36 - A Escuridão mata.
O dia da luz
Desde o último domingo, John tem caminhado como um peregrino até aos gémeos, num ritual diário que busca evitar o eclipse da sua identidade, a cada apagão que se insinua com crescente efervescência. Entre o labor e a companhia infantil, tece a sua vida, um tecido dividido em duas cores: trabalho e crianças.
Três visitas a Pellegrini, na semana em curso, conferiu um fio de esperança à recuperação completa do mafioso italiano. Enquanto isso, os laços de comunicação com Maggie minguaram, ela esteve atarefada na elaboração de planos de vingança, não contra Pellegrini, mas contra Aleksander.
Maggie recebeu, uma mensagem de Aleksander, a perguntar se o cocktail estava pronto. Referindo-se a coktail, pelo arsenal de venenos e vírus que ela ficou de preparar para exterminar Pellegrini e a sua camarilha. E Maggie, com a mestria de uma alquimista das sombras, respondeu com um enigmático: "Ainda não, mas quando estiver pronto, prepare-se para um deleite singular e inesperado."
Retornando agora ao universo de John, ontem, sexta-feira, recebeu uma mensagem de Sammy, "ursos polares rondam o banquete da pizaria", referindo-se que há movimentações russas junto à casa de Pellegrini. A mansão de Pellegrini está rodeada de muros e câmaras de filmar, sendo difícil de penetrar sem o conhecimento de alguém do interior. No entanto, mais vale prevenir do que remediar. Sammy e os seus homens estarão preparados para o jantar de logo à noite. John ainda não sabe, Sammy desconfia, Dima tem a certeza que o sangue vai escorrer.
Dima tem-se sentido mal, esta semana, é atacado por suores, vómitos e diarreias. É no meio destes ataques súbitos contra a saúde que ele pretende executar um assalto sanguinário à mansão de Pellegrini. Uma manobra para impressionar o pai, e liquidar a máfia italiana. Segundo Dima é a oportunidade ideal, um dos polícias avençados de Pellegrini foi adquirido também por ele, na semana finda. Um cheque de cinquenta mil dólares é o preço pela informação, por desativar as câmaras e eliminar um ou dois que lá se encontrem, incluindo o seu colega polícia que fará de sentinela no banquete. O preço foi exorbitante, mas para Dima, valerá a pena, no repasto estarão presentes, nada menos, do que numerosos parentes de Pellegrini, regendo o submundo organizado de múltiplas cidades.
São dezoito horas e 30 minutos, em Maplewood Lane, John regressa a si depois de mais um apagão. Está novamente de óculos escuros, Maggie acabara de lhe perguntar se estava pronto.
— Sim — disse John, aliviado pela Escuridão de não ter a capacidade de resistir às palavras de Maggie. Olha para o cronómetro, a Escuridão está no índice 95. Possivelmente ainda terá mais dois ou três dias se nada de anormal acontecer.
— Então vamos, nunca pensei ir a casa de Pellegrini sem levar um vestido negro. — As palavras de Maggie, entremeadas com um sorriso enigmático, traziam consigo um suave aroma mortífero.
— A vida reserva-nos surpresas, transformando o que ontem era sombrio num panorama colorido e cativante. Estás muito bonita, vais arrasar. — Expressou John, com a sua atenção fixando-se no vestido rosa orvalhado por círculos brancos.
A frase, dita por John, lembra-nos da natureza imprevisível da vida, onde momentos difíceis podem eventualmente dar lugar a uma visão mais positiva e cativante das coisas. Ela nos convida a manter a esperança mesmo nas situações mais obscuras, pois o curso da vida pode nos surpreender com reviravoltas inesperadas e transformações significativas. Contudo, neste dia grávido de mudanças, paira uma ameaça que espreita à distância das mentes de Maggie e John, mas que se insinua com proximidade inquietante.
— Os teus olhos vêm o que o teu coração sente. — disse Maggie, com um sorriso provocador.
— O que se vê não está apenas nos olhos, é também influenciada pelos sentimentos que abrigamos cá dentro— disse John, colocando a mão no peito. Na esperança de que, um dia, as palavras se concretizem. Que o que ele enxerga possa também ser moldado por um estado emocional interno, longe do vazio sentimental que carrega consigo.
No jantar, o clima é servido com pinceladas de humor e boa disposição. Um ambiente alegre, carregado de emoção e regado com o melhor vinho. Os variados pratos, típicos da cozinha italiana, foram servidos e degustados acompanhados pelo riso de um ambiente familiar, longe do obscuro submundo. Nesse cenário de satisfação, onde os prazeres gastronómicos são puras oferendas ao paladar, e após a derradeira degustação da sobremesa, um recado rompe a harmonia.
É nesse ponto que uma mensagem de Sammy chega a John, uma nota agridoce na sinfonia do jantar: "os pratos estão frios, a sobremesa é amarga, indigestão à vista". Doutor John, alguém já entrosado nos confins da vida de Pellegrini, engaja-se em conversa com o mafioso.
— Está na hora de subirmos, eu sei que queria ficar mais tempo, mas as precauções de hoje são a ponte para que o amanhã nos traga um tempo bem passado. — John teceu as palavras olhando para Richard, o neto de Pellegrini. Ele havia identificado, durante a última semana, que o calcanhar de Aquiles de Pellegrini era Richard, a afeição profunda que o mafioso nutria pelo neto conferia a John um domínio tácito sobre o homem, uma influência sutil, mas inegável.
— O médico manda, o doente obedece. Os tempos mudaram, já não mando no que como, nem no que bebo, até na hora de dormir... — Falou Pellegrini, com a sua voz áspera fazendo uma pausa, e então com um fulgor repentino continuou— Ainda bem que não me tirou o direito a mandar nos negócios, não estejam com ideias — disse para riso da mesa.
— É por pouco tempo, tem um coração de leão que ainda há de aguentar muito vinho e parmesão. Meus senhores, até já, não bebam muito conhaque e muito menos vodka. Disse John, referindo vodka, apenas para que Maggie ficasse ciente do perigo que se corria.
— Vodka, doutor? — questionou Pellegrini— Aqui só temos coisas boas.
— Ainda bem, é coisa que não faz o meu género, por mim acabava com essa bebida para sempre, mas está na moda por aí — disse Maggie, assinalando a John que havia percebido a mensagem.
— Doutor, é um homem cheio de sorte— disse Pellegrini, referindo-se a Maggie.
— Sou, sim, ainda estou vivo, não estou? — proferiu John com um sorriso.
— Doutor, quem me dera morrer nas mãos da minha saudosa Eleonor.
Pellegrini despediu-se de Maggie.
— A senhora também é uma mulher de sorte, homens como John são poucos. — Proferiu Pellegrini ao ouvido de Maggie.
— Tenho tentado fazer dele ainda melhor— disse Maggie, pensando "Sim sem dúvida que John é um grande homem que dará um grande assassino".
As linhas entre o bem e o mal desvanecem-se, a luz e a Escuridão entrelaçam-se, o perigo espreita nas suspeitas de John e Maggie. Contudo, não estavam preocupados, a fortaleza de Pellegrini era impenetrável. "Se Dima preparou alguma coisa, impulsiva, como é seu hábito, vai-se dar mal", pensou Maggie. Ela não sabia que a ameaça não viria só do exterior, no interior preparava-se o terreno de forma traiçoeira.
Quem, cogitava que tudo iria dar certo, era Samuel Jackson, um dos polícias que observava a sala das infindáveis câmaras que pernoitavam em volta aos muros da mansão de Pellegrini. E tinha razões para isso.
Levantou-se com uma arma já com o silenciador colocado, apanhou o seu colega e um outro funcionário de Pellegrini em amena conversa e espetou dois projéteis em cada um deles. Os homens caíram no chão de mosaico vermelho, e as câmaras foram desligadas.
A astúcia de Sammy fora ludibriada, não percebera que o início do ardil fora concebido de dentro para fora. Oito homens e uma mulher armados, transpuseram os muros dos fundos, a duzentos passos da grandiosa mansão. Três entre eles avançaram sorrateiros, nas sombras noturnas, seguindo o caminho junto ao muro até o portão principal. Sem aviso, os dois vigias, guardiões do portão, foram apanhados desprotegidos e tombaram sob mãos assassinas. O portão, outrora intransponível, foi forçado a se abrir.
Alfred e Tommy estavam numa árvore onde outrora já haviam feito ninho. Foi no momento da abertura do portão, que Alfred enviou uma mensagem a Sammy, alertando para o perigo. Tarde demais, o plano já estava a ser executado, agora só poderiam minimizar os estragos. Sammy manda uma mensagem o mais rápido que pode a John, "Janelas abertas".
Um carro entra pelo portão, lá dentro seguem quatro homens armados, prontos a disparar sobre tudo o que mexer. Enquanto o carro se movia a alta velocidade, Pauline, a mulher armada, subia a mansão pelo exterior, ela já sabia que Pellegrini estava no quarto. Ao mesmo tempo, entravam os oito homens, pelas traseiras e após terem matado os dois seguranças que guardavam as traseiras do edifício. Dirigiam-se à sala onde todos ainda estavam na mesa, o massacre parecia inevitável.
John estava no quarto com Pellegrini e Richard. Dirigiu-se às janelas e abriu-as para o céu estrelado. O ar entrou, o barulho dos pneus de um carro atingiu os ouvidos de Richard, que vendo o rosto apreensivo do avô, ficou assustado e abraçou-se a Pellegrini.
Uma chuva repentina de balas fez-se ouvir, um presságio de desgraça atingiu os olhos dos três que estavam no quarto. O perigo chegaria ali também.
Foi aí que Pauline pontapeou a porta do quarto e o invadiu, trazendo consigo o prenúncio da morte.
— Mate-me a mim, mas deixe o meu neto— disse em pânico Pellegrini.
— Primeiro, você vai sofrer vendo o seu neto morrer. — A arma foi apontada para Richard. Um olhar frio para John e continuou — E deixarei o seu querido amigo para sobremesa... da última vez fugiu. — Apesar da máscara, no rosto podia sentir-se um riso de prazer sinistro.
Um pontinho vermelho, um raio laser quase impercetível, cintilou na máscara de esqui usada por Pauline. Alfred, do alto da sua árvore, disparou. John saltou em direção a Pauline, alcançando-a enquanto a bala enviada por Alfred perfurava o crânio da mulher. Com agilidade felina, amparou a queda de Pauline, e com uma rapidez singular, disparou, da arma desta, contra o próprio ombro, apanhando-o de raspão. Emitiu um grito que ecoou na mente de Pellegrini. Em seguida, voltou a atirar, trespassando a cabeça já sem vida de Pauline.
John acercou-se da janela, olhando para as estrelas à procura de um sinal, e o sinal surgiu. Tommy, com uma lanterna, lançou um feixe de luz para John, emitindo o sinal aguardado. O perigo era grande e iminente. John voltou-se e Pellegrini testemunhou uma luminosidade, um halo a envolver John como uma aura protetora. "É um anjo", pensou Pellegrini sob o efeito da anestesia, do medo e da adrenalina do momento.
— Cuide de Richard, eu já volto—, ele murmurou para Pellegrini. Sem olhar para trás, John desapareceu na noite tumultuada. Partiu em direção à chuva de balas que inundavam a noite como uma tempestade maligna. No coração de Pellegrini, a certeza firmou-se: a presença de John trouxe salvação, pelo menos por enquanto.
Pellegrini, sobressaltado, pediu ao neto que lhe chegasse o telemóvel, ligou para a polícia contar o sucedido, em breve chegariam ambulâncias e os polícias.
— Tudo vai ficar bem! — disse Pellegrini, para o neto, num esforço9 de manter a tranquilidade e a esperança em aberto.
John abriu a porta, saiu, empunhando a arma, já não era ele que estava no controlo do seu corpo, mas sim a Escuridão. John era um mero espetador, consciente da sua incapacidade de controlar as ações do próprio corpo.
Lá fora, Alfred, à distância, já havia ceifado a cabeça de três dos homens que haviam chegado no carro, faltava um, que gritava horrorizado, sem saber de onde vinham as balas que abateram os colegas. Não teve muito tempo para gritar, um projétil lançado por Sammy silenciou-o para sempre. Ainda assim, os gritos penetraram as paredes da mansão, atraindo três dos oito assassinos que estavam lá dentro.
Nesse instante, já Sammy e três dos seus homens aproximavam-se rapidamente. Tinham deixado o veículo a cerca de cem passos de distância. Os três russos, tomados pela urgência, abriram a porta apressadamente, os seus olhos ansiosos buscando compreender os gritos. No entanto, antes que pudessem discernir a cena, uma sinfonia de disparos trespassou o ar. As balas sedentas de sangue fatal, foram disparadas por Sammy, seus companheiros, Alfred e Tommy. Não era possível afirmar com precisão quem derrubara quem, mas o que permanecia incontestável era que os três que deixaram a mansão jaziam no chão, derrotados pelo peso das balas.
A Escuridão, senhora do corpo de John, descia as escadas. Dois russos, que haviam se aventurado na direção oposta para investigar o andar superior, mal tiveram a oportunidade de compreender a ameaça que se aproximava. A Escuridão agiu com uma rapidez e precisão quase sobrenaturais, disparando a arma como se os seus movimentos fossem apenas o resultado de um pensamento fugaz. Os russos, surpreendidos, foram vencidos sem cerimónia.
A Escuridão então tomou posse das armas que haviam caído das mãos dos russos, empunhando uma em cada mão, como se fossem extensões naturais do seu ser. Com passos decididos, ela desceu em direção ao monte de corpos que se acumulava, um testemunho silencioso da carnificina que havia varrido o ambiente. A montanha de mortos erguia-se como uma pintura tenebrosa pincelada pela tinta do caos e da violência.
Nas mãos da Escuridão, as armas eram prolongamentos da sua vontade implacável, ferramentas de destruição que ela manipulava sem hesitação. Os três russos que restavam, como vultos vindos do além, pisavam, a passos apressados, os corpos estendidos no chão. Carregavam as armas prontas para convocar o som da morte, ainda perplexos quanto à origem dos dois últimos disparos.
A Escuridão, como por artes mágicas, rolou escadas abaixo, numa cambalhota, atlética. Dois disparos simultâneos, um de cada arma, encontraram os espíritos dos dois russos, levando-os para o lado de lá. O terceiro russo ainda tentou reagir, lançando um tiro em alguma direção incerta, enquanto o som do disparo ecoava, uma última reação de instinto antes do fim. Em vez de apenas um disparo, foram dois que perfuraram o centro da testa do russo. Se o buraco resultante das balas, não fosse tão amplo, pareceria ser causado apenas por uma bala.
Não restava ninguém de pé, todos caídos, derrotados pela força das balas. Entre os corpos, ferida por um projétil, mas ainda respirando, Maggie permanecia. A Escuridão aproximou-se com as armas nas mãos, enquanto John do interior pensava: "espero que não lhe faça mal".
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