28-À Beira da Escuridão: Conspirações e Mistérios
Num contraste gritante com a sofisticação dos deuses, bem do outro lado da cidade, os detetives Arthur e Rodrigo estavam entregues a um jantar muito mais modesto, saboreando um hambúrguer cada.
— Duvido que isso seja obra da máfia ou de Pellegrini. Afinal, eles têm sob o seu controle quase toda a polícia... A morte de Michael gerou uma atmosfera tensa e, atualmente, paira sobre nós a angustiante possibilidade de qualquer um de nós ser a próxima vítima — Arthur ponderou, ostentando um olhar reflexivo.
— Isso sem mencionar a pressão da imprensa, que persegue incansavelmente Pellegrini. Já existem políticos negando qualquer ligação com ele — Rodrigo acrescentou, ressaltando a intricada situação.
— E sabemos que isso é teatro, esses políticos são bonecos manipulados por Pellegrini — mencionou Arthur, de olhos brilhando de indignação — Não vais acreditar no que descobri.
— O quê? Conseguiu encontrar algo? — Rodrigo indagou.
— Sim! Parece que a sua amiga esquiva, foi suspeita de dois homicídios em Nova Iorque. Porém, sem provas suficientes, a investigação estagnou. E agora, um detalhe bombástico: Pauline é sobrinha de Aleksandr, o chefe da máfia russa em Nova Iorque. — Arthur revelou
— Isto começa a encaixar-se! Ela pode ser escorregadia, mas amanhã não escapará! — Rodrigo proferiu, ainda impactado pela informação.
Dr. John deparou-se com Xavier e Miguel Cruz em um dos sombrios becos da cidade. Sem perder tempo, ele perguntou: — Tenho certeza que usou luvas sempre que tocou na bolsa de Pauline?
Xavier assentiu. — Sim, Dr. John. Sempre.
O médico recolheu a bolsa das mãos de Xavier. — Encontrámo-nos aqui daqui a quarenta minutos — afirmou ele, antes de se retirar em direção ao necrotério municipal.
Ao chegar, Dr. John encontrou-se com Alex Wood, o segurança de plantão. Eles mantinham um relacionamento amigável, especialmente desde que o médico salvou a vida de Sarah, a esposa de Alex. Desde então, não havia mês que Dr. John não entrasse em contacto com a família Wood. Para Alex, o doutor era mais que um salvador: era um amigo.
Por este motivo, apesar do protocolo rígido do necrotério, Alex permitiu que Dr. John entrasse para prestar uma última homenagem ao seu falecido colega, Dr. Smith.
— Sabe que não costumo permitir visitas fora do horário, John, mas para você abrirei uma exceção — disse Alex, enquanto acionava a fechadura eletrónica da porta.
Dr. John assentiu agradecido, a sua expressão era de pura exaustão e desolação diante da terrível perda. — Alex, importa-se se eu ficar um pouco a sós com ele? — perguntou ele.
— Claro que não, John. Fique à vontade.
Assim que se viu sozinho na fria sala do necrotério, Dr. John retirou do bolso do sobretudo um par de luvas de látex e as colocou. Em seguida, extraiu a tesoura de jardinagem de Pauline que estava na bolsa. Com extremo cuidado, esfregou a lâmina da tesoura no dedo mindinho decepado do Dr. Smith e, usando a mesma lâmina, raspou uma pequena quantidade de pele do morto.
Após o macabro ritual, Dr. John saiu da morgue e dirigiu-se ao seu carro. Sem perder tempo, dirigiu-se ao encontro de Xavier e Miguel. Devolveu a bolsa com a tesoura dentro.
— Xavier, entregue isto a Maria — disse ele, referindo-se à irmã de Xavier e de Miguel. — Ela sabe o que deve fazer com a bolsa. E lembre-se, sempre que tocarem na bolsa, usem luvas. Não podemos deixar impressões digitais.
— Podes contar connosco. A ementa já está a ser servida ao teu amigo Sammy. . — disse Miguel, enquanto Xavier esboçou um leve sorriso.
— Sammy é um grande amigo, é da minha família como vocês, tratem-no bem.
— Sem crise!
— Não te esqueças de furar as rodas à senhorita da bolsa — disse John, falando para Xavier. Repitam o que têm de fazer? — Pediu John.
Xavier e Miguel repetiram o plano para que não houvesse dúvidas em relação ao que fazer e ao 'timing' das ações. Despediram-se com um "Até amanhã".
John ainda teria de medir a sua escuridão antes de descansar. O descanso faz bem ao corpo e a mente. O dia seguinte seria um dia atribulado, provavelmente o último se as coisas não corressem bem.
(...)
Na cave da casa dos Cruz, estava Sammy e os seus cinco homens. Quem os atendia era Óscar de la Fuente, esposo de Maria e cunhado de Miguel Cruz. Óscar era mecânico, na sua oficina os clientes eram bem atendidos, podiam usufruir de peças mais baratas que a concorrência. O seu negócio era quase legal, pagava os impostos de tudo que podia tributar e até se gabava disso. No entanto, havia coisas que não podia tributar, as peças que usava eram todas roubadas, com uma ou outra exceção.
Se explicarmos melhor, até se pode dizer, que as peças não eram furtadas, os carros — sim. Os carros eram desmantelados, uma parte ficava em peças, outra era vendida numa sucata amiga. Para além das peças roubadas e do trabalho honesto, havia outra coisa que ajudava a compor o orçamento familiar. Essa outra coisa é que levou Sammy, por indicação de John, à cave dos Cruz.
Sobre a mesa, Óscar exibiu um autêntico arsenal, extraído de um alçapão oculto na profundidade da cave. Entre incontáveis armas para todos os gostos, apenas uma destacava-se: a Barret M82A1, uma devastadora arma de longo alcance. No entanto, a presença de apenas uma era insuficiente — eles necessitavam de duas.
— Estão limpas? — indagou Sammy, examinando cuidadosamente o conjunto.
— Foram utilizadas apenas no México; nunca dispararam em solo americano — garantiu Óscar, com um ar de tranquilidade.
Uma risada rouca escapou dos lábios de Sammy. Armas de fabricação norte-americana, utilizadas em território mexicano e, agora, retornavam ao seu país de origem sem nenhum rastro do seu uso anterior. A situação tinha a sua ironia.
Alfred, um dos leais seguidores de Sammy, assumiu a posse da Barret M82A1. Ele era um atirador de primeira linha, infalível a uma distância inferior a 1800 metros. O seu talento fora lapidado nos campos de batalha da Guerra do Golfo, tornando-o uma arma letal. No entanto, carregava consigo uma peculiaridade: Alfred detestava o ato de matar. Os pesadelos assombravam o seu sono e os traumas pós-guerra persistiam, como feridas abertas na sua mente. Usualmente, ele dedicava-se à proteção de Sammy à distância, mais por cautela do que por necessidade. Alfred detinha a habilidade de ferir sem tirar vidas, um paradoxo humanitário em meio à violência da sua ocupação.
— Tens a certeza? — perguntou Sammy.
— Tenho, contra violadores e proxenetas, abro exceção. — respondeu Alfred, ele tinha uma filha, e de imaginar o que aqueles animais faziam às adolescentes dava-lhe arrepios.
Se os russos eram o que Alfred pensava, não se podia dizer o mesmo dos italianos. Criminosos também até assassinos, mas violadores e proxenetas não.
— Há também, os italianos. — Trouxe Sammy à baila, para que Alfred tomasse bem consciência do que poderia vir.
— John salvou-te a vida, tu salvastes a minha, eu salvo a de John, se for preciso. — respondeu Alfred com convicção.
— Ok, amanhã, se tivermos sorte, arranjaremos outra arma para James. — disse Sammy — Agora peguem em duas armas de mão cada um.
Para Óscar, hoje era um dia muito diferente. Nunca haviam entrado de uma vez só cinco estranhos na sua cave. Jamais havia mostrado armas sem dinheiro à vista. Hoje nem faria negócio, era tudo emprestado, se corresse bem as armas voltariam para si. Torcia para que corresse bem, as armas não lhe interessavam, queria que os seus filhos continuassem com o padrinho que tem. John foi a melhor coisa que aconteceu aos seus filhos e assim deveria continuar, estaria disposto a sacrificar-se para garantir isso, não tem dúvidas.
(...)
Já no conforto da sua casa, John preparava-se para mais uma viagem ao seu interior, um frente a frente com a Escuridão que o habita. A banheira, projetada para o efeito, tem um metro e meio de profundidade por dois metros de comprimento, servindo plenamente às suas pretensões. Entrou na água, o cronómetro ligado, à cintura um cinto carregado de areia para fazer o peso necessário a manter-se concentrado no fundo da banheira.
Quatro minutos decorreram e John continuava em apneia, a falta de ar tornava-se angustiante. Via tudo negro, sentia a mente a ceder à Escuridão, contudo esta ainda não mostrara a cara. Ele precisava de continuar, saber em que estado se encontrava. Enquanto restar uma chispa de consciência, enquanto não quebrar ao desejo de respirar, continuará.
Dizem que mergulhar no nosso lado obscuro é um processo de autoconhecimento, uma forma de descobrirmos o pulsar da essência individual como se existisse um núcleo para a alma nas profundezas do nosso ser. John pensa que esse núcleo não é a sua alma, mas a alma da própria Escuridão, uma concentração de luz comprimida no interior da casca sombria que o invade. Um último esforço era necessário antes de vir à superfície. A pressão por emergir estava no ponto de ser mais um reflexo biológico do que uma ação consciente, tinha de aguentar.
Alguns segundos de extrema luta e determinação ouviu a terrível voz: "Juntos para sempre". Desligou o cronómetro, não olhou logo para ele, a necessidade de ar impunha-se esmagadoramente. Emergiu. A respiração ofegante arrebanhava todo o ar que podia.
Parecia ainda não estar em si, a Escuridão tomara o controlo, lutava para erguer o braço e ver os segundos, não conseguia, não era ele que estava no comando do seu corpo. Sentiu o corpo a erguer-se da banheira, a sua imagem apareceu no espelho embaciado, a mão limpou o vapor do espelho. O reflexo era o seu, o rosto era de fato o seu, mas os olhos não, o branco dos olhos dera lugar a uma negrura assustadora. John estava, apesar da perda de controlo corporal, aliviado. A Escuridão podia ter o seu corpo, mas não a sua mente.
Dirigiu-se para a cama, esperaria que a Escuridão adormecesse para tomar o controlo corporal. Continuava na sua viagem interior, tudo negro, tentava movimentar os dedos, um pé, uma mão, um braço, nada, rigorosamente nada do seu corpo lhe obedecia. Vagueava pela sua própria mente, perdido na Escuridão, como perdido na noite num sítio estranho, sem luz, sem rumo.
Repentinamente, um fio de luz fez-se visível por um instante, "Há luz", pensou John. Sentiu um toque no seu braço, abriu os olhos, recuperara a consciência, ouviu uma voz.
— Finalmente acordaste! — comentou Maggie.
— Desculpa, estou muito cansado.
— Deita cansado nisso, há uns dois minutos que te chamo. Se não tivesses a respiração calma, teria a impressão de que estarias do outro lado da vida.
— Sonhava que estava tudo escuro. Estás bem?
— Sim, e tu?
— Com sono.
John tinha de dormir, amanhã precisaria de todos os seus instintos de sobrevivência no máximo, ele sabia-o que o dia seguinte seria um dia de vida ou morte. Antes de fechar os olhos, olhou para o cronómetro, a Escuridão não dá tréguas, continua a subir, nível 82.
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