Sob outros olhos - Meu pai
(1020)
Dia 10 de novembro
– Oi, papai.
Queria não carregar tanto peso em minha voz. Mas também queria que na minha frente estivesse o homem da foto e não uma lápide. Dia 10 de outubro, desde o ano passado, ganhou outras cores. Da última vez, um ar de despedida. Hoje, um aperto de saudade. O primeiro aniversário dele sem ele. João Pedro foi para casa dos amigos, tentar evitar os sentimentos angustiantes da data. Mamãe estava em casa, chorando.
Eu não podia deixar meu amado pai sozinho no seu aniversário.
Sentei-me na grama, abrindo a embalagem do yakisoba que trouxe, sua comida favorita, e falando abertamente de tudo que acontecia na minha vida, pela primeira vez. Rheyk, as garotas, Nathan, Enny, as suspeitas de Aline... Queria ter contado tudo a ele quando estava vivo. Pergunto-me se ele ficaria orgulhoso ou, quem sabe, me criticaria pelos meus atuais comportamentos...
Estava sendo a imagem da perfeição que mamãe queria que eu fosse, tentando compensar os comportamentos de JP. Nunca podia estar cansada, infeliz, ser frágil. Estava exausta de sempre estar preocupada em como minha mãe me via, se a orgulhava. Nenhuma escolha era minha, meu futuro já estava desenhado por mamãe. Uma miss, modelo, viajando e ganhando dinheiro sendo a perfeita representação de beleza e finesse que ela tanto pregava. O meu único ato de rebeldia há meses era Nathan e esse já não me queria por perto, mesmo com minha resistência.
...
Não deixar Nate ir. Nunca me humilhei por ninguém que tão pouco me queria. Mas, me doía só de pensar em conhecer outro alguém e saber que nunca mais ouviria meu pai dizer se aprovava ou não. Nathan foi o único que teve esse aval. Lembro-me dele falar:
"Pela primeira vez, você acertou. Um rapaz muito educado. Deve ter uma boa família e ter sido muito bem criado."
– Patético, não é? Mas, prometo, vou superar isso. Certeza que o senhor falaria poucas e boas para mim. – Ri, imaginando a cena.
Papai quase nunca sorria. Era muito sério com seus óculos redondos de lentes amareladas, que escondia seus olhos tão azuis quanto os meus. Porém, comigo e meu irmão, ele sempre tinha um sorriso gigante, quente e acolhedor. A memória me veio. Ele brincando na casinha de boneca que construiu para mim quando não passava de uma menina. Era isso que tinha que ficar. Não os seus últimos meses em uma cama de hospital, tomado pelo câncer... Já fazia dez meses de sua partida.
Escutei um barulho de passos. Me virei para encarar a origem e encontrei Angel vindo em minha direção. Minha amiga se ajoelhou ao meu lado e afastou mais algumas folhas caídas em frente a lápide. Tinha falado com ela da minha programação de hoje, pedindo liberação do treino.
– Também sinto muita saudade de tio Ethan. Ele foi a melhor referência de pai que eu poderia ter. Você teve muita sorte, amiga. – Ela me puxou para um abraço.
Não me segurei, apenas me entreguei ao seu afago. Só ela e Nathan vivenciaram os últimos seis meses do meu pai. Foi tudo tão rápido que, em parte, acho que foi bom. Ele não sofreu tanto.
Angel me soltou e apontou para minha direita. Seis pessoas estavam de pé, ombro a ombro, com travessas em mãos e me olhando.
– Enny estava testando os dons e acabou escutando você falar que era aniversário de tio Ethan. Ela sugeriu fazermos um piquenique e o pessoal topou. Mas... Eles só vêm se você quiser. A escolha é sua, minha irmã de alma.
Olhei para aquele grupo. Minha segunda família. Aquela que, apesar de estarmos em meio a uma guerra, me dava mais paz do que a minha própria casa. Especialmente depois que acertei meus conflitos com Enny. Ela não era tão ruim assim.
Ergui meus braços e acenei para que viessem para perto. As quatro garotas e os dois rapazes vieram animados. Fiquei de pé e abracei cada um, demorando-me mais ao abraçar Nathan. Não foi algo romântico, ele simplesmente sabia o quanto quebrar esse muro era algo difícil para mim.
– Estou orgulhoso, Jane. – Ele murmurou no meu ouvido. – Certeza que Ethan também está.
Sentamo-nos na grama, distribuímos a comida e Angel contou um pouco como meu pai foi importante para que nós fôssemos amigas, no quanto ele brigava com os pais de qualquer outra criança que ousasse dizer algo sobre o pai dela. Me vi lacrimejando. Eram mais de 12 anos juntas, ela conhecia cada fresta da nossa vida e eu a amava por isso. David a abraçou e tocou na minha mão, dando um sorriso contido para mim. Ele era um bom rapaz, perfeito para minha melhor amiga.
– Então, Jane, quais histórias sobre Ethan Lopes você gostaria de compartilhar com a gente? – Enny me deu um enorme sorriso, segurando minha mão.
Odiava admitir, mas tinha algo naquela menina – acho um quê de ingenuidade ou sinceridade no olhar – que fazia com que eu quisesse ter sua amizade e soubesse que era a coisa certa a se fazer. Será que ela ainda seria assim se soubesse de tudo que mantemos escondido dela? Das teorias de Aline? Do que tia Lúcia está sugerindo fazermos? Do fundo do meu coração, queria a confrontar e que ela me dissesse se as teorias eram mentiras ou não. Agir por trás assim era contra tudo que eu acreditava ser certo, mas eu obedecia a minha melhor amiga e ela pediu para que esperássemos.
Balancei a cabeça para esvair esses pensamentos. Apertei a mão de Enny em recíproca e comecei a contar todas as memórias de uma forma alegre.
Perto do anoitecer, já tínhamos chorado, rido e brincado bastante. Do fundo do meu coração, não esperava me sentir tão bem sendo tão aberta com eles. Por mais de um ano, vinha me escondendo em camadas acima de camadas para que não me enxergassem como frágil. Mas... Vendo o que via agora, percebi que não tinha o menor sentido. Aquele grupo me acolheu, me fez sentir forte em minha fragilidade e era a família que a minha jornada criou.
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