esperando que isso o fizesse confessar, mas Rodrigo permaneceu inabalável.

— Que mulher?

— Como vou saber? — falou erguendo a voz, exasperada com a falta de admissão dele. Ela sentia que era verdade. — Foi uma mulher no telefone que me contou. Não sei quem era... não lembro... — Apertou a mão na cicatriz, esfregando-a ali com força. — Está aqui, em algum lugar do meu cérebro, gravado a ferro: Você me deixava sozinha para ficar com outra.

— Percebe o quanto isso é absurdo?

— Ah, sei! — Sara o encarou desconfiada, peças do quebra-cabeça de seu passado se encaixando com aquela "revelação". — Isso explica porque passava o meu dia te telefonando o tempo todo.

— Você fazia isso por ser desconfiada, mas nunca dei motivos — defendeu-se.

— Não sou do tipo que tira conclusões sem um bom motivo — retrucou nervosa.

— No meu caso tirou — ele replicou insistindo em sua inocência.

A certeza da traição se enraizava na mente de Sara e tornava seus ouvidos descrentes para as negativas.

— É mentira, ou coisa da minha cabeça, que você chegava tarde em casa? Que passava do horário do trabalho? — interrogou fechando as mãos, as unhas se cravando em sua palma numa tentativa de superar a dor revivida do abandono.

Rodrigo esfregou os dedos pelos fios escuros, enchendo os pulmões de ar antes de assentir pesadamente.

— Confesso que me distraia com o trabalho e chegava tarde às vezes.

Sara levantou-se de supetão.

Em desespero, Rodrigo segurou suas mãos, evitando que se afastasse.

— Me atrasava por causa do trabalho, não por outra mulher.

— Que seja! — Com um puxão soltou-se dele e seguiu para o corredor. — Vou dormir.

Rodrigo a seguiu.

— É sério, Sara, não existia e nem existe outra na minha vida — repetiu insistente.

Sara o ignorou e seguiu para o quarto de casal. Na segurança e solidão do dormitório - a mesma sentida na lembrança -, se permitiu desmoronar, jogando-se na cama e deixando a desolação tomar forma em um pranto repleto de dor, do passado e de agora.

Em um minuto estava no paraíso e de repente foi jogada com força de volta a uma realidade horrível. O fracasso de seu relacionamento oprimia sua alma, causando dores em seu corpo e enchendo-a de uma agonia opressora.

Ouviu passos ecoarem pelo corredor e logo depois o som de uma porta sendo fechada com brusquidão.

Afundou a cabeça no travesseiro, usando-o para abafar o choro. Chorava pelo tempo que não se recordava, pela sensação que a lembrança despertou e por perceber que, seja o que fizera no passado, nunca se sentiu, e nem foi, amada de verdade pelo marido.

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