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Sob outros olhos - O Começo

(A categoria "Sob outros olhos" trará mini histórias para você sob POV's diferentes de Enny, até porque em Rheyk há muitos segredos e nossa protagonista ainda terá muito a viver até os descobrir. E, claro, isso dará oportunidade de conhecerem um pouco mais os personagens de Rheyk, afinal as pessoas não são só o que transparecem ser)

***

Era próximo da meia-noite e, por causa da falta de um funcionário, eu ainda estava longe de terminar o fechamento do restaurante. Tia Lúcia fechava o caixa, aparentemente preocupada porque estava com um valor a menos do que deveria. Nas últimas semanas, isso vinha acontecendo e havia uma suspeita de uma garota da escola das meninas. Bati à porta da sala da senhora que, afastando a preocupação, me recebeu com carinho.

– O que houve? Está com uma carinha triste, meu rapaz.

Tirei um broche de ouro do meu bolso. No dia que trouxemos Enny para cá, eu estava voltando da minha viagem para a cidade Hoquin, onde tinha pego esse item no cofre da fábrica Jular. Relíquia familiar. Mamãe nunca o usou, dizia que lembrava demais a mãe e não se sentia confortável. Minha benfeitora pareceu entender aonde essa conversa iria dar.

– Acha que consigo algo com isso? Estamos precisando de alguns sacos de farinha na Rebelião. Victor achou nossa plantação e queimou tudo... Até chegar a ajuda da cidade de Ozin, precisamos nos virar. Pensei em comprar aqui na Terra e levar para lá.

Tia Lúcia se levantou, acariciou meu rosto e tentou ajeitar o topete. Meu cabelo não aceitou, continuando a cair sobre minha testa. Aquela senhora era minha segunda mãe. Me acolheu quando eu estava no pior momento da minha vida e lutou para ficar perto de mim, mesmo com minha insistência em a abandonar nos últimos 11 anos depois que mamãe morreu.

– Não precisa se desfazer disso, Nate. Tenho minhas joias, minha poupança. Posso falar com fornecedores e conseguir algum desconto. Me deixe te ajudar, meu menino.

– Por favor, não é certo. – Eu queria chorar, mas não ia ser fraco. – Eu sou o General. Aceitei o cargo e essa responsabilidade é minha. Se for sacrifício de outro, estarei falhando.

Tia Lúcia bufou, mas parecia resignada. Pegou o broche, olhando de perto, e disse:

– Posso falar com meus contatos para tentar um preço melhor pelo broche e verei com os meus fornecedores se há algum com desconto na saca da farinha. Eu tenho tanto orgulho do homem que você está se tornando. Já te disse isso? – Ela deu uma batidinha no meu ombro.

– Se continuar falando assim, vou acabar acreditando e ficando exibido. – Apesar de forçar um sorriso, meus ombros caídos mostravam o preso de ter que me desapegar daquela relíquia. Era mais uma parte da minha mãe que estava partindo.

– Mais do que já é? Duvido! – Um riso lhe escapou, mas seus olhos mantinham o mesmo tom de admiração.

Escutamos uma voz chamando à distância. Era a novata. Tia Lúcia, percebendo que eu precisava me recuperar dessa nossa conversa, saiu para a chamar. Escutei a senhora apresentando o lugar para a garota, que não dizia uma única palavra. Por fim, as duas apareceram na sala de tia Lúcia. No instante que meus olhos encontraram a garota, a mesma sensação se instaurou.

– Meninos, eu vou subir para dormir. Enny, pode ajudar Nathan no fechamento?

– Ela não sabe nada, só vai atrasar. Sozinho, faço mais rápido. – Queria um pouco de paz e minha mente sempre ficava confusa com ela por perto.

– Medo de ensinar? Ou é medo que eu veja que você também não sabe? – Ela provocou, dando-me um sorriso duro.

Quem ela acha que assustava com aquela raiva contida em um metro e meio? Ou só queria provocar minha paciência?

– Já estão brigando de novo? – Tia Lúcia riu. – Vocês têm que se dar bem. Lembre-se Nathan, Angel lhe incumbiu de proteger Enny até ela pensar no que vão fazer. Então, briguem, conversem. Não me importa. Mas só subam quando fizerem as pazes e organizarem o restaurante.

Hoje de manhã, ao sair do quarto, constatei que a novata tinha jogado meus arcux fora - uma fruta roxa de Rheyk. Era algo raro e a favorita do meu pai, uma das poucas coisas que ainda lembrava dele. Eu gritei com a garota, dizendo que ela não tinha moral nenhuma para mexer em nada, que aquela não era a casa dela. Peguei pesado, eu sei. Estava errado e teria que pedir desculpas.

– Nathan, se Enny der certo, avise. Já a contrato para substituir a outra a partir de amanhã. – A senhora murmurou ao pé de meu ouvido após dar boa noite.

Assim que tia Lúcia saiu, Enny aguardou um momento e foi para o salão, retirar as últimas toalhas de mesa. Enquanto isso, fui até a cozinha, peguei dois pratos, cortei duas fatias de torta de morango, enchi dois copos com água e coloquei tudo sobre uma bandeja. Ao chegar de volta ao salão, ela tinha posto uma música clássica, dobrado todas as toalhas, as deixado no canto e já varria o salão. Admito, ágil. Ao me ver, a garota fez um bico e franziu sutilmente o cenho, logo voltando ao serviço. Ela estava com raiva de mim, assim como eu passei o dia furioso com ela. Contudo, agora, eu só pensava na escolha mais singular de música.

– É um pedido de paz. – Me vi rindo enquanto colocava os pratos sobre a mesa. – Venha, por favor.

– Qual a chance de conseguir um emprego no restaurante? 

Ela me encarou, mordendo os lábios. Falava demasiadamente rápido, abraçando-se com força. Parecia controlar uma tormenta em seu peito. Enny tinha essa linguagem corporal com frequência, quase sempre transmitindo insegurança. 

– Você tem razão. A casa não é minha, a comida não é minha, nada é meu. Não tenho amigos ou família aqui. E vocês não têm qualquer obrigação de ficar comigo só porque me trouxeram para cá. Um emprego me ocuparia a mente e quem...

– Eu errei. – Adiantei assim que a vi ficar com os olhos marejados. – Desculpa. De um refugiado para outra, a casa de tia Lúcia é um lar. Aquela mulher é um anjo que você quase nunca vê, verdade. Mas que deve ter uns cinquenta olhos na nuca porque sempre tá a par de tudo e vai aparecer para ter dar apoio quando mais precisar.

Meu tom mais emocionado veio das memórias da minha própria relação com a dona deste restaurante. Comecei a trabalhar aqui para conseguir dinheiro, lógico, mas também para ter motivos para ficar mais perto dela e podermos conversar madrugada a dentro. Sua vida era esse estabelecimento e eu queria fazer parte dela. Todavia, Enny não parecia ter se convencido com minha fala ou até mesmo me perdoado, então prossegui:

– Eu fui babaca. Aquelas frutinhas... Eram algo que meu pai gostava. Comprei para me lembrar dele. – Na hora ela recuou, com culpa nos olhos, os lábios tremendo ao tentar balbuciar um pedido de desculpas. – Você não tinha como saber. Desculpe. Aceita uma uma fatia da torta de perdão?

Peguei um prato e estendi para ela. A garota olhou da fatia para mim, pensativa. Um carro passou pela rua, o farol banhando o restaurante e iluminando a face dela. Com certeza, ela tinha uma beleza única. Seus olhos... Nunca vi íris de cor tão escura, pareciam me tragar para dentro dela, um vórtice que eu só saía quando ela desviava o olhar. Um feitiço não dito, com certeza. Por que eles tinham esse efeito sobre mim?

Essa pergunta rondava minha mente desde que a encarei ainda no mundo dela. Aqueles olhos ficaram marcados em minha retina e, mesmo sem que Angel mandasse, voltei para a proteger quando tive a mera visão de Petrik perto dela. Sabia que não deixaria ninguém a ferir. Na verdade, antes mesmo até do que isso. Quando encontrei o portal que levou para o mundo dela era como se ele chamasse por mim, como se eu já  soubesse o perigo que ela passava do outro lado.

Enny, mesmo sem aceitar minha oferta de paz, pareceu se convencer das minhas palavras e esboçou um sorriso tímido, mordendo o lábio. Tinha reparado que era um hábito inerente dela toda vez que ficava nervosa, o que era a maior parte do tempo desde que chegou. Admito que me lembra um pouco meu próprio nervosismo quando tia Lúcia me acolheu há 9 anos. Por empatia, decidi quebrar o clima mais sério.

– Vai recusar mesmo a torta do perdão? – Brinquei, tirando-a de seus pensamentos.

Ela riu e tomou o prato da minha mão, evitando me tocar. A coitada vinha sendo a última vítima dos ciúmes de Jane e fazia por onde não agravar o caso.

– Tá bom! Me venceu. – Enny se sentou e sinalizou para que eu fizesse o mesmo apenas com o olhar. Observávamos pela janela do estabelecimento o movimento da madrugada de sábado.

Minha ex-namorada não fazia questão de esconder sua rejeição pela menina. Em parte, compreendia o cerne de seu descontentamento. As verdades que  a garota de olhos de ônix trouxe eram muito pesadas para Jane, mesmo que ela se recusasse a admitir. Então, preferiu escolher a justificativa mais fácil para odiar a novata, o ciúme.

A primeira briga que tivemos sobre a garota foi o fato de eu ter voltado com ela para perto de Petrik e Thomas lá em Rheyk, desobedecendo os comandos de Angel. O plano de Enny era horrível, no mínimo. Deixar uma adolescente despreparada servir de isca? Era uma ideia idiota, patética! Mas eu não consegui não concordar com a criatura teimosa sentada agora ao meu lado. As negativas ficaram simplesmente presas em minha garganta, impossibilitadas de sair. Jane, contudo, estava crente que eu me encantei pelo sorriso que a garota me deu na casa de Madame Kia e estava questionando se Enny seria meu passatempo no "tempo" que demos no namoro.

Ou melhor, que ela deu.

Porra. Eu não era o cara mais certo do mundo, tinha ciência disso. Faltei o concurso de miss dela há quinze dias, como esqueci mais um mês de namoro e era conivente com os fletes que recebia das clientes do restaurante. Mas, o que era para fazer? Ser grosso com as clientes? Não podia fazer muito além do que não retribuir. Era verdade também que uma cantada ou outra afagava meu ego, mas, novamente, tenho plena convicção que nunca alimentei isso.

Mas as acusações dessa última semana estavam demais! Eu e Enny? Claro que não! Nunca confundi missão com emoção e não iria começar logo com a novata. 

Comecei a encarar a garota que observava as pessoas que passavam em grupo em frente ao restaurante. Os olhos vagavam incessantemente em busca de algo que nunca achava. Aquele semblante eu conhecia bem. Solidão. Tirando aquela nossa conversa na madrugada, Enny mal falava sobre si e pouco sorria. Parecia ter medo do que pudéssemos fazer, de ser abandonada. Vendo-a tão fragilizada, uma sensação de proteção ardeu em meu peito mais uma vez. 

– Sabe... Se serve de consolo, eu também não tenho família. Não oficial. – A admirava enquanto eu falava. – Mas, com o tempo, fui criando a minha. As meninas, tia Lúcia, a rebelião... Se você der uma chance, vamos acabar se tornando a sua.

– A rebelião? – Ela riu timidamente, baixando a vista da rua. – Como é Rheyk?

– Está em um momento horrível. Séculos horríveis, na verdade. – Admiti, constrangido. – Mas o povo... Ah! Somos apaixonados, vorazes e destemidos. Se houver uma chance de nos livrarmos de Victor, tenho certeza que vamos recuperar a antiga glória do meu mundo.

– Por que vocês não vêm tentar a vida aqui nesta Terra? Não seria mais fácil?

Lembrei da última briga namorando Jane. Ela queria que eu viesse para Terra após derrotar Victor, "tentar realmente" ser bem sucedido aqui. O sonho de vida dela era ser mundana e terráquea. Nada disso cabia na minha visão de futuro. Não só eu, como também diversos outros de Rheyk que tive oportunidade de falar sobre na minha vida.

– Sabe... Nem todos acham o portão. Na verdade, praticamente ninguém. Eu digo que é meu talento natural. Sabe... simplesmente o sinto, como nossos pés sentem um desnível na calçada. 

Comecei a comer minha fatia para me calar. Meus vícios de linguagens ficando evidentes com meu nervosismo. Era estranho o quanto me abria fácil com a novata, quase como se a conhecesse minha vida inteira. Mais calmo, prossegui: 

– Mas, verdade seja dita, mesmo que todos pudessem achar um portão, não imagino eles indo embora. É a nossa casa, nos sentimos parte de lá. É estranho, eu sei. Mas é meu lar e sei que os dias de glória virão. Quero estar lá para os conquistar, ver, viver...

Um suspiro me tomou. Rheyk tinha algo que me tomava como seu. Amava as garotas, tia Lúcia. Só que nada se comparava ao meu mundo. Ali era meu lar e nada mais importava. Será que meus pais também sentiam isso? Será que algum dia, alguma daquelas garotas do grupo conseguiria enxergar isso também? Será que Jane um dia entenderia?

– O jeito que você fala... Faz parecer que é algo que vale a pena lutar por. – Ela lambeu o lábio inferior, sujo de geleia de morango. – Eu vou dar uma chance. Prometo.

– D-De quê? – Me ouvi gaguejar, sentindo um rubor ascender. Que porcaria de reação era essa minha? Por que eu estava constrangido? 

– Bobo! – Ela me empurrou e se colocou em pé, sorrindo. – Estava falando sobre criar uma família. Darei chance até para Rheyk. Você, com certeza, vai ser o primo chato. E essa cara? Pensando em quê? Jane?

Jane... Enlouqueceria se soubesse dessa conversa de agora e se só suspeitasse do quanto a mera presença daquela menina me intrigava. Não podia continuar tão próximo de Enny, era fomentar a teoria da minha ex. Honestamente? Um teoria que, por mais insana que pudesse soar, tinha um quê de verdade que não compreendia totalmente.  A ideia de Victor capturando a garota de olhos de ônix me gelava a alma.

– Isso mesmo. Lembrei que ela me ligou mais cedo. – Engoli em seco.

– Retorna agora. Vão reatar? – Enny abriu um grande sorriso, mas não parecia genuinamente empolgada, engolindo em seco ao final das frases e alargando sutilmente as narinas. 

– Ligo depois. – Falei antes que conseguisse pensar direito. – Você é minha protegida. Vou terminar aqui e te deixarei no quarto, dormindo. Prioridades.

– Que protetor! – Havia sarcasmo em sua voz. – Assim vou acabar pensando que você até se importa comigo.

Ah, Enny Scott, não tem noção do quanto eu me importo.

Reprimindo a linha de pensamento que se formava em mim, escolhi o mau-humor para lhe dar uma resposta.

– Só gosto de fazer meu trabalho bem feito. E, por agora, cuidar de você é minha missão.

Repreendi muito mais meus pensamentos do que qualquer outra coisa. Como era possível que alguém que eu mal conhecia tivesse tanto impacto sobre mim? Não era racional. Nunca fui dado a simpatizar com estranhos, mas cá estava eu, me abrindo novamente com a garota recém-chegada.

Enny pareceu achar que tinha ultrapassado o limite da brincadeira e pediu desculpas. Levantei-me para fazer a faxina, sem trocar mais nenhuma palavra com ela. Odiava me sentir confuso sobre meus julgamentos acerca de alguém. 

Admito que formávamos uma boa dupla de trabalho. Uma boa música e silêncio pareciam ser motivações o suficiente para ambos. Em uns trinta minutos, tínhamos terminado e subimos para o apartamento. 

Notei que minha protegida olhou assustada para o corredor dos quartos. Tinha medo de ir dormir, devia estar tendo pesadelos. Antes que eu pudesse pensar, o meu instinto de proteção gritou e me vi falando:

– Eu vou tomar um banho e depois volto para ver uma comédia. Me acompanha?

Os olhos dela cintilaram e a garota concordou, segurando minha mão e agradecendo antes de ir para o quarto tomar seu banho. Seu toque era inocente, como tudo nela. Enny era como um floco de neve, puro e intocado pela maldade do mundo, sendo jogado no vulcão que era Rheyk. A pobre coitada precisaria de toda ajuda que pudesse, especialmente se o que tia Lúcia falou em confidência para mim fosse verdade.

No meu quarto, fui tomado pela sensação de que essa obsessão em entender os efeitos que aquela garota tinha sobre mim poderia ser facilmente compreendida de forma errada. Não podia passar essa imagem. Talvez o caminho correto fosse me distanciar da garota de olhos de ônix. Talvez colocar meu melhor amigo para a supervisionar? Não, estaria a colocando em mais perigo, com certeza. Tinha que pensar para chegar a uma solução. Suspirando, peguei meu celular e liguei para Jane.

– Oi, príncipe. – Ela sussurrou após o terceiro toque. Ao fundo, era possível escutar a movimentação atípica que, na casa dela, já se tornava comum. – Ligou para implorar para voltar? Não sei se supero sua falta comigo, não.

Aquela voz elevada da senhora Lopes me apertava o peito. Sabia o que significava, como tinha certeza que fiz o certo em entrar em contato.

– Hoje é sábado. JP já chegou? Tá seguro por ai? – Não queria me prolongar naquela conversa. Jane sabia ser ácida quando estava com raiva e desde a chegada de Enny, o humor da minha ex piorou bastante.

– E você se importa? – Dito e feito. Seu tom rude tomou conta.

– Teria ligado se não me importasse? – Questionei de forma seca. – Jane, independente de como nós estivermos, eu vou estar sempre aqui para o que você precisar.

Os gritos do outro lado se intensificaram e escutei seu abafado fungar. Claro, Jane jamais iria querer mostrar fragilidade, mesmo para mim.

– Quer dormir aqui? Eu durmo no colchonete ou você pode dormir com Enn...

– Claro que o nome dela ia aparecer. – A raiva tomou conta de sua voz. Novamente, Jane escolhia descontar em quem nada tinha a ver com a situação. – Não preciso ser sua ação de caridade de hoje. Fica com ela, sei me virar sozinha.

E o silêncio anunciou a chamada abruptamente encerrada. Joguei a cabeça para trás, respirando fundo para não perder a cabeça. Minha paciência findava lentamente com todo esse drama, mas, pelas minhas promessas, eu manteria a calma. 

– Não se quebra promessas feitas a mortos. – Murmurei o ensinamento de mamãe já indo rumo ao banheiro. – Eu vou cuidar deles.

De banho tomado, passei, por reflexo, uma essência de Rheyk que lembrava o cheiro de hortelã. Era a favorita de mamãe. Então, decidi completar com o outro amadeirado que tia Lúcia me dera. Era uma forma de ter parte das minhas duas mães comigo. Vesti a calça de moletom surrada e coloquei uma blusa só para manter a compostura.

Fui para sala e vi que Enny tinha feito pipoca e estava sentada no chão, mexendo no velho baralho de tia Lúcia. A garota abriu um enorme sorriso e me ofereceu o balde. Ela usava uma blusa velha minha como pijama junto de uma calça de moletom que tia Lúcia comprou. 

Tudo ali parecia ser muito grande para alguém tão pequena quanto ela. Porém, era nítido o quanto se sentia confortável ao se esconder atrás de tanto tecido. Quase como se pudesse desaparecer da vista de todos. Seria timidez? Insegurança? 

– Te dou duas opções aqui. – Falei, a desafiando enquanto me sentava no chão à sua frente. – Perder miseravelmente para mim em um jogo de baralho ou ver um filme.

– Até estava interessada no filme, mas esfregar minha vitória na sua cara vai ser impagável. Dê o seu melhor, protetor, e contemple o fracasso.

Ela começou a distribuir as cartas empolgada, mordendo sutilmente os lábios. Aquela garota não tinha ideia do quanto era bela, especialmente quando se sentia invisível como agora. A luz que emanava era de tirar o fôlego. Engoli em seco e peguei minhas cartas. A minha mão era péssima!

– Vai trapacear assim? Na cara dura? – Reclamei. – Certeza que não embaralhou nada.

– E eu que sou a chorona, não é? Se é tão bom, não vai ter problema para ganhar, general.

Passamos uma hora jogando. Algumas rodadas ganhas por ela, outras por mim. Éramos igualmente competitivos e não levávamos a sério os xingamentos que surgiam quando um levava a melhor. Fazia tempo que eu não ria tanto com alguém quanto vinha rindo com Enny nesses últimos três dias. A inocência ou leveza, sei lá, dela parecia tirar o peso da vivência em Rheyk. Mas também, ninguém me irritava tanto quanto ela, especialmente com a sua teimosia.

Já cansado, perguntei se ela queria ver um filme até pegar no sono – já era quase duas da madrugada. A garota concordou e sentou no sofá com o eterno balde de pipoca fria entre nós. Ela realmente zelava por uma distância segura para evitar a sombra do olhar ciumento de Jane. Sorri ao captar esse detalhe.

– No restaurante...Não esperava aquele tipo de música. Achava que você curtia mais um estilo pop juvenil depressivo. Jamais clássico.

– Era Carnaval, de Schumann. – Ela riu do meu semblante surpreso. Como seu sorriso largo era encantador. – Também gosto do estilo mais pop depressivo. Porém... Vovó Paola me deu um violino aos sete, quando nos mudamos da casa dela. Aprendi primeiro os clássicos e acabei me apaixonando. Escuto quando estou nervosa ou lendo algum livro de Sherlock ou Agatha Christie. E você? Quais são seus gostos?

– Curto alguns tipos de rock para treinar. Admito que prefiro ler no tempo livre, mas livros sobre como influenciar pessoas ou coisas do gênero. É importante para o meu cargo, sabe? – Eu a vi ficar impressionada. – Acho que não era o único com ideia pré-concebida sobre o outro. Certo? Então, estou conversando com uma violinista?

Os ombros dela se curvaram e seu olhar se perdeu em uma triste maresia. A vi desse jeito umas quatro vezes, mas, como ela não entrava no tópico sensível, não seria eu quem perguntaria. Dei-a um tempo e, como se tomasse coragem, Enny voltou a me encarar, com um sorriso cerrado.

– Não toco mais. No final do ano passado, mamãe perdeu o emprego e as coisas ficaram difíceis. Júlia tinha bolsa na escola e eu, não. Meu pai não pôde ajudar na época. Então vendi umas coisas para dar um suporte nas contas e, entre elas, meu violino. Sinto bastante falta. Porém, acho que minha irmã agradeceu pelo silêncio. Foi o certo a fazer.

A olhei com admiração. Ela parecia saber bem a aflição que eu estava passando agora. A preocupação que eu tinha com Rheyk, aquela garota de olhos de ônix sentia pela família. Como era satisfatoriamente fácil conversar com ela, até mesmo quando brigávamos.

– Acho que já chega da sessão de terapia, protetor. – Ela parecia querer fazer graça.

Apesar do sorriso, uma sombra de timidez passou pela sua face, quase como se ela quisesse fugir de algum assunto que pudesse vir dessa conversa. O que poderia a afligir tanto assim? Bem... O que quer que seja, ela trancou muito bem dentro de si, pois pegou o controle e teatralmente o mostrou para mim, regressando ao sorriso travesso de antes. 

– Como vencedora do jogo, eu deveria escolher o filme. Mas... Para mostrar o meu bom coração, vou ser misericordiosa e deixarei você ter essa honra. Não espere tanta benevolência assim de mim no futuro, Nathan.

Fingindo raiva, tomei o controle de sua mão e me acomodei confortavelmente no sofá. Escolhi um filme policial, considerando o gosto literário dela.

Enny não suportou dez minutos do filme preto e branco que coloquei, sua cabeça caindo sobre meu ombro, os longos fios acobreados me fazendo cócegas. A escutava sair do quarto todas as madrugada, os passos ligeiros e aflitos. Ela deveria estar exausta. Mas, agora, acho que pela primeira vez, a vi realmente relaxada. 

Não queria lhe privar do descanso merecido. Não enquanto conseguisse conter o meu próprio cansaço. Tirei o balde de pipoca depositado entre nós, peguei uma almofada, coloquei no meu colo e repousei sua cabeça sobre essa. A olhando, senti desejo de lhe afagar o rosto tão intocado pela guerra, lhe cuidar, lhe proteger de todo o mal e...

Joguei minha cabeça para trás, fechando os olhos, em uma tentativa inútil de esquecer o mundo a minha volta. Puta merda! Ou suprimia tudo que essa garota evocava em mim ou estava muito ferrado.

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