4-Saya
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-Poxa, mãe! Precisava gritar assim?- Digo batendo a porta do carro. Ela estava com tanta pressa que deu partida antes mesmo de eu terminar de fechá-la.
-Estou atrasada. Toda quarta vai ser essa palhaçada de xadrez? Vou ter que te buscar toda vez?
-Eu posso voltar a pé quando você estiver muito ocupada- A cara da minha mãe estava péssima. Ela mantinha o polegar pressionando a têmpora enquanto acelerava o carro com indelicadeza.
-Tá, mas você precisa me avisar. Não adianta nada me falar em cima hora, porque fico acelerando as coisas achando que eu tenho que ir buscar você- Eu entendo que ela trabalha duro para manter eu e minha irmã vivas, mas o que custa tirar quinze minutos do dia para se lembrar delas?
-Tudo bem. Eu aviso mãe- Digo encostando a testa do vidro frio do carro. Seu tom estressado estava me deixando estressada.
-E outra- Continua ela insatisfeita- Não é pra ficar de papinho, não. Isso só me atrasa dez vezes mais. E se você acha que eu vou ficar esperando sua conversinha acabar, está muito enganada. Aliás, quem era aquele moleque?
Respiro profundamente. Vamos Saya, mau humor só gera mais mau humor.
-Era uma garota. É a Emma, a aluna nova- Respondo controlando meu tom de voz. Desde que minha mãe se separou do meu pai e começou a trabalhar em home office ela tem estado difícil de lidar. Qualquer conversa ela transformava em discussão ou lição de moral.
-Que menina mais estranha- Ela para o carro bruscamente do semáforo. Seus dedos batem impaciente no volante enquanto espera a cor vermelha mudar para a verde - Eu já mandei você tomar cuidado com quem você anda. Expliquei mil vezes que essas pessoas podem ser má influência. Olha só! Como pode uma garota ter um cabelo daquele.
-Mãe, a Emma é uma pessoa muito legal. Você nem a conhece para estar julgando-a desse modo- O sinal finalmente abre. Pela arrancada bruta da minha mãe e pelas rugas entre as sobrancelhas percebo que ela não gostou do meu comentário.
-O que ela tem que você achou legal? Se você me aparecer usando drogas... Eu já falei pro teu pai que foi uma má ideia ter te colocado em uma escola pública. Esse povo é tudo doido.
-Mãe! Eu não vou usar drogas só porque eu conversei com uma pessoa de aparência minimamente diferente. Tá ouvindo as atrocidades que estão saindo da sua boca?- Falo em um tom mais alto do que o normal. Assim, ela parece ter me escutado e minhas palavras parecem estar flutuando pelo seu cérebro, procurando um lugar para se acomodar. Eu espero que faça efeito.
Entramos no estacionamento coberto do prédio e paramos na nossa vaga com o número do apartamento pintado no chão. Novamente, minha mãe realiza uma ação estrondosa: bater a porta do carro. Ela estava em silêncio há mais ou menos três minutos e só quando entramos no elevador que ela volta a falar.
-Me desculpa filha. É que esse modelo novo de trabalho me deixa muito estressada e eu tenho medo de não dar conta- Mamãe coloca uma mecha de cabelo cor de chocolate atrás da orelha. Seus fios eram iguais aos meus antes de eu pintá-los de azul.
-Tudo bem mãe.
-Onde Pam está esse ano? Não a vi hoje. Ela continua estudando lá?- Observo os andares passarem pelo painel. Andar cinco, seis, sete...
-Está sim. Mas ela escolheu continuar com o vôlei e não quis me acompanhar.
Por favor, não me dê lição de moral.
-Com essa mudança de atividade todo ano nem ela aguenta! Espero não te ver desistindo dessa merda como todas as outras vezes.
A porta do elevador se abre e caminhamos em silêncio até a porta do nosso apartamento. Não queria perder mais tempo e paciência discutindo com ela. Do lado de dentro, Susie segurava um bloco cor de rosa e se preparava para acertar a televisão, mas Laila, nossa babá e empregada, tentava impedir a tragédia. Acho que entendi porque mamãe se estressa tanto.
-Senhorita Miller, eu já ia arrumar tudo. É que Susie acordou e tive que parar...
-Tudo bem Laila. Não se preocupe- Minha mãe troca rapidamente o tênis por pantufas confortáveis- Só preciso voltar a trabalhar. Saya ajude Laila com sua irmã.
-Saya!- Minha irmã grita assim que Laila solta seu pulso. Minha cópia, de acordo com os outros, pula em meu colo e passa os bracinhos pelo meu pescoço. O cheiro de seu shampoo infantil invadem minhas narinas- Você voltou!
-Voltei, pequena. Quer ir para o meu quarto assistir seu desenho favorito? Está na hora.
-Sim!
O quarto de Susie é o único na casa que não que possui televisão. A ideia inicial dos meus pais era criar uma criança longe das telas para que aproveitasse a infância com brinquedos, mas após a separação as coisas desandaram. Apesar de termos uma empregada para limpar e supervisionar Susie, ela não tem tempo para enchê-la de atividades a todo o momento e mamãe precisava de silêncio para trabalhar, então as telas ficaram mais frequentes.
Como irmã mais velha, adotei a responsabilidade de controlar o que Susie vê na televisão. Estando no meu quarto era mais fácil para que eu a supervisionasse enquanto fazia as tarefas da escola.
-Ei, Saya! Você pode escovar meus cabelos?- Pergunta Susie ficando de pé na cama. Ela dava pulinhos animados enquanto segurava o controle em uma mão e a escova na outra. Algo em seu sorriso limpa meu estresse.
-Claro.
Nos aconchegamos na cama de solteiro. Eu encostada à cabeceira, enquanto Susie estava deitada em meu colo. Seus fios compridos cobrindo minhas pernas. Ligo a televisão deixando em um volume que não atrapalhe minha mãe. Acho que se uma mosca pousasse em seu ombro, ela explodiria.
Começo a pentear os longos cabelos da minha irmãzinha. Eles possuíam o mesmo tom da minha mãe e dos meus embaixo da tinta. Era uma cor realmente bonita, mas a cor do mar sempre me chamou atenção. Não podemos ir à praia com frequência, então porque não trazer o mar até mim? A tinta azul cumpriu bem seu papel
As ondas de Susie escorriam pelas minhas pernas. Eles eram perfeitos e sem o frizz que temos que lidar todos os dias. Me perco naquelas curvas como se fossem realmente o mar calmo da manhã. Algo nelas me fazem lembrar o cabelo de Emma. As ondas delicadas e cortadas cuidadosamente para que se encaixem no corte. Aquele cabelo realmente lhe cabia bem. Não consigo entender porque as pessoas a julgam tanto sendo que Emma era uma garota adorável. Talvez fosse inveja.
Ou talvez ela seja só mais uma esquisita como Matias diz.
- Em quem você está pensando?- Pergunta Susie erguendo a cabeça no meu colo. Suas perninhas balançavam de um lado para o outro. O sorriso banguela aparecendo entre os lábios.
-Em ninguém- Percebo que havia me perdido nas ondas do cabelo de Emma e parado de pentear os da minha irmã- Só estava descansando a mão.
-Sei. Você está apaixonada por quem?- A cada dia que se passa essa criança me surpreende mais. Ela obviamente não estava certa. Mas uma criança de sete anos não deveria falar dessas coisas.
-Por ninguém Susie. Não posso mais descansar?
-Seus olhos estavam de um jeito diferente. Do jeito de quem está apaixonada.
-E como você sabe que olhos pertencem a um apaixonado?
-Porque eles brilham mais do que um farol no meio do mar.
As palavras dela me tocam de uma forma estranha. Dessa vez ela estava certa. Eu nunca me apaixonei de verdade. Apenas tive algumas obsessões durante a vida por garotos bobos. Mas como uma criança poderia dizer algo tão poético? A inteligência desses pequenos seres está me deixando cada vez mais surpresa. Talvez essa geração realmente seja mais avançada, ou talvez...
-Você encontrou meu diário?- Um sorriso bobo surge em seu rosto expondo o buraco entre dois dentes.
-Eu? Não.
Uma gargalhada gostosa preenche o ar. Como eu poderia ficar brava com um ser que gargalha tão deliciosamente. A fim de manter esse sentimento por mais tempo, começo a fazer cócegas em suas axilas. Ela ri alto e se contorce sobre meus dedos rápidos. Quando percebo, estamos no chão com Susie tentando se livrar das minhas garras enquanto eu a prendo no chão.
-Meninas!- A porta se abre brutamente e o olhar irritado da nossa mãe nos repreende- Eu estou trabalhando. Silêncio!
E então se fecha.
O sorriso de Susie é rapidamente substituído por um bico. Ela se levanta e rasteja de volta para cama, mas eu a cutuco e faço um sinal de silêncio. Volto a lhe fazer cócegas, mas agora tínhamos que fazer isso escondido.
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