Overdose
Overdose
— Sempre achei que o meu fogo por você não seria apagado, Cristiano Ronaldo. — Falou Tereza, sentada na cama de motel onde passara aquela noite. — Você é tão gato, gostoso, rico... — mordiscou os lábios. Seus olhos brilhavam e o corpo magro exalava o doce aroma de luxúria. — Oh, gato, você veio da Espanha até aqui só pra me ver?
O homem em pé diante da cama deslizou a mão pelos cabelos e, malicioso, sorriu, fitando a misura de mulher que o "desejava" com tamanha aflição.
— Estou aqui, Tereza. Não importa o quanto o futebol tente nos separar, eu voarei meio mundo para ter uma noite com você.
Tereza sorriu, exibindo seus dentes amarelos. Estava feliz, mas aos poucos, da mesma forma como a magia chegara aos seus olhos, o homem dos seus sonhos começou a desaparecer. Abriu a mão, deixando a varinha de condão vazia despencar sobre o tapete empoeirado daquele quarto.
O sorriso se desfez. A magia estava acabando. Diabos de mercadoria ruim. O homem desapareceu e a cabeça de Tereza foi penetrada por uma horrível e agonizante pontada. Ela gritou, rolou na cama e debateu-se. Tentou amenizar aquela tortura diária, mas por mais que apertasse o crânio com as mãos, a dor não passava. A mulher estava acostumada com aquela sensação. Estava crente que era um castigo de Deus pelo pecado que cometeu nos dias que deviam ser os mais felizes da sua vida. Sim, a dor era parte da sua vida (vida?), mas não importava quantas vezes por dia aquelas pontadas no cérebro a fizessem rolar, todas as vezes que tornava a acontecer, uma nova sensação era experimentada pelo seu corpo. Em todas, absolutamente todas, Tereza chorava, abria a mochila rosa, pegava outra varinha mágica, apertava o braço com algum elástico e injetava nas veias a magia ilegal. Magia da falsa felicidade. Magia que sempre maquiava a tristeza por algumas horas. Mas os fantasmas do passado sempre tendiam a voltar. E voltavam. Quando isso acontecia, amargurada, via o gozo se desfazar, deixando para trás apenas uma um amargo desejo por conhecer o quinto dos infernos.
A realidade voltava aos olhos de Tereza. Ela não queria fazer mais isso na sua vida. Ela não queria mais nada na vida. Não queria nem mesmo ter uma vida. Abriu a mochila velha e tirou a última varinha pontuda que comprara de um traficante em Almirante Tamandaré.
Olhou para a seringa e suspirou. Era hora. Não havia mais como tardar o inevitável.
Ajoelhou-se no colchão, repousou o recipiente da alegria sobre o travesseiro. Enfiou a mão dentro da mochila surrada, remexeu e, enfim, sentindo o corpo esfriar, tirou para fora um pequeno revolver calibre 22., a arma que, apesar de pouca potência e de ser rejeitada pelo ex-dono, serviria para a mulher infeliz pôr um fim naquela merda de vida.
Olhou em volta como se buscasse motivos para não consumar o fim, mas o cenário que a rodeava não ajudava em muito: quadros velhos de 1,99 pendurados em paredes amarelas; uma TV que passava um único filme pornô sadomasoquista; criado mudo com abajur e, por algum motivo que nunca entendeu a mulher, uma bíblia na gaveta; lençóis que ainda tinha o cheiro da última prostituta que trepara ali e, no banheiro, o que mais fazia Tereza sentir nojo de si mesma, haviam preservativos usados grudados no fundo da cesta de lixo.
Levantou a mão, encostando a arma no ouvido direito e, de olhos fechados, deixou o passado tomar sua mente. Não o passado recente de amargura e desilusão. Não, ela tinha lembranças de um passado feliz.
*****
Antes.
O ronco do motor era o único som naquela rodovia deserta, cercada por estepes e ressecados capins amarelos onde, solitariamente, o asfalto se estendia serpenteando para além das vistas dos aventureiros que por ela traçavam seu destino condoriano.
Tereza gostava da sensação. Gostava do sol aquecendo seu rosto. Gostava do vento esvoaçando seus cabelos. Gostava da sensação de liberdade e independência que uma boa Honda lhe fazia sentir.
Naquele tempo, naqueles dias simples, a vida era apenas encher a mochila com roupas e sair empinando com a Maquina Feroz. Tudo descomplicado. Tereza dormia em barracas improvidas; parava nos bares que, surgindo no seu caminho, lhe proporcionavam um porre legal, uma briga revigorante e, até mesmo, uma boa transa quando o corpo clamava por um pouco de prazer: a morena, apesar de tudo, era humana.
Tereza, aos 27 anos, adorava aquela vida. Não trocaria por nada, dizia ela, mas essas palavras saíram da boca para fora, apenas. Por mais que o ser humano possa amar uma maquina potente que nos leva a novos mundos, nenhuma substitui a chance de formar uma família com alguém especial.
O sol descia no horizonte, tingindo o céu com um dourado que fez os olhos de Tereza brilharem enquanto ela forçava o acelerador. O tanque estava cheio, mochila carregada, a carteira suprida... a vida era boa. Era, mas podia ficar melhor.
A noite chegou veloz. Quando a mulher deu por si, estava pilotando, tendo como única luz à frente os faróis da motocicleta. Aquilo não a assustava. Estava acostumada a pilotar em infinitos sertões escuros, mas ao erguer os olhos e ver as nuvens se contorcendo no céu, engoliu seco, sentiu que não seria uma boa ideia acampar por ali, no relento, encarando dentro da barraca uma possível tempestade com ventos, raios e granizo. Não, ela acelerou. Precisava achar uma pousada, mas não estava animada que teria êxito: para onde olhava, não importando o quão acelerada estivesse a bicha mecânica, tudo que via era asfalto e mato.
Os relâmpagos iluminavam o horizonte enquanto a chuva tilintava no capacete de Tereza. Os ventos aumentavam, fazendo arder o rosto da mulher. Ela acelerou. Precisava encontrar abrigo. A tempestade aumentou sua força e, ensurdecedoramente, um raio brilhou e então explodiu a meio quilômetro da posição da jovem.
A frente da moto chegou a dançar com o susto da sua piloto, mas com destreza e sorte, mais sorte que habilidade, a mulher manobrou o guidão e, apesar das águas que alisavam o asfalto, manteve o controle e seguiu viajem.
Seguiu até, enchendo-a de alegria, avistou um sobrado no meio do vazio. Ao aproximar-se pôde notar as portas abertas, as luzes pulsantes e o som fervoroso que vazava pelas aberturas da construção. Tereza animou-se ainda mais: dormiria bêbada no chão daquele bar.
Estacionou a moto junto às outras quatro que estavam debaixo da marquise e, salpicando o chão com as águas que carregava na jaqueta de couro, entrou no bar. Não era muito diferente dos outros que já frequentara: mesa de sinuca, maquinas Junk Box, bebidas fortes para derrubar marmanjos, banheiro unisex (como não haviam outras mulheres no bar, Tereza decidiu que o banheiro masculino, a partir de agora, também receberia seus depósitos), quatro homens parrudos e mal encarados, paredes de madeira sem qualquer pintura, assoalho de madeira... tudo nostálgico como costumavam ser os botecos naquela região.
Seguida pelos olhos do quarteto que enxia a cara berrando e gargalhando entorno da mesa de bilhar, a mulher cruzou o bar e sentou-se diante do balcão. Queria pedir o de sempre: uma garrafa de vodca e uma cama para dormir.
Enquanto esperava o retorno do proprietário que estava na cozinha fritando alguns salgados, Tereza olhou na direção de onde viam os risos irritantes. Queria apenas confirmar o que sempre acontecia. Não importava se a moto a levava para São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Rio Branco, nada mudava os machos de duas rodas: eles olhavam para a mulher de cabelos negros e curvas sensuais com desejo e cruéis pretensões machistas.
Tereza desviou o olhar e mesmo tentando escondê-lo, o sorriso surgiu no seu rosto. Aqueles homens gordos, barbudos e metidos a machos tentariam o mesmo que outros já haviam tentado. O sorriso aumentou quando a mulher apalpou a cintura e sentiu o volume junto ao corpo. O sorriso se tornou gargalhada. A dama da moto queria mais era ver a cobra fumar!
— Senhorita — chamou o proprietário.
O sorriso de Tereza despareceu, levando consigo todo e qualquer instinto selvagem que pedia sangue e uma boa briga. A mulher sentiu um nó na barriga e um aperto no peito. Nunca antes seus olhos brilharam daquela forma. Seu rosto corou e a respiração entrecortada mostrou-se falhante. Aquele homem forte, viril, pele morena e cabelos tão escuro quanto a noite lhe tirou o fôlego.
— O que vai querer? — Perguntou Sebastiana, secando o copete com um pano surrado.
Tereza olhou o homem de cima à baixo. Mordiscou o lábio inferior. Luxuria tomando o seu corpo. Um calor subiu, subiu, subiu. Aquela mulher não gostava de meias palavras nem de enrolação. Era seu lema desde que deu um basta às agressões do seu padrasto e se enfiou no mundo: faça tudo, arrependa-se de nada.
— Quero dar pra você! — Respondeu.
Não era a primeira vez que aquelas palavras saiam da boca de Tereza, mas nunca antes um homem sorrira como Sebastian, levando aquilo como uma boa piada.
— Essa foi boa — comentou Sebastian, entregando à Tereza um pequeno copo com vodca. — Você é engraçada. Gostei.
Tereza olhou para o copo. Não sabia se aquela rejeição era um insulto ou um presente. Olhou outra vez para o copo. Queria saber como aquele homem descobrira que Vodca era a sua bebida.
"Sorte", respondeu a si mesma.
— Obrigada, meu nome é Tereza.
*****
O dedo roçava o gatilho. Tereza queria pôr um fim a toda aquela existência de dor e amarguras que estava sendo obrigada a suportar. Bastava o movimento de um dedo; bastava o reluzir de uma fagulha de coragem; bastava, libertadoramente, um milésimo de segundo. A morte seria indolor, imaginava a mulher, fechando os olhos que lacrimejavam com as lembranças de Caic. Tereza respirou fundo. O plano se consumaria. Estava decidida a dar um pé na bunda do destino e se atirar no colo do capeta.
Seus músculos se contraíram. O espirito dizia "vai", mas o cérebro, seu sistema nervoso, por desobediência, fez a pobre mulher congelar. Suor frio escorrendo pela testa.
— Diabos! — Praguejou, deixando a arma cair sobre o travesseiro, ao lado da seringa. — Nem isso eu consigo. Minha vida é reclamar! Oh, como vivo numa pilha de merda! Oh, como esse bagulho tá fraco. Não dá nem barato! Oh, que merda, por que Deus não me leva?! Porra, agora que tenho a chance... — Tereza esmurrou o colchão. Estava furiosa. Sua boca salivando como um cão feroz prestes a atacar. — Agora que tenho a chance de morrer, vacilo! DIABO! — Seus olhos, subitamente, pararam na agulha da felicidade que repousava com o revolver. O rosto de Tereza iluminou-se. — Já sei o que tá acontecendo: não posso morrer sem ficar doidona uma última vez. É, é isso!
Apanhou os elástico que usava costumeiramente. Apertou as veias e, de braço estendido, encostou a ponta da agulha. Queria magia nas veias. Queria sentir-se parte de algo maior. Queria aquele doce elixir que a fazia achar graça nas própria tragédias. Procurou um ponto onde injetar aquele treco agudo, mas não conseguia achar. Estava nervosa. Estava amedrontada. Olhou com mais atenção. Não se daria por vencida tão facilmente. Achou.
— Isso!
Apertou a agulha na curva do braço e fez uma careta. Estava acostumada com o "chapar" de uma boa varinha mágica, mas aquela dor... não, aquela queimação irritante sempre lhe fazia franzir a máscara cinzenta que se tornara o seu rosto. Rosto pálido... rosto de uma mulher que perdeu tudo que tinha. Até a vontade de viver.
A agulha furou a pele e, tão suave e delicado como fios de seda, um fino filete de sangue verteu da ferida e escorreu pelo braço de Tereza. Ela cerrou os dentes, injetando o conteúdo na corrente sanguínea. Estava feito. Arrancou a agulha do braço e arremessou a seringa em um canto aleatório. Era a terceira dose naquela noite. O terceiro barato. Um após o outro.
Um grande sorriso brotou na face de Tereza que, abobada e vendo mundo girar faiscando em tons de vermelho e amarelo, sentiu o estomago embrulhar, o coração disparar e os pulmões queimarem. Quis gritar, mas não tinha mais ar. Algo estava errado, percebeu. Levou as mãos ao pescoço, tentando forçar a sucção de alguma centelha de oxigênio, mas seus pulmões haviam deixado-a na mão. Desespero!
"DIABO!", praguejou em pensamento, deixando o corpo cair sobre o carpete do quarto. Rolou freneticamente, sentindo a morte aproximar-se. Já com o rosto roxo pela falta de ar, como um animal que se cansara de lutar contra o predador, Tereza acalmou-se, fitando a luminária no teto.
"Então é assim que tudo vai acabar?", perguntou-se, deixando os olhos se fecharem. "Então vou morrer como uma drogada? Uma assassina drogada?".
Resignou-se: a verdade era dura e triste, mas não havia contestação; ela era mesma uma assassina que morreria de tanto se entupir de drogas.
Tereza queria morrer, mas ali, deitada naquele chão imundo do quarto de um motel repugnante, Tereza sentiu algo dentro de si. Sentiu que não queria mais a morte para si. Tentou gritar e se debater, mas já era tarde. Tudo escureceu e o mundo ao seu redor tornou-se mudo.
Um clarão de luz se ascendeu diante de Tereza. Não foi tempo suficiente para ela sentir-se viva, mas bastou para que visse, largada no chão, ainda vazando algumas gotas daquela droga da falsa alegria, sua seringa.
Tereza sorriu voltando para a escuridão: quem diria que a varinha magica do gozo feliz seria a chave da libertação?
*****
"NÃÃÃÃÃO!", o grito ecoou pelo quarto, fazendo chiar os ouvidos de Tereza que, sobressaltada, apalpando o peito para sentir o coração, acordou-se no meio da madrugada. Estava suada, preocupada, confusa. Olhou em volta: a luminária do quarto oscilava seu brilho, deixando cantos escuro no cômodo onde se fodera Tereza.
"NÃÃÃÃÃO!", o grito retornou, grito de homem, fazendo a mulher se contorcer, ajoelhada no grande tapete. O grito prolongou-se até Tereza gritar agonizante, vendo em flashes, diante dos olhos, imagens de um homem forte e exuberante; de uma casa simples, porém aconchegante. Uma casa à beira da estrada, onde ficava um bar; imagens de um casamento de cartório; imagens de uma mulher grávida — a cada imagem, mais o sofrimento crescia. Aquele câncer... maldito câncer — viu imagens de um parto dolorido; viu cenas de uma mulher mal humorada, se recusando a dar o peito para o filho que padecia esfomeado; viu um homem chorando e um cortejo partindo rumo ao cimitério.
— Tereza! — Disse Sebastian, envolvendo a mulher em seus braços. — Amor, querida, o que tá acontecendo? Por que te achei num motel, quase morta? Amor, olhe pra mim!
Tereza abriu lentamente os olhos. Aqueles braços eram quentes e familiares. Traziam boas recordações e sensações, mas por algum motivo, mesmo querendo manter-se naquele bem querer pelo resto da vida, um temor crescia aos poucos no seu peito, obrigando-a a abrir seus olhos e encarar a vida.
Castigo! Ela tentou se matar, mas não teve coragem.
Tentou se drogar... quase morreu... e agora, como penitência, o passado retornava diante dos seus olhos.
— Você veio aqui para me matar? — Indagou Tereza, fitando o sorriso de Sebastian. Ele poderia estar furioso, mas, por algum motivo desconhecido, sorria como se aquela mulher fosse uma joia perdida que, milagrosamente, acabara de ser recuperada. — Vai me matar sorrindo? Entendo... está alegre pela oportunidade... vá em frente: faça!
A mulher esperava que Sebastian sacasse uma faca, um revolver ou, quem sabe, algo mais cruél, talvez um galão de gasolina. Não pretendia se defender. De certo modo, aquilo lhe seria até um presente. Fechou os olhos, aguardando a liberdade, mas ela não veio.
— Por que eu te mataria, se você foi o grande amor da minha vida? Sabe por que estou sorrindo? — Perguntou e a mulher negou, meneando a cabeça. — Estou feliz porque me lembrei do nosso primeiro encontro. Lembra? Eu nunca consegui esquecer: seu sorriso, seu jeito, seu sotaque. Tudo me fazia imaginar-nos debaixo do manto estrelado, nos beijando. Tu, querida, me fez um homem feliz. Até quando corri para o banheiro e te encontrei rasgando a pança daqueles barbudos que tentaram te estuprar... nossa, até com o rosto coberto de sangue e hematomas você ficava linda. — Sebastian afagou o rosto pálido de Tereza. As drogas já haviam lhe drenado muito da sua beleza, mas, mesmo que ficasse careca, banguela e cega de ambos os olhos, aquele homem a acharia a mais linda dama deste mundo. — Eu te amo, querida. Por favor, diga que estou errado. Diga que aquela arma não era pra você mesma.
— Estou cansada... — desabafou, aconchegando-se nos braços reforçados daquele homem. — você acha que é facil viver esta vida? Você acha que eu durmo? Você acha que eu tenho sossego? Minha vida é um inferno! Eu não suporto esta culpa. Culpa!
— Não se culpe. O que foi já era. Agora você precisa seguir a vida. Pare com essas merdas de agulhas. Elas acabam com você, meu amor!
— "Essas agulhas" são o meu sossego. Sem elas a cama é feita de estacas; e o travesseiro, pedra. Quando a dor começa e vou beber água, aquilo que enche meu copo é vermelho e viscoso. E quando me acordo no escuro, olhos sombrios me observam... sabe o que é a verdadeira culpa? Sabe o que é sentir vergonha de si mesma?
— Eu estou sempre com você: claro que eu sei o que você passa. Mas você precisa do meu perdão, ou o do nosso filho? O que você precisa para voltar a viver?
— Preciso de vocês... para sempre! Do perdão que não mereço... preciso de um novo beijo... ele está com você... o Caic?
Aquele nome causou grande dor em Sebastian. Ao ouvi-lo, subitamente, largou Tereza e começou a andar em circulos pelo quarto. As mãos apertando a cabeça e lágrimas escorrendo pelo rosto.
— MEU FILHO! NOSSO FILHO! Ele... ele tá no céu... eu... queria beijá-lo uma vez mais... DROGA!
— O que houve? Você não pode trazer ele aqui?
— Me arrependo todos os dias pelo que fiz... nunca mais vi nosso filho... sinto essa dor todos os dias. E ela é culpa minha, não sua.
*****
Nenhuma dor surge do nada.
Nenhuma tristeza sobrevive no coração onde a luz da alegria brilha forte.
Nenhuma mulher sorri quando o sangue de um filho lhe suja as mãos!
Daquele encontro com Sebastian no bar surgiu um sentimento forte entre o casal. Tereza adorava sua vida na estrada, mas não fez resistência a largar aquilo e viver naquela casa com o namorado. Foram dias e noites felizes. Mas de todas as alegrias, a maior foi na manhã que a mulher anunciou "estou gravida".
Sebastian não escondeu a alegria. Todas as bebidas daquela noite foram por conta do bar. A avenida tornou-se o palco de uma grande festa. O casal enfim seria uma família, e se dependesse de Tereza, seriam uma família feliz.
Namoro, dias de alegria, pedido de casamento, vestido branco, casamento em um cartório qualquer, barriga crescendo, lua de mel no motel mais caro daquela região bucólica, tudo, absolutamente tudo que aconteceu naqueles 9 meses fizeram Tereza sentir-se querida. Sentir-se amada. Mas existem pessoas que, a julgar pelas desventuras e pontapés que o divino lhes apronta, não nasceram para gozar de bons dias felizes.
A bolsa estourou. Estava na hora da família completar-se.
Tudo foi difícil, mas Sebastian não sabia o que fazer. O tempo estava chuvoso, com pedras e raios rasgando o céu. O marido correu até a garagem, mas a porra do bebedor de gasolina não queria sair do lugar.
— Meu Deus! — Exclamou, caindo de joelhos ao ouvir os gritos da mulher. — Me de forças, Senhor.
Sebastian correu até a cozinha e começou os preparativos. Seu primeiro filho receberia o maior presente que um pai pode dar: a vida.
Lavou as mãos e, enfrentando todos os medos que sentia no coração, fez o que não sabia, até que, reconfortante, viu o filho imergindo daquele vórtice ensanguentado que eram as pernas de Tereza.
Caic nasceu. Era um bebê grande e forte. Seu choro ecoava pela rodovia: um som de vida sobrepondo-se aos trovões de um cenário macabro.
A primeira noite foi normal, mas logo de manhã o terror começou.
Tereza estava diferente. Estava mal humorada, ranzinza, triste, deprimida. Não queria segurar o filho nos braços. Não queria dar-lhe de mamar.
— Amor — chamou Sebastian, com Caic nos braços, tentando deitá-lo ao lado da mãe. — Nosso filho tá chorando. Ele tá faminto. Por favor...
— Não! — Interrompeu, ameaçando um tapa na criança embolada nos cobertores azuis. — Eu não quero cuidar dessa coisa! Ele não é meu filho. Ele... ele... tire essa coisa de perto de mim!
Sebastian sentiu grande amargura, mas não culpou a esposa. Já havia ouvido falar de mulheres que passaram por situações similares. Deu um beijo na esposa, deitou o filho no berço e, tendo uma ideia, subiu na moto de Tereza e saiu em disparada. Procuraria uma lactante na cidade e, se não achasse, compraria uma cabrita de cria. Aquela depressão não duraria muitos dias, mas nesse tempo Caic não passaria fome.
Duas horas mais tarde Sebastian retornou, trazendo um garrafa de leite de cabra. Aquilo serviria para muitos dias. Tirou o capacete e entrou na casa. Estava animado, mas ao ver o bebê degolado no berço e sua esposa segurando a arma do crime, a garrafa explodiu na cerâmica e o Pai despencou de joelhos, chorando como uma criança. Chorando como um homem que perdera seu bem mais precioso.
Tereza abriu os olhos e viu o marido naquele estado deprimente, mas não deu importância e voltou a dormir. Dormiu por horas, e quando acordou, malditos são os olhos que carregava: Sebastian estava pendurado na viga mestra. Uma corda presa no pescoço e pés pendendo no ar.
*****
— Você ama o nosso filho? — Perguntou Sebastian, secando as lágrimas. Tereza assentiu. — Então não cometa o mesmo erro que eu. Aquela corda me levou para o inferno, Tereza. Lá eu não posso segurar nosso filhos nos braços. Não erre como eu errei. Viva para um dia poder beijar o nosso bacuri. Viva, meu amor, viva!
O coração de Tereza acelerou e ela acordou ofegante. O quarto estava bem iluminado e uma mulher gemia de maneira bizarra no filme que era exibido na TV.
A mulher levantou-se com muita dor e caminhou até onde estava a seringa. Examinou, observou e, por fim, gritando, lançou a varinha magica contra a parede.
— CHEGA! NÃO PRECISO MAIS DE VOCÊ!
Uma nova pontada na cabeça, mas essa não derrubou a drogada. Ela manteve-se firme e forte, tentando concluir se aquilo fora uma alucinação criada pela magia da felicidade, um sonho qualquer ou uma visita de Sebastian. Suspirou. Aquilo fora um sonho.
Olhou para o travesseiro onde ainda repousava o revolver. Seus olhos se arregalaram: debaixo da arma estava um cartão branco, e nele algo escrito à mão.
A mulher o apanhou para ler: "venha pegar a chave da casa onde mora o seu filho".
Olhou do outro lado: era o endereço de uma igreja.
Tereza sentiu o peito arder, mas não era o ardor torturante que a droga produzia. Aquele calor era bom. Correu para fora do quarto, deixando o revolver para trás. Não queria mais aquela tristeza. Subiu na moto. Não queria mais amarguras. Pôs o capacete. Buscaria a felicidade e o reencontro com Caic. Arrancou com a moto, as rodas queimando o asfalto.
Se ainda houvesse uma chance de ter o filhos nos braços, uma única chance, para aquela vida não voltaria nunca mais. Nunca!
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