Capítulo 1
A morte nunca fez sentido. É estranho pensar, que, em um momento a pessoa está lá e de repente, não está mais. Você nunca mais irá vê-la ou tocá-la. Nada poderá voltar ao que era antes.
Minha mãe morreu no meu nascimento, não a conheci, nunca pude sentir seu cheiro, saber o gosto da sua comida, ou ver e acariciar seu rosto. Carrego comigo há 20 anos a culpa, já que ela deu sua a vida por mim. Sempre vi minha mãe como minha heroína, mas ela faz falta em muitas coisas do dia-a-dia, até mesmo nas coisas mais simples.
Aos 16 anos me apaixonei pelo cara mais incrível da escola. Samuel era o garoto mais perfeito que já conheci, sabia exatamente como tratar qualquer pessoa em sua volta. Minha vida nunca foi um conto de fadas. Infelizmente não pude tê-lo por mais que dois anos. Todos os nossos planos foram jogados no lixo, ou melhor, todos os nossos planos foram parar embaixo de um caminhão.
É triste saber que Samuel morreu, que eu estava do seu lado, que poderia ter morrido com ele naquele acidente. Suas últimas palavras nunca sairão da minha cabeça. Foi tudo que ele disse antes de tudo acabar. Foi tudo que ele disse antes do meu mundo desabar. Eu queria gritar, eu queria socar a primeira pessoa que eu visse. Dois anos depois de tudo e eu nunca superei. Nunca mais beijei outra boca, nunca mais sequer olhei para outro garoto. Talvez eu nunca mais me apaixone como me apaixonei por Samuel.
Estava jogada na cama, encarando meu enfeite de borboleta rodopiar com o vento vindo da sacada, enquanto ouvia o tic tac do relógio.
Depois que Samuel morreu, fiquei extremamente deprimida.
Não tinha ânimo para mais nada, nem mesmo fotografar que sempre foi minha paixão, passava os dias trancada no quarto, esperando que aquela dor passasse. Foram várias sessões no psicólogo especializado em luto, mas aceitar seria uma coisa que viria de mim mesma e não seria do dia para a noite.
Meus pais ficaram muito preocupados e um tempo depois, decidiram que seria bom se nos mudássemos para cidade natal deles, uma cidadezinha no interior do estado, assim teria oportunidade de me recuperar e viver uma nova fase. Fase essa que eu não estava nem um pouco animada de começar.
— Becca, a Mia já chegou. — ouvi a voz de Victor do outro lado da porta.
Quando eu tinha cinco anos, meu pai começou a namorar o Victor. Eu era uma criança, mas mesmo assim não achava nada daquilo estranho, na verdade, adorava falar para todas as crianças da escola que eu tinha dois pais. Mas algumas crianças, e pais, eram cruéis e não aceitavam, mas nunca me importei, o importante para mim era que os dois me amavam e faziam de tudo para me ver feliz. No final, isso é tudo que importa.
Nos mudamos há três semanas, mas eu já tinha uma amiga e um emprego, tudo graças ao meu pai que era amigo de Nicolas, pai de Mia e dono da livraria que comecei a trabalhar.
— Você demorou — resmunguei descendo as escadas. — Achei que teria que ir sozinha.
O cabelo dourado e cacheado de Mia estava preso em um coque bagunçado. Ela estava respirando ofegante, com as mãos pausadas sobre as coxas.
— Meu pai é incapaz de abrir a livraria sozinho. Vamos logo? — Mia segurou meu braço me puxando até a porta.
Eu estava adorando aquelas três semanas, tinha feito mais progresso do que em 16 anos da minha vida.
— Vai com calma, Mia — implorei, quando comecei a perder o fôlego.
— Meu pai não consegue fazer nada sem mim naquela livraria e hoje chega uma remessa de livros novos.
— Eu disse para os meus pais que consigo ir sozinha. Não é nada difícil, sabia?
— Não deu tempo de você decorar o caminho para lugar nenhum, você vai acabar se perdendo e entrando em um bairro perigoso.
— Vocês são tão exagerados, não tenho cinco anos, e além do mais, essa cidade é minúscula — ela deu de ombros, me ignorando. — OK! — bufei — Então podemos ir um pouco devagar para que eu possa ir guardado o caminho?
Ela diminuiu a velocidade e começou a andar na mesma frequência que eu.
— Você pode continuar a história do livro da sua mãe? Fiquei a noite inteira pensando em quem é o pai da filha da Clarice.
Quando completei 13 anos, meu pai me deu o melhor presente de aniversário. Um livro que a minha mãe terminara de escrever antes de falecer. "Apenas mais uma palavra" era um dos melhores livros que li e o meu preferido sem dúvidas. Ele já estava velho, amassado, com as folhas amareladas, mas a assinatura da minha mãe continuava intacta e eu achava aquilo incrível.
— Esse é o problema Mia. Minha mãe não escreveu quem é o pai. Durante todos esses anos eu estou tentando descobrir, sinto que esse livro teria uma continuação.
— Você tá de brincadeira comigo, né? — ela parou a minha frente me olhando incrédula — Eu preciso saber a continuação e olha que nem gosto de ler.
— Eu sei — suspirei — É uma tortura, mas não tenho ideia de qual seja o final.
O livro da minha mãe era um grande e doce romance, talvez com uma pequena pitada de mistério no final. Saber toda história de Clarice e seu triângulo amoroso com Cristian e Edu, era um dos meus programas preferidos das tardes chuvosas, mas quando o final chegava e a grande dúvida gritava no ar, desejava que minha mãe estivesse lá para me contar. Com o tempo comecei a criar o meu próprio final, mas sem nunca saber o verdadeiro.
Percebi que Mia estava fazendo um caminho diferente dos outros dias. Mas não a questionei, ela parecia estar eufórica para chegar logo à livraria. Assim que viramos uma esquina, pude avistar um casarão abandonado.
— Olha este casarão — Parei colocando minha mão em sua frente para que ela parasse também.
O casarão era antigo, havia um portão de grades brancas que protegia a frente, um curto caminho de pedras levava até a porta, a grama no espaço entre a porta e portão estava aparada, mas com folhas secas da árvore do vizinho espalhadas pelo chão. Tudo aquilo era um combo perfeito para um filme de suspense.
— Hoje passei por um caminho fácil e rápido. Assim você pode vir sozinha. — ela explicou.
— E por que você não passou por aqui desde o primeiro dia? — perguntei, mas não me interessei na resposta, dei mais passos e fiquei parada em frente ao portão. — Esse casarão é incrível!
— Ele está abandonado há muitos anos. Acho até que tem fantasmas aí. — seu tom era sério.
— Não parece um casarão abandonado, a grama está bem aparada. Você já entrou aí?
— Ninguém tem coragem de entrar aí, Becca. Quem entra diz que ouve barulhos estranhos, passos e vultos. Uma vez um garoto entrou e nunca mais foi visto, talvez tenha sido levado pela alma da pobre mulher que foi assassinada pelo seu marido — sua atenção voltou para o casarão, fiz o mesmo.
— O quê? — Meus lábios se curvaram em um sorriso. — Eles inventaram até um assassinato? É impossível alguém ter entrado aí e simplesmente ter desaparecido.
— A parte do assassinato não é nenhuma mentira, isso você pode perguntar para qualquer pessoa da cidade. Agora se tem mesmo um fantasma, isso não sei e nem quero saber.
— Mas, você não sabe quem é o dono? E por que ele fez isso com a própria mulher?
— Como disse, ele está abandonado há muito tempo, bem antes de eu ter nascido e para ser sincera, não tenho ideia de quem seja o dono. Só se sabe que ele era maluco e ciumento. Pobre de sua esposa — ela deu de ombros e se preparou para voltar a andar.
— Nossa, isso é horrível. — Ainda encarava aquele casarão.
— É mesmo.
Mia voltou a andar, mas eu ainda continuava lá, observando aquele misterioso casarão. Puxei da minha bolsa minha câmera polaroid e tirei uma foto. A mania incontrolável de querer guardar qualquer momento com uma fotografia, me perseguia desde sempre.
— Vamos logo — ela gritou antes que eu ficasse para trás.
Guardei minha câmera e minha nova fotografia, e corri até ela.
Os livros novos haviam chegado na livraria, estava tudo uma grande bagunça e Nic parecia estar completamente perdido em meio as caixas.
— Que bom que vocês chegaram — ele nos abraçou todo desajeitado, me fazendo rir. — Mia, onde coloco? — Ele segurava um livro de capa azul.
— Este é o novo livro do Harlan Coben? — Pulei em suas mãos, observando cada detalhe do livro. — Adoro as histórias desse cara, ele é incrível.
— Você é igual sua mãe, — Nic soltou um sorriso mexendo a cabeça. — e eu nunca vou superar isso.
Nic, minha mãe, meu pai e Victor, eram amigos desde o colégio. Ele me dizia que meu pai era um homem de sorte, por ter sido o único que conseguiu conquistá-la.
— Pode ficar com esse para você. Tem outros exemplares.
— Muito obrigada. Esse é o melhor emprego de todos. — Guardei o livro na bolsa e me juntei com Mia para tentar organizar tudo.
A manhã inteira ficamos colocando livros e mais livros nas prateleiras, organizando por gênero e autor.
— Quer ir na lanchonete? — Mia perguntou na hora do almoço.
— Sim, por favor. Preciso entregar um livro para o Alan.
Alan era um garoto que conheci nos primeiros dias que me mudei. Ele trabalhava na lanchonete próxima à livraria, e como Mia ia até lá todos os dias, nos aproximamos sem nem perceber.
A lanchonete Fratelli era colorida e havia um vidro enorme que dava para ver todas as pessoas do lado de dentro. Seguia uma linha norte-americana, o chão era preto e branco, todos os bancos eram redondos e vermelhos. Apesar do horário, haviam algumas pessoas espalhadas pelas mesas.
— Becca, acho que o Alan não vai mais ser seu amigo — Mia alertou, quando estávamos sentadas na mesa, encarando Alan atender um grupo de amigos.
Alan estava usando uma camisa do Star Wars que deixava seus braços mais evidentes, seu cabelo loiro estava alinhado, como ainda não tinha visto e suas bochechas estavam mais coradas que o normal. Elas ficavam coradas naturalmente, em um tom de rosa bebê, eu achava fofo, enquanto ele dizia para os quatro cantos que odiava.
— Por quê? — Cerrei os olhos. — Aconteceu alguma coisa?
— É porque a Kyara chegou de viagem. — ela sussurrou, como se não quisesse dizer aquilo.
— Kyara?
— A namorada dele. Não disse nada sobre ela porque achei que eles tinham terminado, afinal de contas ele não falou nada dela para você. A Kyara é insuportável, ela não vai aceitar essa amizade entre vocês, ainda mais quando ela perceber que ele está muito a fim de você — ela me encarava com olhar de piedade, talvez por achar que estava gostando de Alan.
— Ele não está a fim de mim, somos só amigos.
Mia abriu a boca para me responder, mas a porta principal abriu a interrompendo.
— Ah merda — Mia sussurrou novamente — A demogorgon está aqui.
O cabelo de Kyara era tão liso, alinhado e brilhante como eu só tinha visto em revistas, era de um loiro platinado que quase chegava a ser branco, por um segundo eu senti inveja de seu corpo que ficava nítido com o vestido azul colado.
Acompanhei ela se dirigir até Alan, enquanto ele cochichava alguma coisa para ela balançando a cabeça. Kyara me encarou, disse algo novamente para Alan e apontou o dedo para mim, sinalizando falsamente. Voltei a encarar Mia em minha frente e fingi que não tinha visto aquilo, mas Kyara caminhou até chegar em nossa mesa, Alan veio correndo se colocando ao lado dela, apreensivo.
— Não acreditei quando o Alan me disse que tinha uma novata na cidade. Seja bem-vinda a esse buraco, querida — Ela sorriu sem mostrar os dentes. — Se meu pai não fosse o prefeito desse lugar, eu já teria ido embora daqui há muito tempo.
— Essa é a Becca, e agora já pode ir embora, por favor, Kyara — Mia a encarou.
— Calma Mia, só estou tentando ser simpática, não está vendo?
— Não está dando certo — Mia resmungou, revirando as folhas do cardápio.
— Relaxa Mia — sussurrei para Mia, mas encarava Alan.
— Estou pensando no lado bom dessa Becca ter se mudado para cá, ela será sua amiga e você não vai mais ficar sozinha. — Kyara ergueu a sobrancelha com um ar de superioridade.
Alan abriu a boca para dizer alguma coisa, mas ela apertou sua mão como um sinal para ele ficar quieto. Aquele não parecia ser a mesma pessoa com quem eu passava a madrugada trocando mensagens.
Ainda com a atenção no cardápio, Mia suspirou fundo.
— Pelo menos ela não será minha amiga por causa do dinheiro.
— Claro, claro. Até porque você não tem dinheiro nenhum, só o que você tem agora é a livraria. Tudo que sua mãe te deixou foram dívidas e mais dívidas.
Mia fechou o punho e bateu na mesa.
— Mia... — a alertei.
— Becca, querida, — ela passou as mãos pelos meus ombros, limpando alguma coisa invisível, me afastei — não fui com a sua cara. Você é tão, tão, tão.... sem graça, sem sal, estranha. Perfeita para Mia.
— Já chega Kyara — Alan puxou sua mão — É melhor você sair da lanchonete, aqui é meu trabalho e as garotas são clientes.
— Cala boca Alan — Ela revirou os olhos. — Para de defender sua amiguinha, vocês não vão ficar juntos. Quem seria idiota de me trocar por ela?
Olhei para o Alan espantada e neguei com a cabeça, ele apenas deu de ombros.
Como alguém era capaz de estar com uma garota como aquela?
— Kyara, — Alexandre, o dono da lanchonete, interviu quando observou que a situação estava começando a sair do controle. — sei que você acha que pode mandar em tudo, mas na lanchonete sou eu quem mando, então, se você veio até aqui só para perturbar minhas clientes, vou pedir para você sair.
Ela bufou e andou até a porta, deixando Alan lá parado.
— Desculpa — ele pediu para todos antes de se virar e ir atrás dela.
— Espero que você nunca mais mande mensagem para Becca, idiota — Mia gritou antes que ele saísse.
— Isso foi real? — perguntei me encostando na cadeira — Quem essa garota pensa quem é?
— Quando você pensar que Regina George só existe no filme, lembre dessa garota.
— Por que eles estão juntos? Não acredito que o Alan é capaz de estar com uma garota como ela.
— Eu não faço ideia, Becca.
— Isso é ridículo!
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— Vocês acreditam que o Alan tem namorada? — declarei para meus pais, enquanto servia a salada no jantar — Uma namorada não, uma general patricinha.
— Não acredito! — Meu pai foi o primeiro a expor sua opinião. — Achei que vocês iam começar a namorar logo, logo.
Meu pai me dizia que eu deveria tentar me apaixonar de novo, que Samuel ia querer minha felicidade.
Victor soltou um sorrisinho enquanto colocava o suco em meu copo.
— Ela é tão ruim assim? O Alan parece ser um cara tão gentil e atencioso com você.
— Ele é, e não merece ela. A Mia também não entende porque eles estão juntos.
— Ainda acho que vocês podem dar certo. — Meu pai sorriu, querendo me provocar.
— Não, gente, eu nunca mais vou me apaixonar. O Samu era o amor da minha vida, sinto como se nunca mais fosse encontrar alguém como ele.
— Mas você não tem que encontrar outro Samuel, — meu pai me repreendeu jogando uma mecha de seu cabelo para trás da orelha, — você tem que encontrar alguém que te faça feliz tanto quanto ele fazia. Sei como você se sente em relação a perder alguém que ama, mas você tem que viver, você vai amar de novo — Sua mão segurou a de Victor querendo me dar eles como exemplo.
— Tenho certeza que onde quer que o Samuel esteja, ele quer sua felicidade — Victor completou. — Pode ser que não seja o Alan, pode ser que seja amanhã ou daqui cinco anos, mas você vai encontrar alguém, alguém que vai fazer seu coração disparar de novo e por mais que você queira fugir, não vai conseguir.
— Já estou muito feliz com vocês, não sei se estou preparada para toda essa história de amar de novo.
Depois do jantar, subi para o meu quarto, peguei minha bolsa e tirei de lá a foto do casarão que tinha tirado mais cedo. A colei em um espaço qualquer do meu mural, gostei do jeito que ela combinava com as demais fotos. O pôr do sol visto da janela do meu antigo quarto, o degrade de pedras da praia que ficava alguns quilômetros da minha antiga casa, mas eu raramente ia, meu rosto sendo esmagado pelos beijos de meus pais na minha festa de 18 anos, outras imagens aleatórias que tirei durante meus anos na escola e o dia do meu baile de formatura.
Samuel estava lindo, mais lindo do que costumava ser todos os dias, eu era suspeita para falar, mas qualquer um que o visse constataria aquilo. Ele usou seu terno preto, mesmo odiando roupas formais, os cachinhos no topo de sua cabeça estavam mais definidos, seus olhos brilhavam para a foto enquanto sua mão passava em volta da minha cintura.
Eu usava um vestido azul marinho que minha amiga tinha me ajudado a escolher exatamente dois dias antes, meu cabelo estava mais curto, as ondas caiam na altura do ombro, meus olhos também brilhavam para a foto. Posamos como dois modelos de revista, nada comparado com a sequência de fotos pregada ao lado, que tiramos em uma cabine do shopping. Caretas e beijos demonstravam nosso amor.
Deitada na cama, lembrei da sensação do toque de Samuel, enquanto apertava a polaroid contra o peito.
A dor de tê-lo perdido me dilacerava de um jeito que nunca consegui explicar, quando me dava conta que na segunda de manhã ele não estaria do meu lado, a dor me consumia ainda mais, me arrastando cada vez mais para o fundo do poço, me deixando sem esperanças de ver a luz no fim do túnel, o tal arco-íris no final da tempestade que minha mãe escreveu em seu livro. Queria lutar para que aquele ar de tristeza não me atingisse, mas aquilo era como lutar contra inimigos invisíveis que podiam te dar uma surra, te deixando jogado no chão, sem nem ao menos dar a chance de revidar.
Nunca aceitei tudo que tinha acontecido, apenas aprendi a conviver com a dor, com o tempo me acostumei com ela ali, sentada ao meu lado.
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