XII.
Sou um poço de desânimo. Procurando forças para me levantar da cama e tomar banho. Após passar quatro dias na enfermaria tinha me acostumado com as mordomias, incluindo não fazer a cama e ganhar minhas cinco refeições diárias sem que ter que fazer qualquer esforço para isso. Esfrego o rosto preguiçosa e acabo me levantando. Pego a toalha limpa sobre a minha mesinha de cabeceira e caminho até o banheiro. Haviam outras duas garotas lá que não se importaram com meus intermináveis bocejos. Tomo um banho rápido na água morna e corro para me vestir. Jeans de sempre e uma camisa de manga com o símbolo dos Lakers, tinha algumas manchas cinzas nela, mas não me importava. Meu uniforme estava na lavanderia, não me importava em ter que usar minhas próprias roupas por alguns dias. O traje nem mesmo era obrigatório, mas a maioria usava mesmo assim.
Um trovão rasgou o céu anunciando a tempestade que se aproximava, viro a lata de lixo de cabeça para baixo e subo na parte consistente, fico na ponta dos pés e consigo enxergar pela pequena janela o clima lá fora. Se não tivesse acabado de acordar diria que a noite estava se aproximando. Outro trovão alto me faz saltar dali e resmungar pela fisgada no joelho. Meu corpo ainda estava bastante dolorido da queda e Dorothy havia diminuído meus remédios, o que era um grande saco.
Seco o cabelo com a toalha enquanto volto para a o quarto. Troco alguns olhares tortos com a magrela de cabeça de fogo e deixo o quarto sem pronunciar uma palavra sequer. Fiz o caminho vagaroso até o refeitório, estava cheio. Os internos conversavam entre si nas mesas, gargalhadas eram ouvidas, eles pareciam ironicamente felizes naquele dia. Talvez fosse o anuncio de chuva, isso normalmente queria dizer que ninguém teria de realizar os trabalhos manuais e ficaríamos todos ali dentro do casarão. Diferente deles eu não conseguia ficar tão feliz com isso, permanecer ali dentro me traziam memórias e sensações que travavam uma batalha com meu cérebro para que não fossem esquecidas.
Meu amigo de cabelo enferrujado passou rapidamente pela minha mesa experimentou a mistura de leite com cereal na minha tigela, me contou algumas fofocas e se afastou depois de perguntar duas vezes seguidas se eu estava bem. Desde o encontro com o zelador ele não tocava no assunto dos mistérios de Chermont, eu não o culpava por isso, sabia que havia se assustado, eu também estava, mas era diferente.
Dona Catalina, nossa adorada - ou quase isso - diretora surgiu no refeitório avisando que não havia nenhuma atividade naquela manhã pela tempestade que se aproximava, pediu que esperássemos até o almoço para decretar se seria um dia de folga ou não, em seus palavras tudo dependia da fúria da mãe natureza. Surrupiei um cacho de uvas da cozinha e voltei ao quarto, tendo uma péssima sensação ao subir as escadas. Olho para os lados e subo rapidamente os degraus forçando minha mente a dar atenção a dor dos meus músculos. Sarah saía do quarto quando entrei, ela estava diferente. Seu cabelo estava loiro, praticamente oxigenado.
-Cabelo legal! - falei ao passar por ela.
-Não precisa ser gentil, ficou uma droga! - reclamou. Apenas ri e me joguei sobre a cama ouvindo o ranger da sua estrutura. Qualquer dia acabaria indo com a cara de encontro ao chão bolorento. Por que diabos tudo tinha que ser tão velho naquele casarão?
Pouco tempo deitada na cama acabei me pegando entediada, os trovões estavam mais altos e já começava a chuviscar, podia ver os pingos batendo contra o vidro da janela guilhotina do quarto. Deixei o galho sem as uvas sobre a mesinha de cabeceira e deitei de lado olhando para fora. Não queria circular por aí e fingir interação com os outros internos, na verdade queria dormir, mas não sentia sono. Volto a repetir, um poço de desânimo, nem mesmo me tocar e conseguir alguns orgasmos parecia atrativo no momento.
Me sentei na beirada da cama trocando olhares com a gaveta da mesinha. Tinha me convencido de que não faria mais isso, no entanto o diário de Heloise veio as minhas mãos mais rápido do que pude imaginar. Não adiantava lutar contra aquilo, pelo menos não hoje. Abri a caderneta em uma página aleatória como de costume, ajeitei o travesseiro molenga atrás das costas e passei o olhar pela letra da finada.
Três de Novembro de 1864!
Querido diário, hoje teria sido mais um dia ordinário, bordando com mamãe e ouvindo papai se gabar de sua última grande caçada na fazenda de nossos primos distantes, no entanto invés de começar sua ladainha sobre armas e os pobres animais que conseguira matar convocou uma reunião de família na sala. Minhas primas de idade inferior e seus pais nos acompanharam, eles estão passando alguns dias conosco, ao menos era o que haviam informado papai, mas acredite já se passaram dois meses. Todo aquele alvoroço de papai era para anunciar os novos empregados da casa. Os antigos estavam velhos demais e já não acompanhavam o ritmo de mamãe que exigia os talheres polidos todos os dias.
Não dava atenção ao que acontecia na sala, minha prima tentando arrancar a cabeça da boneca de pano parecia mais atrativo. Até que um rapaz, misturado as duas novas empregadas surgiu. Conquistou minha atenção no mesmo instante, ele era lindo e sua pele suada brilhava mesmo sem qualquer feixe de sol naquela sala. Ele sorriu ao perceber que eu o encarava, minhas bochechas coraram e fui obrigada e abaixar o olhar apertando as mãos contra a seda do vestido. Como pode uma obra divina aparecer a minha frente de repente. Não me atrevi a olha-lo novamente, não queria que meus pais percebessem, seria fatal e o mandariam fora no mesmo instante.
Mais tarde neste dia me atrevi a caminhar pelo jardim, apenas a luz do luar iluminando meu caminho. Acredito que as estrelas me guiaram até onde ele estava, o barulho da água caindo indicou que se lavava na casa de banho externa. Pensei em me virar e ir embora, não, me aproximei e escondi-me atrás dos arbustos assistindo a água cair sobre o corpo do rapaz, sua imagem era quase imaculada. Logo ele saiu, fui pega de surpresa pela sua figura desnuda, mas não tive coragem de me afastar. Fiquei deslumbrada com sua masculinidade, meus dedos coçaram, queria toca-lo. Quando começou a se vestir decidi que era hora de ir embora, antes de fosse pega. Os arbustos enrolam em meu pé e eu acabo tropeçando, ao me ver caída a chão ele me estende a mão, mesmo com o coração disparado e a vergonha me consumindo aceito seu gesto, afinal não poderia ficar jogada ali. "Sou Justin!" ele disse ainda segurando meus dedos, me apresentei sorridente demais para a situação. Gostei muito de sua presença, o cheiro de madeira fresca que exalava de sua pele, o íris dourado e os lábios carnudos. Me comportei como uma boa moça que sou no caminho até a porta, ele foi gentil e beijou minha mão desejando boa noite.
Ainda sinto a pele de minha mão formigando, queria poder sentir seu beijo, seus lábios pareciam deliciosos. Seus ombros largos me faziam sentir coisas estranhas, proibidas, vê-lo se lavar atiçou algo embaixo de minhas vestes, tal não para de incomodar até agora. Não sei se conseguirei dormir essa noite, estou ansiosa para vê-lo amanhã.
[...]
Logo após o almoço Catalina voltou a discursar avisando que estávamos livre de atividades no dia, a chuva caia incessante lá fora. Apesar da estrutura paleolítica do instituto estava tudo bem internamente, não havia qualquer preocupação com goteiras ou destelhamento pelo vento forte que fazia barulho ao bater contra as janelas. Ainda carregava meu copo de suco do almoço quando nos deram a opção de assistir filme para passar o tempo, a outra opção era ficar no quarto, e isso não queria, acabaria lendo mais sobre Heloise e inevitavelmente pensando nele.
Me sentei no fundo próxima a galera que reclamava quando avisaram que o filme seria Quero Ser Grande, Tom Hanks que me perdoe, mas este filme já não tem a mesma graça a pelo menos uma década. A freira Martha desligou as luzes e se misturou com os internos para assistir.
-Hey! - tomo um susto com a aparição repentina de Tim, ele sorri e se senta ao meu lado forçando uma garota a se afastar de nós. - Desculpe, não tinha intenção de te assustar.
-Tudo bem, eu que estava aérea. - afirmei o olhando de relance seguido de um sorriso não muito animado.
-Você esta bem? Não te vi ontem, pensei que estivesse mau. - perguntou. Sua mão trilhou meu braço até encontrar meus dedos e os entrelaçarem. - Na verdade já estava imaginando que estava me evitando. - seu tom de voz mudou, parecia envergonhado pelo que dizia agora, cedi o olhar a ele e fechei a mão segurando firme a sua.
Não me lembro de todos os detalhes da noite em que fugimos para a fogueira, mas sei que nos beijamos, mais de uma vez, muitas vezes. Se não fosse a quantidade de pessoas conosco aposto que tinha passado de beijos. Arrependida não é exatamente a palavra que me definiria, talvez culpada fosse a certa. Tinha o usado para me distrair, e havia notado que ele nutria sentimentos por mim, nada recíprocos na verdade. Ele era um cara legal, mas a minha cabeça era uma bomba relógio, não queria arrasta-lo para dentro disso, por puro capricho.
-Estou ótima, só sinto um pouco de dor ainda, mas não se preocupe - respondi ignorando o que havia dito. Puxei seu braço o colocando sobre meu ombro e apoiei a cabeça em seu ombro. - Esse filme é chato. - falei mudando de assunto.
-Não é tão ruim, se fosse outro Esqueceram De Mim, ai sim eu concordaria com você. - me apertou em seus braços e eu ri, recebendo um olhar atravessado do menino a nossa frente, ele sim parecia animado com o filme. - Podemos ir para outro lugar, acho que não tem ninguém na biblioteca. - ergui o olhar o encarando.
-Não Tim, vamos ficar aqui, pelo menos eu vou. - fez uma careta esticando os lábios.
-Mas aqui eu não vou poder te beijar. - sua respiração bateu contra meu rosto, me tentando. - E eu quero tanto lhe beijar Sabi.
-É melhor que não beije, pode pegar mal pra você. - ri fraco - Imagine a tragédia que seria se Leslie nos vê juntos, ela me mata de uma vez por todas. - também me lembrava de ter contado a ela sobre a paixonite da vaca ruiva.
-Não me importo com o que a Leslie vai pensar, não é nela que estou interessado. - tinha algo na voz do rapaz que me fazia acreditar no que dizia, era suave e rouca, me distraía ao dedilhar a linha do meu jeans. - Ou será que é você que não quer me beijar? - seus lábios roçaram contra a maçã do meu rosto me causando cócegas.
-O que eu não quero é arranjar encrenca, se comporte. - era verdade, pelo menos vinte por cento, ele era sorrateiro e eu começava a adorar isso, mas do que deveria.
-Okay, vou aceitar essa resposta, pelo menos por enquanto.
Pressionou os lábios contra os meus sem aviso, por alguns instantes sugando levemente meu lábio. Ao mesmo tempo uma brisa gélida arranhou minha nuca forçando meus músculos a se contraírem em desconforto. Forcei um sorriso quando o moreno se afastou, entortei o rosto olhando para trás sem saber pelo que procurar. Então lá estava ele, próximo a porta nos encarando, o maxilar travado e os olhos fundos expressavam algo que nunca tinha visto antes, pelo menos não vindo dele.
O filme continuou assim como Tim e seus carinhos em minha perna, não era nada demais, ele era um bom rapaz. Me levantei avisando que iria ao banheiro e deixei a sala caminhando até o banheiro. Volto a ouvir os trovões, o céu parecia estar se desfazendo lá fora. Lavei as mãos e molhei o pescoço me deixando mais alerta.
-Estas feliz em machucar-me desta forma. - dou um pulo ao ver o reflexo de Justin no espelho. - Como ousas, depois de abrir meu coração e tê-la como minha.
-E daí...você mentiu para mim sobre Heloise e todos os outros. É um monstro. - estava me contendo a tempo demais, já era hora de me permitir falar o que estava engasgado em minha garganta. - Agora que esta bravo, talvez meu fim seja como o dela, assassinada dentro desta maldita casa. Morrer não seria tão ruim assim, mas ter que viver todos os das da minha eternidade olhando para a face do meu assassino, isto sim deve ser um verdadeiro inferno. - ele estava paralisado, boquiaberto me encarando.
-Você viu Heloise? - pergunta. - Não pode acreditar nela...não entende...é ela! - ele clamou tentando se aproximar, levantei os braços impedindo sua aproximação. - Por favor Milady, tens que acreditar em mim.
-Não me chame de Milady! - rangi os dente fechando as mãos em punho.
-Por Deus! O que há de errado com você. - rebateu levando as mãos a cabeça. - Que há de tão difícil em acreditar em minhas palavras, nunca menti.
-Mas omitiu. - respirei fundo fechando os olhos - Se bem que foi loucura da minha parte acreditar em qualquer palavra vinda da boca de defunto.
-Assim me ofende!
-Estou mentindo? Acho que não. Você só um é um fantasma pervertido que se mete com garotas inocentes para conseguir o que quer, aliás neste quesito consegue agir muito bem como os vivos.
-Inocente? - sua voz debochada me irritou. - Não há nada de inocente em você Sabine, na verdade quando olho em seus olhos posso ver o poço de escuridão de esconde entre os íris castanhos. Talvez seja por isso que seja tão atraído por ti, és como ela, erradia luz, mas por dentro é nada mais que escuridão.
Não esperava por aquilo. Pela verdade cuspida em minha cara de forma tão vil. Encostei-me no granito abalada, as palavras fugiram de minha boca por alguns momentos, queria bater nele, mas estava machucada.
-Me desculpe, não foi isso que quis dizer. - encostou ao meu lado nos segundos de silêncio que perdurou.
-Tanta faz, não me importa o que pensa. - murmurei engolindo em seco. - Só me deixa em paz, suma da minha vista de uma vez por todas Justin. Já chega.
-Não posso...sinto como se estivesse preso a você. - respondeu e pude sentir algo massacrar meu peito.
-Procure outra pobre coitada para perturbar, me deixe em paz. - resmunguei esfregando o rosto, as lágrimas ardiam em meus olhos.
-Será que não vê que estou aqui por você, para você. - tocou meu ombro.
-Até se irritar com algo e me matar.
-Jamais faria.
-Então não matou Heloise? - indago procurando a visão do seu rosto pálido.
-É complicado, mas acredite, nenhuma daquelas garotas foi morta por minhas mãos. Juro.
-Recuso suas falsas verdades. Peço pela última vez, vá embora. - desvio o olhar fitando o chão.
Um raio ilumina o banheiro e no mesmo instante as luzes se apagam, por instinto agarro a mão de Justin e fico quieta. Outro raio estende sua luz pelo comodo e um grito agudo e distante é ouvido.
-Minha nossa! - berro assustada.
-Se acalme, não foi nada. - me dou conta então que estava abraçada a ele. Tomo distância rapidamente e corro para fora dali, ainda sentia sua presença próximo a mim, como se me escoltasse pelos corredores escuros. Apresso os passos seguindo o burburinho crescente, na sala em que estava anteriormente. Três lanternas emergência iluminavam o circulo que havia se formado envolta do canto da parede. Curiosa, salto sobre uma cadeira conseguindo ver o que chamava a atenção de todos.
Era uma garota, abraçada aos joelhos encostada na parede, seus braças estavam severamente arranhados e pingavam sangue. Seus cabelos arrepiados impediam que pudesse ver seu rosto, mas podia ver sua boca se movendo e uma cantiga débil sendo recitada.
"Todas as crianças estão mortas, estão mortas. Papai me esqueceu, sou uma menina má e a morte vira me buscar. Sou uma menina má e a morte vira me buscar..."
Martha correu abrindo caminho para acudir a menina, mas ela nem mesmo parecia estar naquela sala. Chamou por seu nome e sacudiu seus braços, mas ela não respondia, continuava a cantar aquela canção esquisita. Do outro lado Catalina surgiu trazendo mais lanternas, pude jurar que palavras em latim saíram de sua boca.
-Vê agora que nada tive a ver com isto. - Justin profere me chamando atenção, estava tão atordoada que gritei brava.
-Me deixe em paz!
Os olhos curiosos que antes fitavam a menina perturbada ao pé da parede agora estavam sobre mim. Como se fosse uma nova atração do circo, os olhos deles me acusaram de louca.
Notas Finais:
Olá minhas queridas (os), gostaria de pedir desculpa pelo atraso, infelizmente até o fim da história vou acabar tendo esses furos de postagem, faço faculdade e por isso não consigo estar sempre disposta para escrever, é aquela história quando eu não tô comendo eu to dormindo. Enfim, isso não é motivo nem nunca vai ser para que eu pare de escrever, por isso fiquem tranquilas, independente da minha lentidão para postar, mais cedo ou mais tarde o capítulo estará aqui.
Ao que concerne a história, estão gostando? Algum palpite para o desfecho desta história?
XOXO
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