Epílogo
O tempo é de fato o senhor das dores, só ele é capaz de medir quanto um sofrimento pode perdurar e o momento exato em que a angústia perde a intensidade. Como quando você prende o dedo na porta, dói imediatamente, dói por um bom tempo e de repente não dói mais como antes. Simples assim. Ás vezes dura minutos, horas, dias ou anos. Tudo é sobre o senhor Tempo.
Tempo esse que me deixa desacordada por horas madrugada a dentro, nunca fui uma sonhadora típica, mas desde o incidente simplesmente me tornei incapaz de sonhar. Tive pesadelos nos primeiros anos, intensos e tão reais que muitas vezes acreditei estar de volta ao casarão.
As vezes ouvia a voz de Heloise chamando por meu nome, o olhos de George me encaravam vez ou outra no escuro. Até mesmo Leslie me fazia visitas aterrorizantes. Senti na pele o trauma causado pelo ano no reformatório. Passei por psicólogos, tratamentos e longas sessões. Ninguém acreditava no meu contato com os mortos, até que decidi embarcar nas suas suposições: eu estava alucinando, criando cenários pois ficar em um local estranho sem meus pais era uma realidade que eu não compreendia.
Com meia dúzia de remédios controlados prescritos e visitas mensais a um terapeuta fui liberada ao mundo real. E por muito tempo foi estranho e solitário. Até finalmente me encontrar, o tempo fez seu trabalho cicatrizando minhas feridas.
O toque quente e macio em minha pele arrasta-me da silenciosa e completa escuridão para o quarto de paredes beges e iluminação leve. Pisco algumas vezes acostumando-me com a claridade. O par de olhos cor de mel me fitam curiosos, acabo sorrindo ao sentir as mãos pequenas me amassarem as bochechas.
—Bom dia mamãe. — sibilou a vozinha.
— Bom dia, querida.
Puxei o corpo pequeno para mim e a abracei por cima das cobertas. A menina de quatro anos se fez em gargalhadas ao ser enchida de beijos, não havia som mais gostoso no mundo. Beijo sua testa sentindo o cheirinho de criança que exalava de si, uma das pontas que mantinha meu círculo de paz.
— O tio Tim veio tomar café, quer falar com você.
— Tim? — pergunto enrugando a testa. Ela acena brincando com meus cabelos. — Okay, a mamãe vai lavar o rosto e já vai para a mesa, pode avisá-lo? — ela acenou pulando da cama. — Onde está o papai? — pergunto me dando conta do espaço vazio na cama.
— Cuidando do Juju.
Disse e sumiu pela porta saltitando. Faço como dito e me levanto indo lavar o rosto e fazer higiene matinal. Sempre estou uma bagunça pela manhã, pareço ter caído de um caminhão de zumbis, não importa o quanto durma acabei adquirindo enormes bolsas de olheiras embaixo dos olhos. Lavo com água gelada e passo um creme que amenizaria o inchaço. Prendo os fios longos e lisos em um rabo de cavalo, me livro da camisola colocando um vestido que vai até o joelho.
Moro em um apartamento pequeno, mas o suficiente para a minha família. Marido e dois filhos. Nem eu acreditava as vezes neste feito. Encontro Elliot na mesa de redonda de café da manhã alimentando nosso caçula, ele até podia negar, mas sabíamos que ele estava radiante por ter um menino em casa, por três anos ele foi minoria.
Dou bom dia a ele com um beijo casto nos lábios, abraço o pequeno de um ano que não parece ligar muito para a presença quando o pai estava por perto. Ajudo Georgia se sentar na cadeira alta ao lado do pai que a serve também. Seu xodó era Justin, mas ele sempre seria o cavaleiro de armadura brilhante da menina. Não foi atoa que me apaixonei pelo seu jeito de ser. Elliot era um bom homem, paciente e muito amoroso. De longe alguém que eu agradecia aos céus por ter por perto.
— O que te trás aqui tão cedo? — pergunto ao encarar Tim sentado a mesa com um copo de café em mãos.
— Tenho um recado para lhe passar.
Timothy quase sempre estava na minha casa, tornou-se melhor amigo de Elliot e meu, e era padrinho de Georgia, praticamente de casa, só estranhei sua aparição por ter estado ali na noite anterior , jogando e perdendo no poker.
— Se for de algum agiota, nem pense nisso.
— Que falta de fé em mim Sabi. — reclamou tomando outro gole. — Só vim pois era de fato urgente. — me sento ao lado da pequena enchendo sua caneca de lente e fechando a tampa com bico. — Recebi uma ligação de Chermont, Catalina quer falar com você.
O nome causa uma sensação estranha em meu peito. Não que fosse proibido ou evitasse falar sobre, mas os arrepios eram inevitáveis. Engulo em seco me assegurando de que Georgia tinha tudo que precisava em seu prato, ignorando meus dedos trêmulos. Elliot me toca a mão esboçando um sorriso preocupado.
— Talvez seja melhor vocês conversarem na sala. — ditou calmo.— Se você quiser falar sobre isso, se não Tim pode se concentrar em tomar mais café a falar menos.
— Obrigada. — suspiro abalada com o carinho e cuidado que sempre demonstrava quando o tópico Chermont surgia. — Está tudo bem. — fito meu amigo. — Vamos para a sala. E você mocinha, coma tudo, nada de jogar as frutas fora. — adverti apertando a bochecha da pequena que sorria sapeca.
Nos sentamos na saleta mediana, cheia de brinquedos espalhados no chão e um sofá abarrotado de roupas para dobrar. Deveria ter feito isso ontem, mas ganhar de lavada no jogo havia sido muito mais proveitoso.
Cruzo a pernas e agarro uma almofada quadrada sobre o colo. O dono de olhos verdes bonitos e feição madura me encarou.
— Catalina esta com o pé na cova, pelo menos foi o que deu a entender. — esfregou as mãos a frente do corpo. — Pediu que fizesse uma viagem pois tinha algo para te entregar.
— Acho que não deixei nada naquele lugar que eu queira de volta.
— Pensei a mesma coisa, mas ela disse que era importante que fosse.
— Faz dez anos Tim, e ela nunca mesmo demonstrou ter interesse em saber se eu ainda estava viva, o que pode querer comigo?
—Eu não sei. — deu de ombros. — Mas acho que deveria ir, o jeito que ela falou. — umedeceu os lábio finos e sem cor. — Acho que ela sabe o que aconteceu.
— O que torna tudo ainda mais suspeito. — coçou a testa. — Não sei se consigo pisar naquele lugar outra vez.
— Não vou te pressionar, mas pensa sobre isso, ela não insistiria se não fosse importante.
— Aposto que esta curioso para saber do que se trata né.
— Obviamente, preciso de algo novo para discutir com meu terapeuta. Depois que se casou perdeu a graça comentar sobre a zonefriend em que pôs. — rolei os olhos ignorando mais uma vez suas gracinhas.
— Deixa meu marido te ouvir.
— Ele sabe que eu nunca tive chance nenhuma, sendo o concorrente vivo ou morto.
— Você é tão irritante. — relaxo o corpo no sofá fitando a lâmpada no teto de madeira. — São seis horas de viagem de trem até lá, se aquela velha só quiser me processar por ter colocado fogo no casarão?
— Só vai saber se for.
»»»»»»
Vislumbro o casarão de dentro do carro. Meus dedos estão na maçaneta, mas não consigo abrir em um primeiro momento. Todas aquelas emoções me rodeiam repentinamente, sinto o barro embaixo das minhas unhas, a roupa molhada, o cheiro de mofo. Por um momento volto doze anos no tempo e sinto uma angústia no peito.
— Se quiser nó voltamos. — ouço meu marido. — Não precisa entrar se isso te fizer mal.
O encaro, genuinamente tocada com o apoio que me dá, a mão calejada alcança a minha em um toque sutil. Olho para o banco traseiro vendo as crianças dormindo.
— Eu não posso fugir dos meus demônios para sempre, vou ficar bem. — garanti a ele. — Sem contar que não sou mais aquela garota amedrontada. Esse lugar não pode mais me machucar, não há nada nele.
— Certo, estou orgulhoso de você. — diz beijando a costas da minha mão. — Vai na frente, toma seu tempo, logo entro com as crianças.
Aceno positivamente retirando o cinto e deixando o veículo. As crianças dormiam calmas no banco de trás, a viagem de trem havia sido exaustiva para elas, reclamaram boa parte e haviam pegado no sono apenas no carro alugado. Ela mereciam um pouco mais de descanso, e eu tinha assuntos a resolver.
A mansão tornou-se uma pintura parte queimada e outra parte decrépita. Nenhum outro adjetivo poderia descrever o lugar se não fosse: horrendo. Cheirava a cinzas e produtos de limpeza, um pouco de poeira e só. Paro a frente da porta, recordando da primeira vez em que estive ali, uma coitada, entre meus pais que mal conseguiam olhar nos meus olhos. Nossa relação ainda é morna, mas ao menos não tentaram mais me internar em lugar algum, embora em alguns momentos dos últimos anos eu concordasse que precisava.
Ergo a mão pronta para bater na madeira degastada, mas porta fora aberta antes como se já me esperassem.
— Olá, meu nome é Sabine, vim ver a senhora Catalina.
O rapaz talvez alguns anos mais velho eu, vestindo um moletom esportivo acenou positivamente, mas não sorriu como eu esperava que fizesse.
— Eu sei, ela esta lá encima no seu leito. — comentou calmo e abriu passagem. — Fique a vontade, é o segundo quarto a direita. — apontou para o alto da escadaria.
— Isso ainda esta de pé? — olhou envolta, podia sentir as labaredas no ar, daquela fatídica noite.
No entanto o interior do casarão não lembrava em nada sua verão antiga, no máximo uma fotografia envelhecida, acinzentada e vazia. Não haviam quadros, vasos, nem mesmo as cruzes que enfeitavam o local. Havia ganhado um novo papel de parede, plano e sem vida como todo o resto.
Puxo ar aos pulmões tomando coragem a cada passo que dou escada acima e paro ao me lembrar do detalhe. Aviso ao rapaz que não estava sozinha e logo meu marido e filhos entrariam.
O corredor iluminado pela luz do dia parece violentamente vazio, assim como o cômodos que eram os antigo quartos, nem mesmo mobília tem. É estranho. Procuro pelo segundo quarto e encontro a porta fechada, empurro a maçaneta vagarosamente vendo o único quarto aparentemente preenchido ali. O local parece menos acinzentado, meu nariz não coça com a poeira e sim naftalina, tem o comum cheiro de gente velha, assim como toda a decoração. A cama de casal no centro do quarto enfeitada por um mosqueteiro cheio de babados. A cômoda rosa bebê apagado e a peça delicadas sobre algumas cadeiras, parecia o quarto de uma moçoila e não de uma velha a beira da morte.
— Freira Catalina? — chamo me esticando sobre o corpo quieto, verificando se ainda estava viva.
— Senhorita Pitersburg — sibilou naquele mesmo tom enjoativo de sempre. Estava bem viva até aquele momento.
— Por quê demorou tanto a vir? Eu tenho adiado a minha morte tempo demais.
— Olá, é bom vê-la também. — ironizo cruzando as mãos as costas. — É uma viagem longa, eu tenho duas crianças pequenas. — explico. Ela abre a boca surpresa.
— Então se casou? — aceno positivamente ao ouvir aquilo. — Fico contente em saber disso menina. Tive tanto medo de não conseguir seguir sua vida.
— Não foi fácil, ainda não é, mas ter Elliot e os meu filhos me da um motivo para tentar dia após dia. — puxo uma cadeira me sentando ao seu lado. — Eles são a minha luz.
— Me conte sobre as crianças. — pediu sorrindo com os olhos, assustador, pois nunca tinha visto aquela mulher dar um sorriso sincero.
— Geórgia fez quatro anos, ela é linda e muito esperta pra sua idade, logo vai para a creche eu sei que vou sentir falta do seu bom humor pela manhã. — a coisa mais brega e real que descobri na vida adulta é que nunca me canso de me gabar dos meus filhos. — E Justin, acabou de fazer um ano. É muito esperto também, andou cedo e simplesmente decidiu que o pai dele é mais legal do que eu. — enquanto contava notei seus olhos encherem-se de lágrimas.
— Você escolheu belos nomes. — disse emocionada e encarou um ponto á sua frente. — Ele ficaria feliz com a homenagem.
Viro o pescoço a procura do que chamara sua atenção repentinamente, o cheiro de hortelã invadindo meus sentidos e causando meu coração a disparar violentamente. Meus olhos percorrem o quarto a procura de algo que nem sei o que é, e se assustam com a abertura sem aviso da porta. É o garoto que abriu a porta trazendo uma bandeja com chá.
— Me desculpem interromper, trouxe chá de hortelã com limão para vocês.
Deixou a bandeja sobre a mesa de cabeceira, serviu as duas xícaras e saiu. Catalina ainda encarava o nada com os olhos lacrimejantes.
— Ele quem? — me atrevo a perguntar quando o rapaz nos deixa a sós.
— Sabe quem. — disse e tossiu cansada. — Minha avó disse que os Chermont se convenceram de que deveríamos cuidar do que era seus como se ainda servíssemos a eles, por tudo que ele fez a família, era nossa punição. Mesmo quando sua última geração morreu e a nossa prosseguiu continuámos a cuidar de tudo até que restasse só a mim.
— Do que está falando?
— A linhagem de Heloise acabou a alguns anos, mas a de Justin não. Sou sua ultima descendente viva, pagando pelo incidente. — arregalo os olhos surpresa com a confissão.
— Eu não fazia ideia.
— Ninguém fazia, nem mesmo ele. — contou levando o olhar cansado a xícara de chá e depois para mim. — Tentamos liberta-lo várias vezes, de formas que não me orgulho, mas nada funcionou. Até você atear fogo em tudo e banir a almas malditas que circulavam pelos corredores.
— Você sabia.
— Sim. — me levanto passando os dedos entre os fios tentando me recuperar do que ouvia. —Isso é ridículo, se soubesse teria impedido todas aquelas mortes, todo aquele inferno.
— Gostaria que fosse tão fácil assim, menina. Há mais nesse mundo do que possa imaginar, e quase tudo não esta sob nosso controle. — me sento outra vez, sendo tomada por um sentimento de frustração. — Eu fiz o que pude, acredite.
— Tanto faz, é passado. — espanto os pensamentos que fazem meu estômago doer. Seria péssimo soltar os cachorros na moribunda —Não adianta remoer mesmo, nada vai mudar.
— Eu gostaria de me desculpar, mas sinto que seja tarde demais. — não esboço emoção, não queria suas desculpas. — Mas me deixe explicar tudo do começo.
Penso em recusar, mas acabo cedendo. Tomo uma xicara de chá e a ajudo a se sentar, acaba me seguindo ao experimentar a bebida que não parecia esfriar com facilidade. Catalina era de fato a ultima descente da família de Justin, depois do incidente no celeiro a sua família foi obrigada a servir os Chermont como forma de pagar pelo crime que acreditavam que ele havia cometido. Justin se comunicou com um parente uma vez e lhe contou a verdade, desde então enquanto cuidam das terras dos pais de Heloise procuram formas de salva-lo. Mas nunca deu certo, com o tempo e o jovens transitando no local acabaram se envolvendo, descobriram sobre Heloise, não conseguiram bani-la e nem colocar as mãos no diário. Até que eu apareci e dei fim em tudo aquilo.
— Me chamou aqui para contar a história? — pergunto deixando a xícara vazia de lado.
— Sim e não. — a velha se esticou e pegou as chaves sobre a mesa. — Eu não tenho muito tempo, finalmente terei um descanso e não há mais nenhuma alma atormentada na minha família para seguir com nossa penitência. Abra o portão quando vierem destruir tudo, dê adeus a essa memória ruim e se cure dela.
— Vai destruir o casarão. — concluo analisando o que me dizia. — Eu me despedi de tudo aqui na última vez em que estive neste lugar.
— Não da forma correta. — divagou. — Deixe-o ir em paz.
— Ele já foi.
— Sempre esteve aqui a sua espera.
— Isso é impossível. — sibilo abalada com a revelação.
— Oh minha querida. — tossiu largando as chaves na minha mão e se encolheu em um tosse grosseira. — Depois de tudo que viu, deveria acreditar mais na possibilidade do impossível.
A sensação que tenho é de que vou vomitar meus intestinos ali. Não houve um dia sequer que não pensasse nele, depois de acordar no hospital, os dias seguintes isolada no meu quarto, anos depois estando no meu pior e melhor estado. Não só pensei como chamei por seu nome, rezei e implorei que voltasse a aparecer e não houve um sinal sequer. Se Tim, que tem estado todo este tempo ao meu lado não tivesse me confirmado que tudo que vi e vivi era verdade eu certamente teria parado em um hospício. Afinal, o que me impedia de imaginar e alucinar sua existência.
Fico ao lado de Catalina pela meia hora seguinte, a velha fala sobre os velhos tempos e me conta detalhes sobre as vida daqueles que viveram ali comigo. Não consegui prestar atenção em muita coisa, estava distraída, confusa e acima de tudo ansiosa. Olhava para a porta a todo tempo, tendo a impressão de uma sombra me esperava do outro lado de fora. Catalina e entrega ao sono e eu a deixo ali atravessando a soleira bruscamente.
Meu instintos ainda estavam em ótima estado. Encaro o corredor na direção do meu antigo quarto, e vejo a figura pequena olhando ara o interior do cômodo dando risadinhas, encantada com algo.
— Gia? Filha? — chamo caminhando em passos rápidos em sua direção. Uma sombra transpassa de um lado ao outro, provavelmente dentro do quarto, mas quando alcanço a porta o espaço esta vazio. — Com quem estava falando meu bem? — questiono me ajoelhando a sua frente.
—Ele disse que eu sou tão bonita quanto você mamãe. — ditou alegre. Olho outra vez por cima do ombro.
— Quem?
— O homem bonito. — explicou apontando para o interior do quarto vazio.
— E o que mais? — agarro a pequena em meus braços e levando deixando o corredor para trás. Meu coração acelerado ainda retumbava no peito.
— Que eu devo crescer e ser muito feliz e fazer a mamãe feliz.
— Ele disse isso é? — a instigo a continuar a falar, mas não há muito a ser dito depois disso.
Encontro Elliot em uma saleta redecorada, ele conversa com o rapaz que descubro se chamar Peter. Me junto a eles ganhando um guia detalhado do que aconteceu em Chermont desde o fatídico incêndio.
დ
A Freira Catalina faleceu naquela tarde, depois que Peter nos ofereceu bolinhos e foi checar a mulher se deu conta de que havia finalmente descansado. Não houve choro ou comoção da minha parte, mas de alguma forma estava satisfeita por tê-la visto uma última vez e conversado sobre os demônios enterrados entre aquelas paredes, nem tudo foi tirado a limpo, mas o suficiente para deixar meu coração em paz.
No dia seguinte, após o enterro deixei meu marido e as crianças no hotel, pegaríamos um trem de volta no começo da noite. Antes, eu precisava abrir os portões para a prefeitura colocar o lugar abaixo. Peter me acompanhou até a entrada e disse que ficaria no aguardo das máquinas. Tudo estava resolvido, o meu único dever era me despedir, mesmo sem a segurança de que conseguiria, me atrevi a tentar.
O aroma de hortelã me perseguia desde o dia anterior, algo no meu interior dizia que ele estava ali. Eu sabia.
Paro no salão de entrada, no último lugar onde nos vimos e fechei os olhos, recapitulando em mente cada detalhe seu, os nossos momentos, o sentimento que nunca havia morrido em meu peito. Os pelos da minha nuca se ouriçam, arrepiados e o aroma se intensificou.
— Eu posso sentir você. — aviso abrindo os olhos.
Deixo-me ser guiada pela energia. Passo a frente da escadaria e sigo entre as pilastras arruinadas pelo fogo, alcanço o refeitório. As longas mesas cinzentas ainda estão lá, as cadeiras e bancos no topo cheios de poeira indicando que faz muito tempo que ninguém tem uma refeição decente ali.
No centro, onde uma luz reflete o vitral da janela o corpo incandescente esta parado, de costas para mim. Reconheço os fios castanhos claro, a pele pálida envolta em uma camisa branca de botões e calças pretas, os pé descalços tocam o chão. O corpo se move, com a luz em um emaranhado de cores refletindo em sua pele, parecia ser feito de um milhão de cristais. Um ser celestial.
O par de íris cor de mel miram-me como da primeira vez e de repente senti uma injeção de nostalgia nas minhas veias.
— Milady... — murmurou desenhando um sorriso nos lábios. — Não imagina o quanto tenho esperado por esse momento. — ditou em um tom cansado e aliviado ao mesmo tempo.
— Justin.
A realização de que estava ali a aminha frente me deixou atônita, mas não o suficiente para permanecer no mesmo local. Quando dei por mim estava correndo em sua direção, como a menina que um dia fui completamente apaixonada por aquele fantasma. Lembro-me disso e paro a poucos centímetros dele. Confusa com a ideia de que poderia ou não toca-lo. Como quem lia meus pensamentos sua mão foi erguida.
O toque frio arrepiou-me dos pés a cabeça, mesmo ciente de que aquela era a sensação dos seu dedos na minha pele, não havia me esquecido, mas as vezes me perguntava se haivia sentido aquilo mesmo ou criado em minha mente.
— Minha menina. — mesmo de olhos fechados, eu sabia que ele sorria ao falar aquilo.
— Pensei que tivesse desaparecido para sempre, como os outros. — agarro a mão que toca meu rosto, sem afastar seu toque.
— Como eu poderia ir sem saber que esta bem? — sinto o corpo próximo ao meu, noto que estávamos quase da mesma altura, e bem, eu provavelmente era mais velha do que ele em sua idade quando vivo. — Nunca encontraria paz, já bastava o inferno para qual lhe arrastei.
— Não foi culpa sua —dito abrindo os olhos, o par de íris cor de mel fitavam-me a poucos centímetros. — Eu teria me envolvido naquela confusa caso estivesse apaixonada por você ou não, eu era jovem demais para entender os riscos.
— Eu poderia ter tentado te parar.
— Não poderia, sentia o mesmo que eu. Pessoas são estúpidas quando se trata do amor, independente da dimensão em que estejam. — concluo. Não havia um célula no meu corpo capaz de guardar mágoa dele. — Senti tanto a sua falta.
Os braços firmes me agarram em um abraço acolhedor. Esqueço do mundo, me sinto em casa outra vez e me permito fazer isso sentir culpa, por motivo óbvios.
— Você é feliz? — pergunta depois de um minuto de silêncio acariciando minhas costas.
— Sou.
— Então eu sou também. — roçou a ponta do nariz em minha testa. — Diga aquele homem para cuidar muito bem de você, ou eu serei obrigado a reencarnar para rouba-la dele. — o tom falso de braveza me fez rir. — Entendeu? Diga a ele para sempre ser um cavalheiro e lhe tratar como a dama que é, na rua e na cama.
Sua frase faz todo meu rosto arder em vergonha, ao lembrar-me das cenas indecentes que compartilhamos entre aquelas paredes bolorentas. Os dedos pálidos e calejados seguram meu queixo juntando nossa atenção.
— Ele cuida bem de você? — aceno positivamente. — Ótimo, mas a minha ameaça perdura até o fim dos tempos. —solto uma risada desacreditada.
Nos sentamos sobre a superfície de uma mesa empoeirada. Não me afasto com seus toques, cheios de carinho me deixam dormente, de uma forma boa e reconfortante. Me conta como tem sido seus dias, ou melhor, a última década naquele lugar. Que todas as sombras desapareceram, foram banidos e o ar do local vagarosamente tornou-se mais limpo. Mas ele não conseguiu ir, pois de alguma forma sentia-se ligado a mim e temia meu estado após a minha partida.
— Por algum tempo eu pensei que fosse apenas culpa, como o que senti quando Heloise ficou presa neste antro e eu me sujeitava as suas maldades. Mas o peso no peito não indicava isso, eu só queria ter certeza de que você estava bem e em paz, que estava feliz. Só conseguiria partir assim. — suspirou ajeitando as mangas da camisa branca. — Não era culpa, era amor e cuidado.
— O que aconteceu agora que sabe que eu estou bem? — pergunto, repentinamente tomada por um sentimento que me enchia os olhos.
— Não há mais nada que me prenda aqui. — disse moldando um sorriso triste no rosto. —Não podemos ficar juntos agora, você tem uma vida bonita pela frente e uma família para amar e cuidar. — o polegar frio limpou uma lágrima que escorria pela maçã do meu rosto.
Levantou-se da mesa e me puxou contigo, para o ponto onde a luz que invadia a persiana adentrava o antigo refeitório, como um caleidoscópio todas as cores atravessavam sua figura.
— Vamos nos ver outra vez? — questiono, a despedida me causando um choro triste, mas não doloroso, um choro capaz de encerrar ciclos.
— Certamente milady. — agarrou minhas mãos deixando um beijo nas falanges. — Espero com todo o meu coração lhe encontrar de novo, mesmo que seja em outra vida, e escrever vinte e sei mil vezes toda a devoção do meu amor. — inclinou-se vagarosamente deixando um selando de um jeito casto seus lábios nos meus. — Nunca se esqueça que a escuridão também é feita de luz, você é a minha luz e esperarei o tempo que for para nos reunirmos outra vez.
O espectro invadido pela luz torna-se cada vez mais límpido, como se consumido pela luz do sol. o sorriso direcionado a mim desaparece lentamente no ar, ergo a mão tentando capturar as milhares de fagulhas de luz em que se transforma ao simplesmente deixar de existir a frente dos meus olhos.
Preciso de um momento para me recuperar. Não há mais aroma de hortelã no ar ou arrepios em minha nuca, sou deixada com um sentimento de sossego no peito.
Quando Peter me avisa sobre a chegada das máquinas faço questão de abrir o enormes portões da entrada do terreno. E não faço questão de olhar para trás quando os sons do casarão desmoronando soam atrás de mim. É finalmente o fim.
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