4 - O JANTAR
"Ela viverá em meio a verdade e mentiras, mas será sabia para discernir aqueles que desejam o seu bem ou o seu mal".
—Fragmentos dos Registros Druidas, 533 d. C.
Nunca fui uma pessoa adepta a ingerir bebida alcoólica com frequência, pois as raras vezes em que deixei o álcool tomar conta do meu organismo, sempre tive que lidar com duras consequências no dia seguinte. Por isso, ao longo das rodas da vida, fiz questão de evitar o álcool, a fim de me resguardar de possíveis constrangimentos e prováveis desgostos.
Todavia, no outro dia após o banquete em Valhalla, por culpa de minha negligência ao ingerir demasiado hidromel, deparei-me com infeliz surpresa de ter acordado ao lado de Loki e todos os perigos que o envolviam.
Naquela manhã, a primeira sensação da qual tomei conta, foi a estranha sensação de havia um corpo quente colado ao meu. Também percebi que braços fortes me envolviam e me abrigavam confortavelmente. Não foi necessário encontrar o rosto do indivíduo que compartilhava aquela cama, pois tinha certeza de que se tratava de um único ser: o deus da mentira. Portanto, de súbito, tentei, em vão, sair dos braços de Loki, sem que ele percebesse minha intenção e despertasse. Enquanto tentava executar aquela ação, minha mente me punia severamente por eu ter sido uma completa tola que permitiu a ser tomada pelo álcool.
— Hum... — Loki resmungou com uma voz rouca — Vai a algum lugar, Coração de Gelo? — Enfiou o nariz em minha nuca, intensificando seu aperto sobre mim.
— Sim, vou me levantar! — disparei, entredentes, tentando me desvencilhar do braço que ainda me prendia.
— Ah! Mas estamos tão confortáveis! — Depositou um beijo suave em meu pescoço.
— Loki! — exclamei em tom de advertência — E u quero que me solte! — ordenei, furiosa, tentando não piorar aquela desastrosa situação.
— Tudo bem, querida. Melhor não iniciarmos uma briga pela manhã. — concordou, para meu espanto, completamente resignado.
Assim que fui capaz de me livrar dos braços deus, tratei de sair da cama com extrema urgência. Desejava apenas me trancar no conforto do meu quarto e esquecer de todas as tolices que eu tinha realizado na noite anterior.
— Maldição! — praguejei, ao notar que trajava apenas com uma comprida camisa branca que pertencia ao Loki.
— Algo errado, querida? — Loki, como sempre, abriu os lábios ostentando seu maldito sorriso malicioso.
— O que aconteceu ontem? — indaguei, receosa, embora não tivesse a certeza se realmente desejava ouvir a resposta.
— Não se lembra de nada? — Prosseguiu sorrindo do jeito que eu tanto detestava.
— Se eu me lembrasse não estaria perguntando! — Revirei os olhos.
— Hummm... Tantas coisas aconteceram ontem... Algumas boas, já outras... — Mordeu o lábio inferior antes de completar: — Deliciosas!
Bufei irritada. Loki realmente conseguia me tirar do sério.
— Se vai ficar fazendo todo esse tremendo mistério para dizer o que ocorreu ontem, prefiro partir sem saber o que ocorreu. Minha cabeça está a ponto de explodir e parece que meu estômago está dando voltas dentro de mim. Portanto, fique aqui com todos os seus segredos. Estou farta de você! — bradei, impaciente, já caminhando rumo a porta do quarto, que por sinal, não era o meu.
— E pretende sair assim? — Apontou para minha veste um tanto indecente.
— Sim! Sua camisa cobre mais do meu corpo do que o vestido me trouxera ontem à noite. — Balancei os ombros com indiferença e voltei a caminhar rumo à saída.
Estava quase alcançando meu destino, quando Loki, rapidamente, levantou-se e bloqueou minha passagem.
— Não vai sair do quarto desse jeito. — Olhou-me de baixo para cima e perdurou o olhar em minhas coxas.
Sorri escandalosamente, evidenciando a malicia que se expressava em minha mente.
— Visto qualquer roupa que seja do seu agrado... se me contar sobre a noite passada. — Cruzei os braços abaixo do peito.
O deus semicerrou os olhos e fitou-me por um longo momento, antes de falar:
— Você não teria coragem de sair daqui trajando apenas minha camisa. Vai ter de percorrer um bom caminho até seus aposentos e posso lhe garantir que vais se deparar com várias pessoas até chegar ao seu destino. Tenho certeza de que elas deduzirão que passou a noite comigo, como uma amante, delirando de prazer. — argumentou, com astucia, encarando-me de modo desafiador.
— Estas me dizendo que não fizemos nada? — perguntei, sugestivamente.
Loki riu alto. Um riso rouco, gostoso de ouvir.
— Boa tentativa, Coração de Gelo! Porém, deixarei que remoa essa dúvida. — Abriu caminho para que eu pudesse passar pela porta — Se tiver coragem o suficiente para sair daqui parecendo uma meretriz, então está livre para seguir seu caminho. — Um leve sorriso tomou conta de seus lábios, indicando que ele não acreditava em minha determinação.
— Ah Loki! De fato, você realmente não me conhece. — Dito tais palavras, eu passei pela porta sem nem olhar para trás.
Assim como o deus havia mencionado, conforme eu percorri pelos infinitos corredores do palácio, as pessoas as quais encontrei pelo caminho me olhavam de esguelha, cochichando entre elas a medida em que eu caminhava descalça, trajando apenas a camisa de Loki que mal cobria as minhas pernas. Porém, não me importei com o que pensavam a meu respeito, não devia nada a aquela gente e nem ao menos pertencia àquele povo. Portanto, segui segura e sorridente pelos corredores do palácio até chegar ao meu quarto.
Ao adentrar no refúgio de meus aposentos, eu mal tive tempo de me enfiar embaixo dos lençóis, quando uma das criadas pediu permissão para entrar.
— Desculpe incomodar, senhora. Contudo, Odin solicitou a sua presença no almoço. — disse, ela, em um tom de voz baixo, porém seguro.
— Peço a gentileza que informe a seu senhor que me encontro indisposta para tal refeição, por conta de que abusei do hidromel na noite anterior. — Inventei uma desculpa qualquer e cobri o meu rosto com o lençol.
— Não desejo me intrometer em seus assuntos, no entanto devo lhe avisar que não é prudente recusar o pedido do Deus Supremo. — advertiu, a jovem, um tanto receosa.
Baixei o lençol e soltei uma bufada.
— Então diga que terei o grande prazer de me juntar a ele no jantar. E se o grande Odin não aceitar minha decisão... Bem, será necessário que ele próprio venha ao meu encontro, pois terei o prazer em lhe explicar, pessoalmente, o motivo de minha recusa. — Virei-me de costas para a moça, a fim de encerrar a conversa.
— Como quiser, milady. — confirmou, completamente submissa, e retirou-se do quarto.
Creio que o deus supremo aceitou de bom grado minha recusa, pois ninguém voltou invadir meus aposentos em busca de qualquer informação. Dessa forma, consegui dormir durante toda tarde e só despertei no final do dia com a visita de Acme. Infelizmente, a jovem veio ao meu encontro, e com muito custo, incitou-me a levantar sob o argumento de que eu deveria me preparar para o tal jantar.
— Erieanna! Levante! Você precisa se arrumar! — exclamou, Acme, puxando o lençol que me cobria.
— Eu realmente tenho que ir? — resmunguei, ainda sonolenta.
— Você confirmou sua presença. Sua palavra não vale de nada? — Cruzou os braços, batendo os pés no chão indicado sua impaciência.
— Argh! Estou indo! — Bufei, saindo da cama.
— Já prepararam seu banho. — informou, secamente.
Revirei os olhos evidenciando minha extrema irritação, mas parti rumo a banheira e rapidamente me limpei.
Ao retornar, notei que Acme já havia escolhido o traje que eu deveria vestir naquele enfadonho jantar. Sendo assim, sem dizer nada, caminhei até a cama, peguei o vestido branco e o coloquei em meu corpo. Ainda em silêncio, minha amiga me auxiliou a prender os adereços que os mantinham fechados, e depois, com muita delicadeza começou a arrumar os meus cabelos.
— Acme... Você pode me contar o que houve na noite anterior?
Seus olhos verdes encontraram os meus através do espelho.
— Não se lembra de nada? — Arqueou uma de suas perfeitas sobrancelhas loiras.
— Não tenho lembrança alguma após ter começado a ingerir as infinitas canecas de Hidromel. — Torci os lábios, completamente arrependida de meus atos.
— Infelizmente, minha amiga, eu não permaneci no banquete por muito tempo, pois Thor não tem paciência com tais celebrações. Mas enquanto estive presente, vi que estava bebendo e rindo muito com algumas mulheres. Notei também, que o cobiçado Balder, filho de Odin, não tirava os olhos de ti. — Abriu um largo sorriso — Parece que o deus mais belo de Asgard ficou perdidamente enfeitiçado por você! — A empolgação se tornou evidente ao relatar aquela constatação — A última lembrança que tenho antes de partir, remete ao fato de que se recusou dançar com Loki, porém aceitou o convite de Balder. Tal ação deixou o deus da trapaça profundamente irritado. Então, Thor pediu para que fossemos embora antes que a situação ficasse descontrolada. — Acme finalizou meu cabelo e segurou seu olhar junto ao meu — Estou certa de que nada fugiu do controle, querida, pois não ouvi nenhum comentário relacionado a qualquer caos durante o restante da noite. E acredite em mim, se algo incomum tivesse acontecido, eu saberia, pois todos nesse palácio são exímios fuxiqueiros.
— Eu só queria saber como fui parar na cama de Loki vestindo nada a mais que sua camisa. — resmunguei, soltando um longo suspiro.
— Como assim? — perguntou, Acme, arregalando seus brilhantes olhos verdes.
— Se eu soubesse como isso foi acontecer, eu lhe contaria. No entanto, estou tão no escuro quanto a você, minha querida. — Levantei-me e alisei o vestido em meu corpo. — Irá ao jantar?
— Infelizmente não. Eu e Thor ocupamos a maior parte do tempo elaborando estratégias para que eu consiga vencer os desafios e conquistar a imortalidade. Por isso, terei de te deixar sozinha essa noite. — Ela realmente parecia chateada em não poder me acompanhar.
— Desafios? — Franzi o cenho, confusa.
— Essa é uma longa história... História que não tenho tempo de lhe explicar agora. Entretanto, prometo que em breve a colocarei pôr dentro do caos que abrange a minha existência. Por ora deves se divertir. Aproveite Asgard, antes que ela te devore. — Seus lábios se curvaram um fraco sorriso.
— Tudo bem. Leve o tempo que precisar, estarei aqui, pronta para te ouvir quando decidir que deves dividir sua história comigo. — declarei, com toda sinceridade, já que, embora estivesse intrigada com tal informação, esperaria que Acme me contasse sobre sua vida quando se sentisse à vontade e segura a respeito da nossa relação.
— Sabe chegar ao salão de jantar?
— Creio que sim. Se eu me perder, peço informação. Mais uma vez, agradeço por sua ajuda, Acme. — expressei meus sinceros agradecimentos, porque ela realmente estava me ajudando muito além do que eu poderia esperar.
— Disponha. — Sorriu antes caminhar até a porta. — Tente não se meter em confusão essa noite, Erieanna. — Detectei o tom provocação em sua voz, então ela soltou um riso travesso e partiu.
Olhei mais uma vez para meu reflexo no espelho e ajeitei meu vestido. Após realizar os ajustes finais, suspirei profundamente e decidi ir para o jantar com Odin. Não estava nem um pouco animada com ideia de jantar com o Deus Supremo e sua prole, entretanto não tinha opção de recusa.
Sentindo-me momentaneamente indefesa, deixei a segurança de meus aposentos e caminhei pelos enormes corredores do palácio de Asgard, tentando encontrar o tal salão onde eram realizados o jantar. Quando estava no meio do caminho rumo ao meu destino, tive o desprazer de me deparar com Loki, que como de costume, sorriu ao me ver.
— Estava indo ao seu encontro. — Sua voz estava carregada de bom humor.
Revirei os olhos e o ignorei.
Prossegui meu caminho e optei por não conceder qualquer atenção ao deus que seguia ao meu encalço, chamando por meu nome. No entanto, por mais que meus passos fossem rápidos e precisos, Loki com suas passadas largas, não demorou a me alcançar.
— Vejo que está irritada!
Continuei a ignorá-lo. Loki não merecia minha atenção; não depois do que fizera na noite passada. Dessa forma, apenas percorremos um longo caminho sem trocar nenhuma palavra.
— Curou-se da ressaca? — indagou, ao virarmos outro corredor.
Novamente não respondi seu questionamento, nem ao menos desviei meu olhar para em sua direção, à medida que eu segui meu caminho fingindo que ele não existia.
Estávamos prestes a chegar no salão do jantar, quando o deus soltou um suspiro exasperado, segurou meus braços e fez com que eu o olhasse.
— Até quando vai ficar me ignorando? — inquiriu, demasiado irritado.
— Até que me diga o que ocorreu na noite anterior. — Empinei o nariz desafiando-o.
Ele me encarou por um bom tempo.
— E qual é a garantia de que te falarei a verdade? Esqueceu-se que eu sou o deus da mentira, querida? — Fez questão de exibir aquele maldito sorriso malicioso que eu tanto detestava.
— Então vai ter de se esforçar para que eu acredite em você, caso contrário, terei a eternidade para continuar a ignorá-lo. — Desvencilhei meus braços de suas mãos — Pense bem nisso. — Tornei a percorrer o trajeto até o salão sem ao menos olhar para trás.
Ao chegar no meu destino, fui recebida por umas das criadas que me guiou até a mesa em que o jantar seria servido. Loki seguiu atrás de mim, e para o meu alívio, fez questão de colocar uma distância considerável entre nós.
Como tudo em Asgard, o salão de jantar era magnífico. O chão em que pisávamos era tão reluzente ao ponto de projetar meu reflexo em suas cintilantes pedras negras. Havia muito ouro em toda a decoração, somente naquele cômodo, existia riqueza o suficiente para matar a fome de milhares de pessoas. Ao me dar conta daquele fato, senti meu estômago revirar, percebendo, mais uma vez, quão os deuses eram egoístas.
Respirei fundo, forcei minha mente a ignorar aquele fato, e tornei a caminhar entre o salão, onde bem ao centro, havia uma grande mesa que era capaz de abrigar mais de uma dúzia de pessoas. O lustroso móvel de madeira ornamentada estava repleto dos mais variados tipos de comidas. Refeição que seria desperdiçada, pois apenas três indivíduos ocupavam confortavelmente os lugares na mesa, aguardando o jantar a ser servido.
— Erieanna! Que bom que veio! — exclamou, Odin, animado, ao perceber que eu me aproximava da mesa.
— Estou cumprindo com minha palavra. — Forcei um sorriso — Boa noite, Frigga. — Cumprimentei a bela ruiva de resplandecentes olhos azuis que era conhecida como a esposa de Odin.
— Boa noite, Erieanna, fico feliz que tenha se juntado a nós. — disse a mulher, claramente animada.
Então um dos homens mais lindos que já tinha visto, levantou-se da cadeira a qual se sentava, caminhou até a mim e plantou um beijo demorado no dorso da minha mão.
— É bom te ver novamente. — Abriu um largo sorriso que evidenciou seus dentes perfeitamente alinhados.
Ele era diferente dos demais deuses, seu negro cabelo ondulado estava bem aparado em um corte curto. Seus olhos não tinham uma cor definida, pois mesclavam-se entre o verde escuro e o mais profundo azul. Diferente dos demais homens, não havia barba cobrindo a sua face, por isso seus traços fortes e bem delineados lhe conferiam uma beleza única e estonteante.
— Ah Balder! Deixe de ser tão galanteador, isso não vai funcionar com ela. — Loki resmungou, antes que eu pudesse cumprimentar o belo deus.
Então aquele era o cobiçado Balder. Pensei, comprovando que Acme tinha razão ao afirmar que ele se tratava de um belo espécime.
— Venham, juntem-se a nós. Estávamos vos esperando para iniciar o jantar. — pediu, Odin, segurando uma grande caneca de cerveja nas mãos.
Ambos atendemos ao seu pedido. Loki, contudo, tentou me guiar para o assento ao seu lado, porém fiz questão de ocupar o assento ao lado de Balder. Fiquei, portanto, de frente para o deus da mentira que nem tentou disfarçar seu desgosto ao evidenciar que eu não apreciava sua companhia.
— Quer cerveja? — Odin perguntou.
— Vou recusar. Extrapolei na bebida na noite passada e hoje mal posso pensar em algo que contenha álcool, que já sinto meu estômago embrulhar dentro de mim. — expliquei, de forma descontraída, fazendo a todos rir, menos Loki que continuou emburrado.
— Eu disse para ir com calma. — Balder inclinou-se para falar próximo ao meu ouvido.
— É uma pena, meu caro, mas ela não se recorda absolutamente de nada do que ocorreu na noite passada. — Loki, mais uma vez, tomou a frente da conversa impedindo que eu dialogasse com Balder.
Sei que estava querendo chamar minha atenção. Entretanto, fiz questão de ignorá-lo, embora estivesse com uma tremenda vontade de fuzilá-lo com o olhar.
— Sério que não se recorda de nada? — indagou, Balder, incrédulo.
— Infelizmente não. Eu raramente bebo, por essa razão, posso afirmar que meu corpo não estava preparado para receber tanto álcool. — Lamentei, torcendo o nariz.
— Não se preocupe, Erieanna, isso acontece com todos. — assegurou, Odin, em meio a um sorriso. — Uma vez, durante esses banquetes, exagerei na bebida e quando acordei no outro dia, além de não me recordar de nada do que havia ocorrido, também estava sem cabelos. Quase caí de costas ao me deparar com meu reflexo no espelho. — Gargalhou ao recordar da embaraçosa situação.
— Você mereceu que eu podasse todo seu cabelo. — afirmou, Frigga, rindo — Eu lhe avisei que devia parar de beber, mas como sempre, meu querido, você fez questão de não me ouvir. Teve sua punição. — Deu de ombros e voltou a degustar de sua taça de vinho.
— Fiquem com esse sábio conselho, meus companheiros: Nunca deixe uma mulher zangada. — confidenciou, Odin, como se estivesse compartilhando uma informação valiosa.
Todos caíram no riso, inclusive eu que, embora não gostasse de piadas, não pude evitar a ser contagiada por aquela que carregava tantas verdades.
O jantar, então, fora iniciado. Percebi que na mesa havia muita carne de caça, batatas e verduras. Eu ainda não estava habituada com toda fartura de Asgard e me sentia mal toda vez que fazia as refeições, pois sabia que no mundo dos humanos, havia muita gente passando fome. Evidenciar constantemente tal situação, fazia com que, cada vez mais, eu detestasse o os deuses que pouco se importavam com seus fiéis.
Estávamos no meio da refeição, quando a porta se abriu de repente, concedendo a passagem para uma linda mulher que caminhou a passos firmes e seguros até a mesa em que estávamos reunidos.
A loira de uma beleza invejável trajava um belo vestido branco, cujas mangas curtas ostentavam um corte reto que ligavam seus ombros magros. O bordado cor de chumbo de sua veste acentuava a tonalidade de seus olhos azuis acidentados. Os fios dourados de seus cabelos estavam presos numa trança complexa que carregava um adorno de pedrarias. Seu rosto era marcado por um nariz reto e uma boca carnuda que lhe conferiam um ar sedutor. Ela era a mulher mais bela que meus olhos já viram. Quando chegou mais perto e ocupou o assento ao lado de Loki, notei que tinha algumas sardas ao redor do nariz que serviam para realçar magnífica beleza. Ela era tão sedutora, quanto esplendorosamente linda.
— Freya! Que bom que se juntou a nós. — Odin realmente parecia feliz com a vista daquela que, obviamente, era conhecida por ser a deusa da sedução.
Eu já devia saber que a bela mulher se tratava de Freya: deusa do sexo e da sensualidade, fertilidade, do amor da beleza, da atracação e da luxúria. As histórias narradas sobre tal deusa, faziam jus a todos seus atributos.
— As notícias correm, meu amigo. Estava curiosa para conhecer a humana que te desafiou durante o banquete em Valhalla. — Encheu a caneca de cerveja.
— Sendo assim, devo fazer as devidas apresentações. — disparou, Odin — Essa é a destemida Erieanna a quem eu tenho o prazer de abrigar em meu teto. — Ele apontou o dedo em minha direção e eu acenei levemente a cabeça para Freya — Erieanna, está é Freya, deusa mãe dos Vanir que atualmente reside em Asgard. Além dos inúmeros atributos dos quais deve ter conhecimento, ela também lidera as Valquírias e recolhe os guerreiros mortos em combate. Ambos dividimos os mortos: uma parte vai para Valhalla e outra segue com Freya para Sessrumnir. Por isso não pode conhecê-la na noite passada, uma vez que, Freya também se banqueteava com seus guerreiros. — explicou resumidamente.
A bela deusa sorriu para mim. Mas embora seu sorriso fosse amigável, não gostei do que vi em seus olhos. Algo no modo como me olhou, fez com que eu ficasse receosa quanto as verdadeiras intenções da deusa da sedução em relação mim.
Voltamos a nossa refeição que deveria seguir com tranquilidade, todavia o não foi o que aconteceu. Descobri que deuses podem ser demasiados ardilosos quando querem.
— Gostou de Valhalla? — Freya perguntou, levando um pedaço de carne a boca.
— Ah, minha querida, ela não se lembra de nada, porque exagerou no hidromel. — Loki zombou, provocando-me novamente.
— E você permitiu que seu sacrifício se embriagasse? — repreendeu, Freya, em tom puramente irônico.
Apertei os talheres com força tentando controlar a raiva que me atingiu.
Balder deve ter percebido meus dedos esbranquiçados entorno da faca, pois logo acrescentou:
— Como Loki foi negligente, eu tive o grande prazer de cuidar da Erieanna, que a propósito prefere ser chamada pelo nome e não por "sacrifício". — Ele encarou Freya com seriedade.
— Oh! Perdoe-me se te ofendi. — desculpou-se, a deusa, porém não acreditei nem um pouco em sua sinceridade.
— Não me ofendi. Todos sabem que sou o sacrifício de Loki. Entretanto, não pertenço a ele. Ainda que o sacrifício tenha sido em seu nome, estou certa de que tenho minhas próprias escolhas. Portanto, sou a única a governar meu destino, sou livre para me embriagar quando eu bem quiser. — Sem qualquer receio, encarei-a com determinação.
Não foi preciso olhar na direção de Loki para saber que ele estava furioso com tudo que eu havia dito.
— Fiquei sabendo que possui dons. Por acaso é algum tipo de semideusa? — Frigga rapidamente indagou, com o intuito de mudar de assunto, tentando apaziguar a tensão que começava a se instalar no salão.
— Não. Sou filha de um druida que são uma espécie de feiticeiros. Nosso poder vem da Natureza, fomos escolhidos por ela para ter a honra de manipular tudo que nos permita controlar: água, fogo, ar, terra, folhas, mutação... Enfim, alguns dizem que tal poder vem da deusa Mãe, a soberana na cultura Celta. Eu prefiro acreditar que seja apenas uma ordem natural, não gosto de pensar que tenho ligação com qualquer deus. — expliquei, sem muita reserva.
— Não gosta de deuses, contudo, nesse exato momento, está cercada por eles. Meio irônico não acha? — Freya, mais uma vez, esforçou-se em me provocar.
— Devo concordar com seu ponto de vista. Mas podes ficar tranquila, já aprendi a lidar com as ironias do destino. Talvez um dia até possa agradecer ao Loki por me trazer para Asgard. São inúmeras as possibilidades que minha nova morada pode me reservar, quem sabe o que me espera aqui. — Exibi um sorriso de canto que acentuou minha provocação. Pelo pouco que observei na noite, tinha certeza de que de que ela nutria grande interesse no deus da mentira.
— Espero que uma das possibilidades seja a de que aceite ir a um passeio comigo amanhã. — disse, Balder, sugestivamente.
Lancei um largo sorriso para o deus. Eu não queria ir a lugar algum com ele, no entanto aceitaria o convite só para irritar o Loki.
— Será um prazer ter sua companhia. — Forcei uma doçura em meu tom de voz.
— Melhor evitar a lhe oferecer bebidas alcoólicas. Ela tem o hábito de acordar parcialmente nua na cama de homens e fingir que não se recorda de nada no dia seguinte. — O maldito deus da mentira me dedurou sem nenhum pudor. Ah como eu o odiava!
Mantive uma expressão neutra em minha face, deixando claro que não me abalei com as malditas palavras que saíram dos lábios de Loki.
— Agora entendi o porquê é conhecido por ser o deus da mentira. Você realmente tem o dom de transformar calúnias em possíveis verdades. Estou impressionada! — exclamei, fingindo falsa admiração.
Notei uma leve vermelhidão tomar conta da face de Loki. De qualquer forma, eu decidi ignorá-lo e tornei a olhar para o belo deus ao meu lado.
— De qualquer forma, Balder, é melhor que eu evite a bebida, meu estômago ainda embrulha só de pensar em álcool. — Bati os cílios para o deus, o que fez com que seus olhos brilhassem de empolgação.
— Sem bebidas. Eu prometo. — Depositou sua mão sobre a minha, apertando-a com suavidade.
Odin e sua esposa nos fitavam intrigados. Loki, contudo, revirou os olhos e fechou a cara ao nos observar. Já Freya, parecia estar tão irritada quanto o deus que se sentava ao lado.
O resto da noite seguiu um padrão desgastante: Loki tentava a todo custo chamar minha atenção. Freya desprendia seus esforços tentando fazer com que Loki a notasse e eu concentrei quase toda minha atenção a Balder, mantendo o propósito de provocar o linguarudo deus da mentira.
Odin e sua esposa foram os primeiros a se despedir e partir. Peguei a deixa das divindades e também encerrei o jantar. Balder, muito atencioso, pediu para me levar até meus aposentos e eu, obviamente, aceitei.
Deixamos Loki e Freya sozinhos. Os dois se mereciam e eu pouco me importava se ambos resolvessem se atracar sobre à mesa e literalmente, devorarem um ao outro. Na verdade, até queria que a deusa do sexo o prendesse em sua teia, pois assim finalmente ficaria livre de Loki e todo desastre que o acompanhava.
Ao chegar aos meus aposentos, Balder levou minhas mãos aos lábios, depositou um beijo cálido e prometeu:
— Virei te buscar na parte da tarde para nosso passeio. — Seus olhos brilharam em antecipação aquele momento.
Só então me dei conta da enrascada a qual me enfiei. Não queria de modo algum ir ao passeio com o deus. Mas não tinha ideia de como voltar atrás e recusar o convite. Sem outra escolha, esbocei um fraco sorriso e falei:
— Até amanhã. — Rapidamente adentrei no meu quarto e fechei a porta atrás de mim.
Não tardei a cair no sono. Aquele jantar, aliado com o resquício de ressaca que ainda habitava em meu corpo, havia me deixado destruída. Por isso, assim que depositei o meu corpo sobre a cama, o cansaço bateu forte e eu apaguei por completo.
***
Não fiz ideia de quanto tempo dormi, ou se ainda era noite ou dia. Apenas recordo-me de ter acordado, assustada, com mãos balançando meus ombros. Achei que alguém estava me atacando, por isso imediatamente peguei a adaga que guardava sob o travesseiro e lancei contra a garganta do invasor.
— Calma, Erieanna! Sou eu! — Loki exclamou, apavorado.
— Merda! O que está fazendo aqui? — rosnei, tirando a lâmina afiada de seu pescoço.
— Quero falar contigo. — Havia uma leve insegurança em sua voz.
— Vá embora, Loki. Não temos nada a tratar. — resmunguei, tornado a me deitar virada de costas para ele.
Loki, no entanto, não partiu. Apenas soltou um longo suspiro, ficou calado por um instante e depois finalmente soltou:
— Até quando vai me tratar com essa indiferença? — Havia um leve indício de melancolia em sua voz.
— Eu já disse... Até me dizer o que de fato aconteceu durante e depois de Valhalla.
— Por que isso é tão importante? Não entendo! — exclamou, exasperado.
Fiquei um momento em silêncio, ponderando se o respondia ou não. Contudo, achei que ele deveria saber a verdade por detrás das minhas razões.
— Porque eu acordei na sua cama, vestindo apenas sua camisa e não tenho a menor ideia se lhe concedi que se apossasse de mim. Já fui estuprada, Loki, e se também fez isso comigo, se me tomou sem meu consentimento, espero, no mínimo, que tenha a decência de admitir. — Tentei não aparentar o quanto estava abalada por revelar a minha insegurança.
Loki virou meu corpo fazendo com que eu ficasse de frente para ele. Depois, deitou-se ao meu lado, segurando meu rosto em suas mãos, de forma delicada, e segurou o olhar no meu.
— Jamais faria isso contigo. Prefiro que crave uma adaga no meu coração e me mate, a ter que lhe infringir esse tipo de dor. Pode não parecer, mas eu realmente me importo contigo, Coração de Gelo. Importo-me de verdade. — Beijou minha testa de forma carinhosa.
— Então me diga o que aconteceu, Loki. Essa incerteza está acabando comigo. — pedi, em meio a um sussurro.
— Não ocorreu nada de mais, querida. Você se divertiu, bebeu além da conta e eu fiquei irritado porque deu muita atenção para Balder. Quando começou querer duelar com alguns guerreiros, tive que te jogar em meus ombros e a levei para o meu aposento. Você gritou, esperneou e ameaçou a me incinerar até que não sobrasse nada de mim além de cinzas, mas como mal conseguia parar em pé, não foi capaz de se livrar de mim, tampouco cumprir suas ameaças. Depois ficou tonta, seu estômago reclamou e, portanto, vomitou no tapete do quarto. — Soltou um riso curto ao narrar a desastrosa cena — Seu vestido ficou cheio de vômito, logo, tive de lhe emprestar uma camisa, pois não poderia permitir que dormisse suja. Então, ajudei a se trocar, enquanto você resmungava que nunca mais voltaria a beber. Por fim, você se jogou na minha cama e apagou por completo. — Seus dedos traçaram suavemente o desenho do meu rosto. — O resto você já sabe. — Enrolou uma mecha do meu cabelo em suas mãos.
— Está mentindo? — questionei, desconfiada.
— Não! Se quiser posso te mostrar o tapete que estragou com seu mal-estar. — Sugeriu, sustentando um pequeno sorriso em seus lábios.
— Argh! — Enruguei o nariz numa expressão de nojo. — Eu acredito em você seu linguarudo. — Tirei suas mãos de mim e virei-me de costas.
— Desculpa por hoje. Eu fui um tremendo bastardo. — Pediu, inclinando-se sobre meu ombro.
— Foi mesmo! Agora pode ir embora! — ordenei, rispidamente.
— Nós estamos bem? — Ele não parecia seguro sobre nossa estranha relação. Nem mesmo eu estava. Tudo era tão confuso.
— Na medida do possível, sim. — Não fui capaz de esconder a indiferença e meu tom de voz.
— Ainda sairá com Balder amanhã? — Continuou a me incomodar com seus questionamentos desnecessários.
— Sim.
Mais uma vez, Loki virou meu corpo para que eu o olhasse.
— Erieanna, devo lhe alertar que está cometendo um grande engano quanto ao Balder. É de sua especialidade fazer com que as mulheres se sintam especiais, quando não passam apenas de uma diversão. Ela vai te usar e depois descartá-la como se fosse um nada absoluto. Não se iluda, querida, você é será somente mais um troféu na infinita lista de mulheres que Balder ostenta com muito orgulho. — Olhou-me com a seriedade de quem realmente estava tentando me alertar.
Gargalhei alto.
— Até parece que estou encantada com o belíssimo e cobiçado Balder. Não sou ingênua, Loki. Sei muito bem o que ele espera de mim e é provável tenhamos o mesmo objetivo. Talvez eu só queira alguém para aquecer minha cama. — declarei, sugestivamente.
— Eu posso aquecer sua cama se é isso que quer. — Percorreu a sua mão pela extensão do meu corpo e apertou minha nádega, juntando meu corpo colasse junto ao seu.
— Quero alguém que não seja você! — repeli, desvencilhando-me do seu toque.
Levantei-me da cama de modo a induzir que o deus fizesse o mesmo. Furioso, Loki caminhou até a mim.
— Sou tão repudiante assim, Erieanna? — Franziu o cenho ao centro da testa.
Por uma curta fração de tempo, fiquei com pena dele.
— Não! Você é só o deus mais egoísta de todos. Me pediu em sacrifício, apenas para me ter ao seu lado. Não é repudiante, porém é um hipócrita! — Acusei, indo até a porta — Vá embora Loki. — Apontei a saída do meu quarto. — Essa conversa não vai nos levar a lugar algum. — Meu tom de voz saiu baixo, pois já não tinha energia para lidar com o deus e seu egoísmo.
Ele rapidamente se aproximou de mim, encurtando a distância que havia entre nós.
'— Você não entende, Coração de Gelo! Eu te pedi em sacrifício para te salvar! — exclamou, indignado.
— Matar não me parece a forma correta de salvar alguém. Creio que nós temos uma visão diferente sobre o conceito de salvação. — Já não tinha mais paciência para prosseguir com aquela conversa desgastante.
O deus = olhou para o alto e soltou um longo suspiro.
— Um dia entenderá que meu único propósito foi o de te salvar. Um dia acreditará que és importante para mim.
Aquela foi sua última frase antes de sair do quarto sem sequer olhar para trás.
Cada dia que se seguia em Asgard, eu ficava mais confusa. Loki tinha a incrível capacidade de me tirar do eixo. Ora ele não passava de um grande babaca e logo depois pronunciava gentis palavras que me desarmavam por completo. Meu coração rugia dentro do meu ser implorando para que eu acreditasse em tudo que dizia, mas minha razão gritava o contrário. E como sempre fui sensata, ouvi a voz da razão, pois deduzi que era demasiada loucura acreditar no deus da mentira.
Eu precisava partir de Asgard antes que aquele lugar consumisse com toda minha sanidade. Como faria tal proeza? Esse era o maior de todos os mistérios.
(CAPÍTULO SEM REVISÃO)
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