Você já foi amaldiçoado? Soluço já, e de mais maneiras do que conseguiria contar, o garoto parecia colecionar todo o tipo de azar imaginável.

Ele tinha uma vida de merda em uma casa de merda com pais de merda, tinha amigos francamente medíocres e no geral sua vida parecia não sair do lugar, ele só tinha um sonho  nessa vida miserável: ser músico e o mais perto que conseguiu foi montar uma bandinha de garagem e trabalhar meio período em uma loja de música.

Sua banda se chamava “Dragões de Berk” e era composta por seus melhores amigos, os gêmeos Cabeça Quente e Cabeça Dura Thorston, seu primo Melequento e, claro, ele próprio. Eles tinham outro membro no ano passado, uma vocalista excepcional que era a pior parte da maldição de Soluço, mas a história dela era muito além de uma vocalista que simplesmente decidiu sair da banda, era muito muito pior.

Era pior porque Astrid Hofferson era sua ex, era muito pior porque além de ser sua ex ela saiu sem nem falar com ele e era muito muito pior porque agora ela estava por aí cantando músicas sobre ele e fazendo sucesso sozinha!

Sim, ser obrigado a ouvir a música da ex sobre como você é um merda onde quer que você vá era uma maldição que ninguém entenderia muito bem porque francamente quem mais poderia dizer que tinha passado por isso? 

Mas surpreendentemente, Soluço não se incomodava com as músicas,  até porque nada que Astrid cantasse sobre ele poderia ser pior do que o que ele estava compondo sobre ela, ele se incomodava com a hipocrisia. Se incomodava com o fato de ter virado uma mera nota de rodapé na vida da adolescente mais bem sucedida do arquipélago e desprezava profundamente toda a imagem de “garota má reabilitada” que ela andava vendendo por aí. 

Mas mesmo assim, mesmo os últimos doze meses (ou mais… provavelmente mais) de sua vida tendo sido um inferno, Soluço ainda te diria que estava otimista para aquele ano se você perguntasse, e como não estaria? Aquela seria a primeira vez que tocariam para uma plateia de verdade! 

Deuses, como ele queria que Astrid estivesse lá só pra vê-lo cantar todas as coisas que ele não pôde dizer!

🎸

– Eu já vou – a loira avisou,  colocando apenas parte da cabeça para dentro do escritório onde o irmão se concentrava atentamente na tela do computador. 

– Tá bom – ele disse – esteja de volta até meia noite.

– Meia noite?! – esbravejou a adolescente, ganhando um olhar duro do mais velho, a loira bufou descontente – Afe, tá bom! 

E então ela se virou e saiu pisando duro, esperando que o irmão entendesse o quanto estava infeliz com o horário. Pelos deuses! ela já tinha dezessete anos, meia noite era toque de recolher de criança!

Mas Astrid Hofferson decidiu que não deixaria aquilo estragar a sua noite, não quando estava indo a um festival de bandas indies onde os Berserkers tocariam!

Os Berserkers eram a melhor banda de rock do mundo, quer dizer, a segunda - para a loira Nirvana sempre seria a primeira - e ela tinha uma paixonitezinha pelo vocalista Dagur desde sempre. 

Astrid sempre ia em todos os shows que podia e se não estivesse acompanhada pelo atual ficante naquela noite, Astrid com certeza tentaria dar um jeitinho de entrar nos bastidores - rockeiros amam groupies, afinal. 

O festival aconteceria em um campo aberto, que ainda estava relativamente vazio quando a garota chegou - a maioria das pessoas chegaria muito mais tarde apenas para ver os Berserkers - o que deixou que Astrid ficasse pertinho do palco.

Ela se divertiu com as bandas menos conhecidas e estava aproveitando bem o tempo trocando beijos e risadinhas com o acompanhante, mas a noite de Astrid seria arruinada por volta das onze horas e ela quebraria o beijo que trocava com o rapaz em um salto quando ouviu uma voz infelizmente familiar demais no palco.

– Boa noite, pessoal, somos os Dragões de Berk!

Who knew that immaturity was an anthem?

The song that you sing when you lose your way

Nothing to do? Well let's argue if it passes time it must be okay

Aquele era sem dúvidas o pior dia de toda a sua vida! Ter que ver seu ex em um palco cantando como você foi uma grande filha da puta tinha ser una forma de tortura proibida pelas convenções de Geneva.

Astrid bem que tentou se concentrar em qualquer outra coisa, pensou em como o lugar em que estavam era longe de casa, pensou em como o palco era pequeno, se lembrou de que deveria estar gravando seu segundo álbum naquele exato momento ao invés de perder tempo. Mas não importava que rumo seus pensamentos tomassem, Astrid sempre acabava voltando para a realidade e sua cabeça era envenenada pelas odiosas palavras do ex.

Congrats! You got this song to yourself,

The nice one is sitting all alone on the shelf,

Collecting dust,

Oh it's a must,

Now listen as I tell them what became of us

Era horrível. 

Um pesadelo.

Ter seu ex te difamando para uma multidão inteira já era péssimo,  mas o que deixava tudo ainda pior era o fato de Astrid gostar daquelas músicas, ao menos quando foi ela quem fez músicas sobre ele ela teve a decência de fazer um estilo que ele não ouviria! 

Afflicted

Era uma tremenda falta de respeito, agora não só Soluço tinha estragado várias de suas músicas favoritas do Nirvana, como também tinha estragado o gênero inteiro. Astrid nunca mais conseguiria ouvir uma música de rock sequer sem se lembrar do dia que seu - irritantemente talentoso - ex do ensino médio massacrou seu relacionamento na frente de uma plateia.

Restricted

Astrid precisava sair dali logo antes que perdesse a cabeça. 

– Vou ao banheiro – ela precisou falar um pouco alto demais para ser ouvida pelo companheiro, que apenas balançou a cabeça.

Ela se afastou dele, girou nos calcanhares e fugiu, como o diabo foge da cruz.

Now my head's beating down my door

Camicazi não gostava muito de rock, não era o seu tipo de música favorito, muito menos o que ela procurava ouvir em momentos de lazer, mesmo assim ela estava lá para apoiar o namorado. 

Ela francamente não entendia muito bem toda aquela coisa de festivais, seu negócio sempre foi mais o teatro, e ela não sabia bem o que esperavam da namorada de um vocalista, muito menos um com um romance tão conturbado como o que tinham. 

Se você perguntasse, ela diria que não era um relacionamento tóxico,  mas se você estivesse lá quando Camicazi Bogtorpe e Soluço Haddock começaram a namorar pensaria o contrário. Toda a situação tinha sido uma bagunça e mesmo quase dois anos depois Camicazi ainda se sentia insegura, como se Soluço fosse desaparecer em um piscar de olhos.

I never wanted to have to do this,

Camicazi sempre tivera essa sensação - essa convicção - de que Soluço a largaria sem pestanejar se Astrid Hofferson sequer olhasse em sua direção.

Então, quando antes mesmo de o namorado subir ao palco, Camicazi notou a garota na plateia, congelou da cabeça aos pés e não pôde prestar atenção em mais nada além da loira. Ela viu tudo, a viu dançando e trocando carícias com um rapaz e viu quando ela foi embora.

Camicazi não perdeu tempo, não pôde evitar, a seguiu.

I never wanted to write this song

O banheiro químico ficava distante do palco, mas infelizmente não o suficiente para Astrid não conseguir mais ouvir a banda. Ela se trancou na cabine apertada e fechou os olhos, tentando o máximo que pudesse acalmar os nervos. 

Pegou o celular do bolso da calça jeans e checou as mensagens, nenhuma do irmão ainda. Viu a hora 23:10. Respirou fundo, já deveria estar indo embora se quisesse chegar no horário.

Your friends don't know you put me through this

Bastou sair do banheiro químico que Astrid congelou como se tivesse visto um fantasma, parada do lado de fora estava a outra ponta de seu triângulo amoroso com Soluço no ensino médio. Camicazi era a garota para quem ele corria sempre que brigava com Astrid, só para emputecê-la mais ainda.

Astrid se esforçou para manter o mínimo de decoro.

Cause the picture you painted for them was all wrong.

– Oi e tchau – deu dois passos para longe da garota quando a voz de Camicazi a fez parar novamente.

– Você veio aqui só para ver o Soluço? 

Go ahead and call me a liar

Astrid se virou novamente para encarar a antiga rival, a observou atentamente da cabeça aos pés, quem quer que visse as duas garotas juntas acharia que eram irmãs.  

Ela riu da pergunta.

Tell everyone I never loved you

– Ai que pergunta, é claro que não,  eu nem sabia que essa bandinha de garagem ainda tocava em algum lugar – o tom de Astrid era recheado de deboche o que fez Camicazi revirar os olhos. 

– Não acredito em você. 

You're the saint, I'm the one on fire

– Problema seu – Astrid estava pronta para acabar com aquela chatice de conversa, mas ao invés de se virar e ir embora, ela sorriu – Ei, deixa eu te fazer uma pergunta? O Soluço ainda chora porque eu fui embora? – Astrid viu o momento exato em que a expressão de Camicazi mudou e passou do tédio a irritação e Astrid tinha que confessar que adorava acender o pavio curto da garota. 

Astrid não esperou que Camicazi respondesse nem deu chance que retrucasse e riu com humor da própria pergunta.

– Quer saber, esquece que eu perguntei – completou – eu sei que ele chora. Bom, boa noite, Cami, foi um prazer rever você.

It's reminiscent to tortured youth

Astrid voltou para casa de Uber sem sequer avisar que estava indo embora. Ela atravessou o apartamento correndo sem se preocupar em avisar o irmão que já tinha chegado, entrou como um furacão no quarto, jogou a bolsa em algum canto, se jogou nos travesseiros e deixou sair um grito abafado de sua garganta. 

E finalmente, Astrid se deixou chorar. Pelo o que ela estava chorando não tinha certeza, talvez estivesse ficando louca. 

Ela não estava chateada com as músicas que Soluço tinha feito sobre ela, do mesmo jeito que esperava que ele não estivesse chateado com as músicas que ela tinha feito sobre ele. 

Não podia estar chateada em saber que ele estava com outra, ela já tinha superado aquele término. 

Ou pelo menos achava que tinha superado. 

Mas isso não impediu as lágrimas que inundavam o travesseiro.

Talvez fosse a culpa. Na época, Astrid nem sequer cogitou que sua ausência seria percebida, ela estava tão afundada nos próprios problemas - e francamente nunca acreditou muito que Soluço realmente a tivesse amado - que ir embora e fingir que nada tinha acontecido não foi problema. 

Astrid não pensava naquela época de sua vida há tempos e ver Soluço de novo trouxe à tona muito mais do que memórias de um relacionamento falido. 

Aquilo tudo era patético! Sofrer por um relacionamento de sete meses quase dois anos depois do término era patético, estar tão preocupada com a vida do ex era patético, se importar tanto com o fato de que ele estava para cima e para baixo com aquelazinha era patético!

Astrid deveria estar feliz! Deveria estar feliz em saber que a banda continuava unida, que todos tocavam absurdamente bem em uma sintonia incrível, deveria estar animada com a idade de que poderia se esbarrar com eles por aí qualquer dia desses porque apesar de tudo, ao menos os gêmeos e Melequento tinham sido amigos muito queridos e eles sim merecem todo o sucesso do mundo.

Ela levantou o rosto do travesseiro, secou o rosto com as mãos e pegou o celular do bolso da calça, entrou novamente  pela primeira vez em um de seus perfis antigos que tinha jurado para o irmão que tinha deletado, vasculhou a lista de seguidores até encontrar alguém familiar.

Cabeça Dura continuava com a mesma conta. Perfeito.