Sob Outros Olhos - Missão em Armant
Exausto.
Era assim que me encontrava desde outubro, desde o dia que aceitei ajudar Enny a captar recursos para mitigar os assassinatos dos servos de Victor. Vinha tendo que fazer malabarismo para acalmar os ânimos dos rebeldes contra Enny, treinar os batalhões, ir nas missões com a minha protegida – e a treinar nesse processo – e ainda ajudar tia Lúcia no fechamento do restaurante. Nos dias que eu dormia cinco horas, já me considerava um afortunado.
Antes, eu coordenava o sistema de proteção dos nossos fornecedores. Contudo, após ter um surto nervoso em uma reunião com General Herquio, Alberto e Angel – quebrando o tampo da mesa com um soco ao ser contrariado pelo homem barbudo –, os três acharam por bem que essa função eu delegasse para o corno manso e minha amiga, junto com Aline, monitoraria ocasionalmente. Duas vezes por semana, nos reuníamos e discutíamos o andamento dos nossos acordos. Hoje, estávamos fazendo o encontro mais cedo, pois sairíamos em uma missão.
– Essa autorização que você deu para Aline foi altamente errada. – Murmurei para Angel quando ficamos sozinhos na rebelião. O assunto discutido há uma semana me assombrava.
– Se não houver nada a esconder, não há nada a temer. – A garota de 1,81 m me peitou como uma igual. Cada vez mais era difícil a ver como uma subordinada minha. Ela vinha cativando a confiança das demais lideranças e se tornava vital para causa. – Sabe de algo, general?
Lá estava, a desconfiança que crescia nela desde aquela reunião onde Enny encarou Patcho. Angel escutou a conversa deles usando seus dons e começou a dar ouvido as teorias criadas de Li. A ideia de um segredo as fazia tremer de medo e, eu sabia bem, que o final dessa história poderia ser terrível.
– Tanto quanto vocês. – Não era chegado a mentir, mas se elas soubessem da verdade pela minha boca, as consequências poderiam ser piores.
A líder bufou, desacreditada na minha resposta. Devido ao dom dela, evitava até conversar sobre a situação com Enny. Se Angel soubesse que dei com a língua nos dentes, uma guerra poderia ser travada e eu estaria no meio do caos, jogando minha protegida na fogueira.
– Oi, amigos! – Tracy apareceu animada, usando sua energia para diluir a tensão que havia entre mim e Ang. – Preparados para a missão de hoje?
– Claro. – A voz doce da líder contrastava com o olhar gélido para mim. – Vai passar a orientação para nós, Nate?
Apliquei meu sorriso mais debochado, concordando. Guiei as duas para minha casa, onde já estavam Emanuel, as outras quatro garotas e Príntia. Essa última era uma tenente de 29 anos, a mesma mulher que apontou uma arma para o pescoço de minha protegida no Salão de Reuniões. Ela era uma mulher de princípios sólidos e uma mãe rigorosa de cinco meninos, dois desses que ela enterrou pelas chagas que a guerra promovia.
E era uma dessas chagas que iríamos enfrentar hoje.
– Boa tarde, chamei vocês aqui para falarmos de nossa missão de hoje. Estamos tendo um surto de cinéria em toda região oeste. Infelizmente, nas nossas células rebeldes de Gomno e Gark já temos casos. Há suspeitas em Ozin.
O rosto de Príntia empalideceu. Cinéria era uma doença que lembrava tuberculose, sendo ainda mais rápida em levar à óbito, principalmente em crianças. Era facilmente reconhecida pelas manchas vermelhas que gerava no tórax e garganta dos doentes. Não consigo imaginar dor maior que ver seus dois caçulas lutarem inutilmente para respirar até não mais resistir... Aquela mulher à minha frente era uma rocha só por não ter enlouquecido.
– Honesh está preparando o remédio, mas verificamos que estamos com baixo estoque de óleo de peixe fushfor. Fui informado que a praga também invadiu o castelo de Victor e ele mandou preparar uma carga generosa. – Um sorriso tomou minha face, sendo compartilhado por Aline e Príntia. – Uma pena que ela não vai chegar no castelo. Vamos até a Armant furtar diretamente do criadouro.
***
Pegamos dois livitares e uma carroça. Precisaríamos de suporte para trazermos os barris carregados e espaço para levarmos nossas armas. Essa era uma missão de final de semana. Teoricamente, as garotas iriam acampar na fazenda da família de Aline – mentira que David fingiu comprar –, então tínhamos calma nos nossos atos. Um dia para chegar lá, 12 horas para conseguir extraviar o material e outro dia de volta.
Com Emanuel e Tracy levando a carroça, poucas eram as chances de sermos parados. Eram visualmente inofensivos e desconhecidos neste mundo. Conseguimos achar um local para acampar quando a noite caiu. Escolhi um local relativamente perto de um portão. Se fôssemos atacados, poderíamos fugir rapidamente. As seis garotas pareciam dormir, mas eu simplesmente não conseguia, então decidi praticar meus golpes com minhas espadas duplas.
Em algum momento, Príntia apareceu para treinamos juntos. Passamos alguns bons minutos focados em derrotar um ao outro, sabendo que amanhã encontraríamos grandes desafios.
– Como você está com isso? – Sabia que essa missão significava para ela uma chance de se vingar da doença que levou seus filhos, mas isso não queria dizer que era fácil.
– Ficarei bem quando finalizarmos. – Ela pegou o pano para enxugar o suor. – A sua protegida não está falando uma palavra. O que houve?
– Foi a primeira vez que ela voltou à rebelião desde aquele dia. Deve ser choque. – Estava dando espaço para Enny, então não a questionei. Se ela não me queria como namorado, eu me tornaria o melhor guerreiro e amigo que ela poderia ter ao seu lado. Acima de tudo, queria ser alguém tão digno quanto ela achava que eu era.
– Você a protege demais da realidade. – Príntia me ofertava uma carranca de nojo. – Sempre forjou bons guerreiro, Monteiro. As outras cinco estão ai para provar. Mas ela? Está ensinando apenas a técnica, esquecendo de moldar o coração de uma rebelde.
Mas ela não é apenas uma rebelde. Expirei lentamente, calando a verdade que queria ganhar voz em minha boca.
– Com um coração frágil, há chances de Victor a persuadir. Essa distância que vocês seis estão criando dela de Rheyk, todos sabemos que é para a deixar longe daquele louco. Só que... Quanto tempo vocês acham que vão conseguir evitar esse encontro? E, se acontecer, o que há de manter a menina fiel a nós? A amizade de vocês? Não me faça rir.
– E qual é a sua sugestão? – Minha voz era tensa, sabendo a verdadeira resposta que eu tinha para a pergunta de minha colega de causa.
– Deixe-a correr riscos. Deixe-a ver a verdade. Convença-a que antes a rebelião do que Victor.
***
Dividimos o grupo em três. Tracy, Aline, Emanuel e Jane ficaram mais afastados, preparados para criar uma distração para atrair alguns guardas. Enny, Luna e Príntia entraram no armazém, iam levar os barris por levitação até a porta. Eu e Angel ficamos do lado de fora. A líder usava seus dons para monitorar os outros dois grupos e eu tinha meu arco-flecha apontado para a testa do maior guarda. Qualquer intercorrência, ele era o primeiro que morreria.
– Nate, tem outras mentes chegando. Ainda não consegui pegar os sentidos, mas acho que são mais de cinco. – Angel sussurrou.
– Ótimo. Avisa a Jane e Luna que vamos partir para o ataque. Vou me livrar do dinossauro ali, cega a mulher à esquerda, é meu próximo alvo. Na bolsa tem uma adaga, quero que você acerte o terceiro mais perto. Se afaste daqui, Ang. Quando eu lançar a primeira flecha, eles virão para mim.
Angel seguiu todas as orientações e ainda tirou minha dupla espada, deixando do meu lado. Aquela garota conhecia bem meus gostos em batalha, hei de admitir. Assim que ela adquiriu uma distância segura, mais próxima do guarda que iria apagar, eu deixei a flecha voar, ficando-se em seu alvo tão claro. O guarda de rosto roxo caiu com a adaga fincada em sua têmpora e eu logo atirei novamente, acertando a mulher de pele amarela.
Outros seis guardas vieram em minha direção, atacando sem misericórdia. Uns lançavam veneno. Malditos híbridos de hurmias! Desviava dos jatos, permitindo que seus colegas de farda fossem atingidos e se deteriorassem, agonizando com as queimaduras. Minhas lâminas rodavam no ar, agindo como a tinta que cravava o ponto final na vida de meus adversários. Aos poucos seus corpos caíam, seus sangues escorriam e a luta findava.
Mais longe, vi Emanuel estacionando a carroça perto do armazém e as duas ruivas a abastecendo com os barris. Um guarda apareceu de dentro do armazém, preparado para atacar minha protegida pelas costas. Nesse segundo de distração, baixei a guarda e fui atingido das costas pelo jato de veneno. Girei sobre os calcanhares, bradando minha espada e decaptando a besta. Logo depois, arranquei minha jaqueta de couro. Felizmente, ela foi a maior vítima do ataque.
Olhei para o grupo mais uma vez. Príntia conseguiu interceptar o ataque e contava com a ajuda de Jane para lutar. O monstro tremia frente à criação que minha ex implantava em sua mente e, consequentemente, não se defendia dos ataques impiedosos da rebelde.
Constatei que a ameaça que Ang tinha sentindo estava chegando e desci a colina quase que derrapando. Passei por Tracy e Aline, as duas se alternavam em seus dons em uma junção brilhante de ataque e defesa. Angel estava com Emanuel, fazendo a segurança da duas ruivinhas. Me juntei a eles, percebendo que a carroça que se aproximava tinha rumo para lá.
Por um momento, todos ali pararam.
Então, a horda pareceu explodir do veículo, atacando ferozmente a tudo que alcançasse, não importando se era amigo ou não. Raspei no chão, decepando os pés dianteiros de uma quimera que lembrava o braço direito de Victor, que mirava na minha protegida. Mas minha atenção era para os que estavam no centro do que era o veículo, Thomas e Petrik. Tomado por uma fúria que me cegava, comecei a me encaminhar para os dois.
– Nathan, não! – Jane gritou, mas já era tarde. Dessa vez não iria perder para ele de novo.
Quando dei por mim, estava lutando contra Thomas, que se armou com uma foice. Ele parecia zombar por eu ainda não o vencer. Por dentro, o ódio me corroía. Nossa dança mortal se dava alheia aos gritos e sangue derramado. O rastreador se defendia dos meus golpes com maestria e eu fazia o mesmo com ele. Chegamos a lesionar um ao outro, mas nada com impacto o suficiente para dizer que alguém ali tinha vantagem.
– Tantas cabeças que me enviou... Achei que era um adversário digno. – O sorriso debochado era para me provocar.
– Vamos fingir que não está cansado, velhote? – Rosnei, tentando o desestabilizar tanto quanto ele fazia comigo.
Porém, um movimento abrupto a minha esquerda cativou minha atenção. Petrik se rastejou para me atacar, mas Príntia entrou na frente. Por pouco a rebelde não foi mortalmente atingida, o ataque sendo interceptado pelo escudo de Tracy. Contudo, a proteção dela não foi forte o bastante e no segundo embate se rompeu, sendo a mulher atingida e perdendo sua mão.
Vendo que um terceiro ataque vinha pela frente, chutei o peito de Thomas apenas visando ganhar tempo para ir ao resgate da mulher.
– Enny! – Assim que encontrei os olhos ônix, a garota sabia bem o que deveria ser feito. Treinávamos como combater juntos.
Ela me lançou em direção a Petrik com velocidade e eu cortei a mão da besta com minhas espadas juntas, separando o anelar do médio, enquanto ele descia o membro para finalizar minha colega. Luna e Enny juntas levitaram a besta e a afastaram de mim e Príntia. Peguei a mulher e gritei para Tracy fazer nossa defesa enquanto a levava para a carroça.
Notei que os olhos de Enny sangravam com a força que ela fazia para coibir a aproximação de Petrik e Thomas, mesmo tendo ajuda de Luna que levitava o menor deles. Notei então que os demais servos já estavam mortos ao nosso redor e as outras garotas estavam perto da carroça.
– Se fugirmos juntos eles vão nos seguir. – Aline constatou o óbvio.
– Li, Luna e Jane, vocês vão junto com Emanuel e Príntia. Eu, Angel, Tracy e Enny vamos os levar até o portal mais próximo. Nos encontramos no ponto de acampamento. – Disse enquanto colocava a mulher na carroça recheada de barris. – Li, acha que consegue estancar o sangramento?
Desde março, Aline vinha treinando com Honesh, aprendendo a arte da cura. Confiava que ela salvaria a vida de uma das melhores lutadoras da rebelião.
– Tá difícil por aqui! Se puderem ajudar, agradeço! – Enny gritou e percebemos que os dois guardas iam vencendo sua barreira. Luna tinha parado de a ajudar, já entrando na carroça.
Assim que Emanuel deu o sinal, os livitares lançaram uma corrida e desapareceram na mata. Sozinhos com os dois servos, cada um se preparou. Com aval de Angel, Enny baixou sua barreira, tentando fingir que não estava fragilizada.
– Sem mais dois contra dois, pequena? Você já gostou de jogos justos, hein?
– Vocês dois não cansam de apanhar de mim?
Petrik pegou uma rocha menor e jogou em Enny, forçando-a a parar as provocações quando seu ombro foi acertado. Tomou essa porque foi exibida e egoica. Era um ponto para corrigir em treinos futuros. Com apenas um braço, a minha protegida parecia indefesa frente a Petrik, então sinalizei com o olhar para Angel ir a ajudar. Novamente, só eu e Thomas, como eu queria.
– Se Victor souber o que Petrik fez a pequena... – Thomas estalava a língua. – Acho que ficaria com tanta raiva quanto você agora.
– Não foi diferente do que você fez. – Rosnei
– Eu não mato exceto que me mandem... Já meu amigo quer vingar aquela situação em Rheyk.
Olhei para as garotas. Enny desviava de outras pedras lançadas. Angel foi acertada pela cauda de Petrik, sendo protegida do impacto pelo escudo de Tracy. Aproveitando minha distração, Thomas atacou. Apesar de esquivar, a lâmina de sua foice ainda abriu um longo corte superficial em meu peito. Só que, quando ele se aproximou para me atacar, também o feri. Do seu olho até o canto da boca agora escorria sangue. Contudo, o rastreador sequer pareceu sentir dor. Invés de recuar, ele parou ao olhar para o lado e cruzou os braços em suas costas.
– Eu tenho uma oferta, Nathan Jular. Você pode se vingar pelo passado e tentar me matar ou salvar sua protegida. Eu luto com a líder e a loirinha. Prometo pegar leve, se isso lhe consola.
Escutei um grito. Tracy tinha tido outro campo destruído. A brisa criada pela minha protegida mal fazia dano à quimera monstruosa, mesmo com Angel lhe tirando os sentidos. Meu adversário abriu um sorriso e apontou para elas. Não tardei em fazer minha escolha. Viveria outro dia para me vingar, mas aquelas três ficariam seguras.
– Tracy, escudos! – Falei enquanto corria até elas.
Oito bolas rosas surgiram de maneira espaçadas no ar. Pulei de uma em uma, como quem subia em uma escada, até ficar da altura de Petrik e me joguei em queda livre, com as lâminas voltadas para baixo. As espadas atravessaram a carne dele e a besta se debateu, lançando-me longe. Minha queda foi amortecida pelo pequeno corpo de Enny. A conhecia bem o suficiente para saber que ela se colocou nesta posição para me proteger.
Deitados nos chão, olhei para as outras duas que estavam recuando para não morrerem pelas mãos dos servos de Victor. Como aquela aberração ainda podia estar viva com duas facas fincadas em suas costas? Não tinha tempo para desvendar mistérios.
– Não consigo usar meus dons assim. – Enny me puxou quando tentei me colocar de volta no confronto. – Coloca meu braço no lugar agora, Nate!
Sem hesitar, obedeci ao comando dela. Assim que conseguiu mexer o ombro normalmente, Enny fez um movimento brusco ascendente com as mãos e uma densa camada de terra subiu, impossibilitando ver mais do que um palmo a nossa frente. Ótimo, ela nos deu uma cortina de fumaça. Aproveitando essa distração, nós quatro corremos para mata.
***
Corremos por um bom tempo mata adentro até que Angel pudesse nos garantir que não havia ninguém nos seguindo. Sem o pico de adrenalina, deixei meu corpo cair apoiado no tronco de uma árvore negra. Tracy se apoiou em seus joelhos. Do outro lado, Enny se deitou no chão, puxando seu braço machucado para si. Todavia, Angel mantinha a postura firme e mal se mostrava cansada. Admito, a líder tinha uma resistência física ímpar.
Meu peito queimando me lembrava do ferimento. Olhando para baixo, vi a mancha de sangue. É, não tinha sido tão superficial assim. A loirinha, quando me olhou, se prendeu ao horror e avisou a Ang, quase que pedindo para ela tomar uma atitude.
– Tira a camisa, Nate. – Angel usava seu tom de líder.
– Essa frase soa tão errada! Sorte sua David não estar ouvindo. – Brinquei, tirando dela um sorriso e a desmontando da pose de guerreira. Mas, claro, não tardei em a obedecer.
– Enny, você consegue cuidar do corte de Nate? – Após um suspiro, minha protegida assentiu. – Tracy, ajuda ela. Vou ficar monitorando se alguém se aproxima.
Apertando o braço recém descolocado contra o peito, Enny se levantou e se aproveitou da ajuda de Tracy para cortar o tecido da capa que ela vestia e para separar uma pasta que estava na bolsa que a loirinha usava. A minha protegida então, nitidamente sentindo dor, aplicou a gosma fétida em meu corte e passou o tecido ao redor do meu troco para proteger a área.
No último mês e meio, vínhamos tendo duas a três missões por semana: visitando fornecedores, desviando recursos ou minando o poder de vários grupamentos ao redor de vilarejos em todo o continente. Chegou ao ponto de ter missão apenas com nós dois. Isso fez com que aprendêssemos a nos comunicar com poucas ou nenhuma palavra durante as batalhas.
Agora, por exemplo, ela me implorava para ficar bem. Me julgava, mas não podia evitar de achar satisfatório o contato de suas mãos em meu corpo. Como eu desejava que ela me quisesse... Para evitar transparecer isso, afinal Enny mesmo disse que seríamos só amigos, eu comecei a puxar papo com Tracy e Angel sobre nossa movimentação.
– Estou sentindo um portão. A energia dele não parece estar muito distante.
Após um momento para recuperarmos o fôlego, voltamos a caminhar. As três me seguiam. A floresta pouco a pouco ia tendo suas árvores mais espaçadas, secas e esbranquiçadas. Devíamos estar nos aproximando da área que circulava Cagecha. Há 20 anos uma seca se iniciou e, mesmo estando próximos do maior lago do continente, aquela terra se tornava cada dia mais infértil. Era como se uma doença tomasse a vida de Rheyk.
Finalmente estávamos chegando. Eu sentia o pinicar em minha pele, indicando que o portão estava próximo. O cheiro era adocicado, quase como uma loja de chocolate. Admito que meu estômago roncou. Mataria por um arcux.
Afastava a última camada da gramínea alta, quando a mão de Angel encostou em meu ombro e ela disse:
– Nate, para. – Seu olhar era carregado de pânico.
Nós quatro vimos um mercenário e dois soldados de Victor, pouco transformados, terminando de massacrar um grupo. Enny quis agir, mas a segurei. Não havia mais sobreviventes.
Era um minúsculo vilarejo que parecia ter sido condenado ao eterno silêncio. Assim que os três partiram, nós quatro nos permitimos entrar no ambiente. Homens, mulheres, crianças. Todos assassinados brutalmente.
Enny puxou Tracy para si, abafando conscientemente o choro da loirinha. Angel pegou um bonequinho de madeira, tentando esconder o quanto tremia. Queria ser hipócrita e dizer que, com anos de batalha, essa cena não me chocava. Mas era uma puta mentira. O cheiro de sangue impregnava minhas narinas e revirava meu estômago. Contava, no mínimo, dez crianças e três bebês nos braços de suas mães.
– Por que eles fizeram isso? – Até mesmo Angel parecia estar desestabilizada.
Olhando para o cadáver de um menininho, encontrei minha resposta. Manchas escarlates em seu peito. Um infectado. Peguei meu canivete, fui até Enny e cortei quatro pedaços de tecido, entregando para cada uma das garotas.
– Cinéria. Tapem a boca e o nariz. Transmite pelo ar. – Afastei o cadáver de quem pensei ser o pai do rapazinho, dando passagem para as garotas. – Se os contaminados não respiram, não há surto.
– Mas... – Enny balbuciava, os olhos marejados. – Tinha muito mais óleo no armazém... Daria para fazer mais remédio. Victor conseguiria curar todos eles.
Ali estava o delírio, fruto da romantização desse mundo. Victor era um desgraçado que mataria a todos os doentes se fosse conveniente. Os rebeldes estavam certos. Eu vinha protegendo demais as seis garotas da realidade e as tornava fracas, especialmente Enny. Estava mais do que na hora de me redimir pelo meu erro. Parei, encarando as três.
– Por que você acha que a rebelião existe, Enny? Por que Victor é um péssimo administrador? – Um "Pff" me escapou, carregando meu deboche. – Ele pode ter te tratado até bem, mas ele é louco, demoníaco. Isso é o mínimo que ele faz. Hora de vocês acordarem para realidade. Rheyk não é um joguinho. Rheyk está em guerra.
Vi no olhar de Tracy que aquelas palavras atingiram bem aonde eu queria, ela parecia finalmente entender a seriedade do meu mundo e parecia pronta para agir. Com Angel, eu não me preocupava. Oito meses foram só eu, Aline e ela. No começo, pegávamos as missões mais macabras para ganharmos respeito da liderança da rebelião. Por isso, as duas entendiam bem quão tenebrosa era a realidade daqui. Mas no olhar de Enny ainda resistia o brilho da teimosia tão típica dela. Parei em sua frente, propositalmente, vestindo-me de minha carcaça de general.
– Victor é as trevas. Nós precisamos de luz.
Engolindo o choro, Enny apenas assentiu após um leve recuar. Teria ela captado o que eu disse? Só podia esperar que sim. Virei sobre meus calcanhares e cruzamos o mar de corpos até chegarmos ao celeiro onde estava o portão.
***
Depois de outro dia, estávamos finalmente na enfermaria na sede da rebelião. Príntia repousava em seu leito, Luna ajustava meu curativo e Aline e Emanuel tinham ido com Honesh começar a preparar o remédio. As outras quatro garotas nos faziam companhia. Enny me chamava a atenção, sisuda e introspectiva.
O clima no ambiente ficou tenso quando dois homens entraram no recinto. Os outros dois Generais. Príntia tentou se colocar de pé para fazer o cumprimento devido, mas a mão de Patcho em seu ombro a impediu.
– Bom saber que temos mais uma para o grupo dos amputados. – Ele ergueu sua prótese com um sorriso companheiro. – Os melhores sempre têm uma parte do corpo faltando.
– Eu ainda estou inteiro, Herquio. – Brinquei, ignorando a formalidade.
– Ainda, Monteiro. – Ele deu uma piscadela. – Se não acabar morrendo em batalha, terá muito tempo para perder um braço ou outro.
– Parabéns, Monteiro e garotas, pelo sucesso na missão. – Alberto media as palavras comigo desde o Círculo Azul. – Honesh deu prazo de três dias para o remédio estar pronto. Salvaremos os nossos.
Quase todos pareciam celebrar a notícia nem mesmo que fosse com um sorriso. Contudo, Enny se mantinha quieta, encarando o chão. Parabenizando as garotas mais uma vez, os dois começaram a se retirar do recinto.
– E quem salva o povo? – O sussurro dela foi seguido por uma risada amarga. Sua voz paralisou os generais. – Vocês sabem dos vilarejos?
Patcho foi o primeiro a regressar, parando de frente a minha protegida com o semblante curioso. Ele queria que ela continuasse a falar para tirar mais informações da jovem. Porém, Alberto interveio, atrapalhando os planos do mais velho ao dizer:
– Eles escolheram não se juntar a causa. Quem não é nosso, é contra nós. Escolheram o próprio destino.
Ela me olhou e eu apenas dei de ombro. Alberto tinha noção que a doença se espalhava pelas cidades? Que já atingindo a zona norte do continente? Por que eu não fui informado dessa porra? A incredulidade em minha face foi o suficiente para Enny entender que eu sabia tanto quando ela sobre tudo.
– Claro, os dois sabiam. Imagino que deixar crianças e bebês morrerem por uma doença deve ajudar muito na causa. Ser omisso aos que precisam deve arrastar multidões para se alistarem na rebelião. Não é?
Usualmente, quando tinha raiva, Enny afinava a voz e adquiria respostas que, apesar de grossas, sempre pareciam vazias de ameaça. Quase como se um cachorrinho de madame que ninguém se preocupa em repreender ou temer, na verdade, acha até engraçadinho. Porém, desde que ela entrou no Salão de Reuniões no dia do ataque de Thomas, sua postura mudou. Ela carregava semblante sério, a escolha de palavras ácidas, a voz que se agravava e o olhar que parecia tornar o interlocutor um possível alvo. Essa sua nova versão exalava perigo. Por causa disso, notei Alberto dar um passo para trás.
– Enny, se não estão na causa, os consideramos futuros marcados. – Intervi.
– Thomas era da rebelião, não? – Seu olhar gélido foi para a ferida em meu peito.
– O que sugere? – Príntia se intrometeu, a voz carregada de rancor. – Deixarmos nossas crianças morrerem para salvar covardes?
– Não seríamos nós os covardes ao permitirmos o massacre de inocentes?
– General Monteiro, controle sua protegida. – General Herquio falava sério. Seu ego fora atingido. – Parece que ela não quer sair de seu mundinho de ilusão. Menina, a Rebelião deve sobreviver acima de tudo.
Bufando, a garota se pôs de pé e, andando ao redor dos dois, começou a falar:
– A Rebelião deve sobreviver... Mas como? Temos mais baixas do que nascimentos. Não temos pessoas querendo entrar porque a imagem do movimento está manchada tanto quanto a de Victor. Patcho, Alberto, Nathan, sejamos honestos, neste ritmo, a Rebelião já está condenada.
Apertei os punhos. Ela estava usando dados de informações que lhe passei em sigilo durante nossas missões. Era uma preocupação nossa, o futuro da rebelião. Mas lá estava Enny, jogando que traí o sigilo da alta cúpula em frente aos meus pares. General Herquio me fuzilou com o olhar, haveria represália por esse insulto. Porém, logo sua postura relaxou.
– Então, por que estamos lutando, não é? – Patcho riu, descontraído
Conhecia o homem de 70 anos muito bem para saber que, apesar do tom casual, sua mão estava preparada para pegar a adaga que repousava no cinto e acertar a garota petulante que era foco do meu afeto. Institivamente, me coloquei em pé, pronto para a proteger.
– Há uma solução. – Ela encarou Patcho firmemente, continuando após ele manear a cabeça. – Mudar a percepção do povo. Lógico, temos que tratar os de dentro primeiro. Mas faremos mais remédio do que temos doentes. Reservem uma parte para nossa necessidade e distribuam em outra nas cidades. Deixem que se espalhe a notícia que a rebelião cuida do povo enquanto Victor o mata.
Porra, não era uma má ideia. Me peguei a encarando com admiração e, devo dizer, percebi o mesmo semblante em Alberto, mesmo que o corno fingisse que não. Patcho, como sempre, parecia indecifrável, atento a todos.
– Deixe o povo se rebelar contra Victor. – Ela olhou especialmente para Príntia. – Você escolheria lutar ao lado de quem salvou a vida dos seus filhos ou de quem os condenou à morte? De quem mata sua fome ou de quem lhe faz trabalhar para viver na miséria?
– A ideia é boa. – Angel se adiantou, ladeando Enny. – Se captarmos novos rebeldes, aumentamos o número de missões e pegamos mais mantimentos, podendo continuar esse processo de ajuda da população. Isso vai inflamar as pessoas contra Victor. Talvez até o ponto de pequenos grupos rebeldes surgirem independentemente de nós.
– Isso! Essas pessoas só conhecem a miséria. Já passou da hora de mostrar que há mais na vida. – Jane se juntou a Enny e Angel. – Precisamos deixar claro que a rebelião pode levar Rheyk a um futuro melhor.
– O povo de Rheyk precisa de esperança, precisa da Rebelião. – Enny concluiu, desfazendo-se da rigidez e trazendo doçura à voz enquanto se aproximava de Patcho. – O que me dizem, generais?
General Herquio a sondou com seus olhos analíticos, procurando respostas para perguntas que eu sequer imaginava.
– Monteiro, quero que as seis garotas escolham as cidades que mandaremos o remédio. – Assenti ao comando de General Hequio. – Pessoa, dê acesso às mensagens sobre cinéria ao rapaz. Meninas, decidam quem vive e quem morre. Já passou da hora de adquirirem casca grosa.
Patcho se aproximou de Enny e lhe murmurou algo ao ouvido, deixando-a pálida antes de sair. Teria ele a ameaçado? Essa ideia me queimava a garganta. Atrás de nós, Tracy parecia em pânico com a última frase proferida por ele. Angel e Jane foram a acalmar junto com Luna. Mas Enny continuava olhando para onde antes Herquio estava, mordendo o lábio com força, não tardando para que eu visse o brilho do sangue. Em uma resposta intuitiva, acariciei seu braço e ela relaxou, ofertando-me um falso sorriso tranquilo.
– O que ele lhe disse? – Murmurei com raiva.
– Que até parece que a coroa foi feita para mim. – Assim que proferidas as palavras, o semblante de Enny foi de arrependimento. Ela olhou por sobre o ombro para uma Tracy que era amparada pelas amigas. – Desculpem envolver vocês nessa. Se quiserem, escolho sozinha. Minha ideia, meu peso.
O olhar de Príntia estava atento a Enny com admiração. Era bom ver que os demais estavam adquirindo confiança pela minha garota.
– Não, vamos fazer isso juntas. – Jane respondeu, puxando a caçula pelo pulso. – Nós seis.
– Vamos ser mesmo assassinas? – Tracy tremia, segurando na mão de Luna.
– General Herquio falou besteira. – A ruivinha de voz risonha sorriu. – Não ia ter remédio, todos morreriam. Estamos escolhendo quem vamos salvar.
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