14 - Segredos & Promessas
"Da forma mais difícil, ela aprenderá que os segredos sempre serão a maior fraqueza que se pode revelar".
—Fragmentos dos Registros Druidas, 533 d. C
O tempo que eu vivi junto aos vikings serviu parareafirmar dois fatos sobre mim: o primeiro está relacionado a minha força, oquanto descobri que sou forte para lidar com as dificuldades que sempre permearam meus caminhos; e o segundo é que, embora eu odiasse os nórdicos, parte de mim era viking. Eu lutava como uma viking e também tinha o temperamento rude e um tanto grosseiro de uma viking. Pouco havia de paciência em mim, por isso, ao chegar ao casebre da vidente, eu logo tratei de chutar a porta com força e ela se abriu revelando uma espécie de cozinha tão simples quanto a da casa em que eu morava em Midgard. No cômodo, havia somente uma mesa de madeira, um caldeirão que fervia algo que exalava um odor pútrido, além de um pequeno armário com vários vidros, na qual de imediato identifiquei como poções.
— Deveria ter girado a maçaneta. A porta estava aberta. — Escutei aquela voz que jamais seria capaz de esquecer; a voz que vez ou outra perturbava a tranquilidade de meus sonhos. Então, de um canto escuro atrás daquele cômodo pavoroso, saiu a velha que um dia eu tive o prazer de matar.
Os mesmos olhos negros sem pupilas me olhavam num misto de descrença e satisfação. Seu cabelo tão branco como a neve, continuava desgrenhado e indomáveis. Quando ela exibiu seus dentes afiados numa espécie de sorriso assustador, as rugas em volta de seus olhos se acentuaram.
— Você? Como ainda pode estar viva? — indaguei incrédula.
A velha gargalhou e seu riso tenebroso fez com que meus pelos se arrepiassem.
— Creio, minha querida Erieanna, que não veio até esse mundo para fazer essa pergunta. — Levou o indicador ao queixo e passou a unha pontiaguda pela extensão de seu maxilar. — Mas acredito que és a única que merece saber, pelo menos um pouco, sobre mim. — Diminuiu a distância que nos separava e segurou seus olhos sem vida nos meus.
Intensifiquei o aperto no cabo de minha espada e reforcei meu escudo mental para que ela não conseguisse adentrar em minha mente.
— Eu nasci com esse mundo. Sou tão antiga quanto essas terras gélidas em que pisa, e, portanto, sou o primeiro ser que existiu nesse universo. — Sua voz sobrenatural narrava a história com demasiada cautela. — Quando Niflheim se dividiu nos demais, uma parte de mim também se fragmentou junto aos oito mundos. Dessa forma, em cada reino da Yggdrasil, há uma de mim vivendo entre seus habitantes. Você, criança, matou a minha parte que existia em Midgard. Aquela fração da minha essência se foi, mas ainda existe, outras de mim pela Yggdrasil à fora, vagando pelos mundos, alimentando-se do caos. — Soltou uma gargalhada estridente que ecoou no ar.
— Então quer dizer que, se eu quiser te exterminar para sempre, eu devo matar todas as suas partes? — Especulei apenas para confirmar o que estava evidente.
— Estou certa de que já sabe a resposta, assim como também sei que não foram essas informações que veio buscar. — Esboçou o habitual sorriso malicioso. — Vamos começar a barganhar?
Soltei um suspiro pesado e ordenei meus pensamentos a ficarem claros para que eu pudesse extrair a informação que eu desejava.
— Tenho certeza, Vidente, de que sabe exatamente de que vim à procura de informações a respeito do primeiro teste da imortalidade que minha amiga Acme terá de enfrentar nesse mundo. — Fiz uma breve pausa ponderando se devia deixar que algumas palavras perigosas saíssem de meus lábios. Tentei, portanto, buscar outra alternativa para barganhar, no entanto fiquei de mãos atadas e tive de prosseguir: — Estou disposta a pagar o preço necessário por qualquer informação que possa auxiliar a minha amiga a vencer esse teste. — Trinquei o maxilar ao concluir a frase que com certeza me faria pagar um preço muito alto.
A velha inclinou a cabeça para o lado enquanto analisando-me.
— Parece que tens sua amiga em alto estima, o que me faz questionar: será que ela faria o mesmo por você? — Víbora como tal, a velha tentou plantar a semente da dúvida em mim.
— Se ela faria ou não, isso não me importa. Quando gosto de alguém sou capaz de mover mundos para garantir seu bem-estar. Não estou arriscando minha vida esperando que ela faça o mesmo por mim. Jamais seria amizade se eu não tentasse salvá-la pensado que, talvez, Acme jamais mova um dedo para lutar por mim. Eu sou fiel para com aqueles a quem eu amo. — Estufei o peito deixando claro que tinha orgulho de minha índole.
Um sorriso debochado surgiu nos lábios da velha.
— Tenho a informação que precisa... — Semicerrou os estranhos olhos e deixou que um leve e maldoso sorrio de canto tomasse conta de seus finos lábios. — Posso lhe transmitir, se me contar o seu segredo mais íntimo; aquele que esconde até de si mesma. — Exibiu seus dentes afiados num sorriso assustador. — Esse é o preço. — Concluiu com uma pausa dramática.
Qual seria o meu maior segredo? Pensei, tentando encontrar um jeito de não me expor por completo e ainda assim obter a informação que eu desejava.
Comecei a andar de um lado para outro, buscando em minha mente o segredo que escondia até de mim. Eu precisava ser rápida, pois Loki estava só, no meio daquelas feras. Pela sua sobrevivência era necessário que eu não demorasse junto a vidente.
Interrompi os passos e voltei meu olhar para a face da velha.
— Meu maior segredo é que eu culpo meu pai por todo mal que aconteceu comigo e por isso eu jamais irei perdoá-lo. — Suspirei profundamente ao expor aquilo para criatura que eu desprezava.
Um riso de escárnio escapou de seus lábios.
— Esse não é seu maior segredo. Até seu pai, onde quer que esteja, sabe de seus sentimentos por ele. — Cruzou os braços abaixo do peito. — Concederei a você apenas mais uma chance. E não se esqueça... Saberei se estiver mentindo. — alertou pausadamente.
Qual era o segredo que eu escondia até de mim? Não fazia ideia do que a vidente esperava que eu revelasse, mas sabia que assim que lhe desse a informação que ela ansiava, eu estaria para sempre em suas ardilosas mãos. Meu maior segredo, com certeza seria a minha maior fraqueza. E quando me dei conta de tal constatação, soube exatamente o que teria de revelar.
Um caroço se formou em minha garganta, pois as palavras eram fortes demais e lutavam para permanecer guardadas a salvo dentro de mim. Meus olhos lacrimejaram. Cerrei os punhos com tanta força, que minhas unhas cortaram a pele da palma da minha mão.
— Eu estou apaixonada por Loki. — As palavras saíram tão ásperas que arranharam minha garganta. — Jamais tive a intenção de nutrir tal sentimento dentro de mim, entretanto, já não consigo negar que, infelizmente, eu me apaixonei pelo deus da mentira. — confessei meus sentimentos pela primeira vez. Aquele era, de fato, o meu maior e mais temido segredo.
Só então me dei conta de que, embora tenha me esforçado em odiar Loki, tudo que na verdade eu sentia por ele era uma paixão que me deixava com medo. Não me importava se ele partisse meu coração, ao contrário, temia ficar presa a ele e esquecer que meu lugar não era ao seu lado.
— Muito bem criança. Você disse a verdade e agora está presa a mim. Seu maior segredo é o laço que nos une. A partir de hoje, Erieanna, tenho você em minhas mãos. — Gargalhou alto, demonstrando a satisfação em ter algo que possa usar contra mim.
— Eu honrei minha parte, espero que honre a sua. — Lembrei-a de nosso trato.
— Um enigma. Para vencer o primeiro teste, sua amiga terá de decifrar um enigma. Ela beberá um uma taça de veneno que demorará três dias para fazer o efeito, o mesmo período de tempo que terá para decifrar o enigma cuja resposta correta é o único antídoto que pode combater o efeito da poção venenosa. Se ela fracassar... — Fez uma pausa demorada. — Bem... — Estalou a língua asquerosa. — Então morrerá. Uma morte terrível e dolorosa. — Concluiu a impiedosa sentença com um largo sorriso de satisfação esboçado em seus finos lábios enrugados. A velha claramente se deliciava com o sofrimento alheio.
O choque de suas palavras, reverberou dentro de mim. Eu não poderia deixar que Acme morresse.
— Diga-me qual será o enigma. — pedi com urgência. Esperava, ingenuamente que ela atendesse ao meu pedido.
— Terá de pagar um preço muito, mais muito alto por essa informação. —Exibiu o pior sorriso sarcástico.
Não tinha tempo para pensar, por isso perguntei:
— Qual o preço?
A criatura tocou o centro do meu peito com a horrenda unha afiada de seu indicador.
— Sua alma!
A princípio achei que se tratasse de uma piada de mau gosto, porém, ao notar que a velha mantinha uma expressão séria em sua tenebrosa face, eu me dei conta de que falava com seriedade.
— Se eu lhe conceder essa informação, poderá transmiti-la ao Loki para que ele repasse a sua amiga. — Começou explicar a barganha. — Visto que, caso decida pagar o preço, ficará presa a esse mundo e dividirá comigo o pesado fardo de governá-lo. — Seus olhos negros me fitaram com atenção. — Qual o preço que está disposta a pagar para manter sua amiga a salvo?
Esbocei um sorriso de canto, pois já tinha a resposta a lhe fornecer.
'— Nada nesse ou em qualquer outro mundo, vale o preço da minha alma. Já fui prisioneira em vida, não tenho a intenção de ser após morta. — respondi, constatando o fato de que jamais aceitaria sua oferta.
— Sendo assim, Erieanna filha de Donyr, creio que encerramos por aqui. — Havia um certo desapontamento em sua voz.
Apenas acenei levemente com a cabeça e dei as costas para a Vidente. Porém, quando estava prestes a alcançar a saída, ela disse:
— Não se esqueça Erieanna... Você é a chave de uma trama que é maior que os deuses e suas vontades. Portanto, tudo que ocorreu até aqui é culpa sua, assim como tudo que se seguirá. — Aquelas palavras duras e frias soaram como uma premonição de algo ruim.
Desejava saber do que ela falava, entretanto, preferi evitar a prolongar o assunto e desci correndo as escadas. Mas, mesmo que adrenalina do momento tivesse mais uma vez tomado conta de mim, não conseguia apagar o peso daquela sentença ameaçadora. Aquelas palavras se cravaram em minha mente num constante e tenebroso aviso de culpa.
Mais adiante, avistei Loki mantendo longe as incontáveis criaturas que o cercavam, usando apenas um bloqueio invisível. As veias de suas têmporas estavam sobressaltadas por conta do esforço que ele fazia para manter o escudo de pé.
Rapidamente, aproximei- me dele que ao me ver, ordenou sem titubear:
— Erieanna, faça tudo que eu lhe disser... — Afirmei assentindo com a cabeça. — Quando eu baixar esse bloqueio, quero que use todo fogo que possa conjurar e queime essas bestas. — ordenou agitado. — Assim que fizer isso, nós desvaneceremos para longe daqui.
Sua solicitação foi urgente. De imediato, fiz com que as chamas surgissem em minhas mãos.
— Um, dois, três.... Agora! — No momento em que baixou o escudo, as feras vieram ao nosso encontro, prontas para nos devorar. Só que, para o azar delas, fui rápida em incendiá-las com uma potente lavareda de fogo que as queimou por completo.
O coro de rugidos pavorosos que saiu do canto intimo mais profundo e obscuro daquelas criaturas, foi o som mais horripilante que ouvi em toda minha existência. Creio que jamais serei capaz de apagar tal fato de minhas lembranças. Aqueles gritos pavorosos continuaram a ecoar em meus ouvidos quando desvanecemos e persistiram quando aterrissarmos no quarto escavado no meio da montanha, também conhecido como o refúgio secreto do deus da mentira.
***
Recordo-me que ambos ficamos abraçados, respirando ofegante, o coração disparado sob o peito que subia e descia em um ritmo frenético. O suor saiu por cada pequeno pedaço de nossas peles. Por um longo momento, ninguém proferiu palavra alguma. Apenas ficamos agarrados, escutando as batidas aceleradas de nossos corações, sem acreditar que havíamos voltado com vida da sombria Niflheim.
Contudo, o momento de incredulidade, foi substituído por um clima de intensidade quando Loki pegou uma mecha de meus negros cabelos que havia escapado da trança, e o colocou atrás de minha orelha. Com muita delicadeza, seus dedos traçaram a linha de minha mandíbula à medida que seus olhos azuis cintilantes devoravam minha boca.
Quanto a mim, tinha certeza de que se ele me beijasse naquele momento, eu avidamente corresponderia, e somente assim, aquietaria o desejo que havia tomado conta do meu corpo. Entretanto, para minha infelicidade, não foi o que ele fez. Sua reação foi completamente oposta ao que eu esperava, pois Loki sutilmente franziu o cenho ao fitar minha face com demasiada atenção.
— O que foi? — indaguei confusa.
— Nada. Apenas tive a impressão de ter me lembrado de alguém com os mesmos traços que o seus. — Balançou a cabeça de um lado para outro, incomodado. — Deve ser apenas impressão. Esquece! — Separou-se de mim e desceu as escadas.
Ainda frustrada, segui ao seu encalço e lhe contei que o primeiro teste seria um enigma. Achei que ele surtaria e gritaria comigo por termos quase morrido para eu voltar somente com aquela vaga informação. Mas, me surpreendendo totalmente, Loki apenas indagou:
— Qual foi o preço que teve de pagar pela dica?
— Um preço alto que prefiro manter só para mim. Por hoje, já revelei muito mais do que deveria. — Inclinei meus ombros para frente, evidenciando a minha frustração.
Loki, gentilmente, deixou o assunto de lado.
— De qualquer forma, amanhã saberemos qual será o enigma. Pelo menos poderá alertar Acme sobre isso. É muito melhor ela saber vagamente do que se trata o primeiro teste, do que ir às cegas para Niflheim. — Balançou os ombros. — Por ora, Coração de Gelo, é melhor voltarmos ao palácio.
E assim desvanecemos mais uma vez.
***
Já era final da noite quando retornamos ao castelo de Asgard. Loki fez questão de aterrissar dentro do meu quarto para que ninguém visse o caos que estávamos e levantassem suspeitas a respeito de nossas ações. Concordei com ele, afinal não seria prudente que alguém nos visse juntos, não queria que descobrissem que tentamos burlar os testes.
— Formamos uma boa dupla, Coração de Gelo. — Exibiu seu habitual sorriso de canto e depois plantou um beijo demorado no dorso da minha mão.
— Loki! Seu insano! Por que fez isso? Não vê que minhas mãos estão imundas? — exclamei exasperada, esboçando uma careta de nojo.
— Ah, Coração de Gelo... Eu seria capaz de te devorar assim mesmo, toda suja e suada, sem receio e tampouco pudor. — Seus olhos azuis brilharam quando disse aquelas palavras que me fizeram incendiar por dentro. Palavras que eu, esperançosa, deseja que se tornassem ações. — No entanto, estamos cansados e além do mais, quando eu estiver dentro de você, quero que esteja a devidamente relaxada para que possa desfrutar de todo prazer que vou lhe dar. — Mordeu o lábio inferior, olhando-me com tanta intensidade, que eu podia jurar que estava me devorando cada parte minha com seus famintos olhos. — Um dia eu te devorarei por completo, mas não hoje. Essa é uma promessa que terei de cumprir num outro momento. E eu cumprirei. — Separou-se de mim e começou a caminhar rumo a saída.
Observei, ainda aquecida por suas sedutoras palavras, o deus sair do meu quarto. Mas, antes que fechasse a porta e fosse embora, eu o chamei:
— Loki! — Seu olhar voltou-se para mim. — Essa é uma promessa que eu farei questão de cobrar. — Declarei de forma segura, com o objetivo de evidenciar que eu realmente estava falando sério, que realmente esperava que ele me tomasse em sua verdadeira forma, como o deus pelo qual me apaixonei.
A expressão em seu rosto evidenciou o quanto ficou surpreso com minha atitude inesperada.
'Um largo sorriso se apossou de seus lábios.
— Creio que chegamos num consenso afinal. — Sorriu, e no seu sorriso, havia centenas de promessas não ditas. — Não se preocupe, Coração de Gelo, poder, mais uma vez desfrutar de seu delicioso corpo, é a única promessa que jamais vou quebrar.
Então ele se foi e suas palavras carregadas de desejos ficaram presas nas quatro paredes do meu quarto tentando consumir com o pouco da sanidade que ainda me restava.
Havia muitas dúvidas rondando meus pensamentos, e no meio do mar de incertezas, apenas um fato era certo: eu me apaixonei pelo deus da mentira. Mas tal fato não significava que eu daria a ele o bloco de gelo do meu coração. Paixão é somente um sentimento passageiro e como tal não deve ser nutrida. Por isso, decidi, naquela noite, que Loki jamais deveria saber o que eu sentia por ele. Enquanto mantivesse a paixão secreta, eu estaria segura. E o quanto antes eu partisse de Asgard, menos chances teria de me embrenhar num caminho sem volta.
Estava decidido, assim que os testes acabassem, daria um jeito de partir para longe de Loki, estando eu viva ou não.
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