Sob outros olhos - Círculo Azul - Parte 1
Essa narrativa contará a história do que aconteceu de quinta (quando General Alberto atacou Enny e as garotas) até a chegada de Nathan no restaurante no sábado.
Doutor Honesh não demorou em responder nossa chamado. Ele veio com Alberto, que trouxe dois frascos do elixir de cura, entregando para Angel e Tracy. A líder pegou bruscamente, sem sequer agradecer. Estranho, a garota alta era famosa por ser muito educada.
– General Monteiro, preciso que abra espaço para mim. – A mão do baixinho louco repousou sobre a minha. Eu vinha segurando Enny para a impedir de se machucar.
Aline me puxou sutilmente para longe da minha protegida. Ela se contorcia, afundando a cabeça no meu travesseiro, permitindo-se a emitir gritos horripilantes. Doutor Honesh pôs um tecido na boca dela. Quis avançar nele, mas o aperto firme da minha amiga me dizia para ficar quieto. O curandeiro tirou uma pedra ônix gigante de sua maleta e passou por cima do corpo de Enny; o objeto mudando de cor e intensidade de luminosidade até adquirir um brilho intenso ao atingir um pouco abaixo do seio dela.
– Nunca vi isso. – O semblante lunático do velho estava atordoado. O homem se virou para a maleta, tirando diversos itens de maneira frenética. – Pelo Sábio! Como é possível isso?
– O que está acontecendo? – Tracy tinha a voz aguda de pânico.
– Essa energia... Esse poder. Ela não devia ter expandido tanto de uma vez. Não tinha poderes antes, certo? Os rios energéticos nela não estavam construídos nem a porção do cérebro que controla a magia formada. É como se uma barragem estourasse e não houvesse aqueduto para conduzir essa água que, desenfreada, pode destruir tudo que toca. Inclusive ela.
Ele não teve qualquer cautela de mensurar as palavras. Não era de seu feitio. Aquele homem nunca aliviava as más notícias. Usualmente eu apreciava isso, mas agora queria que ele fosse diferente e assegurasse que tudo ia ficar bem com Enny. Eu precisava saber que ela iria melhorar tanto quando do ar para respirar.
– Por que não tiramos a joia? – Jane estava igualmente perturbada, encaminhando-se para desabotoar o colar de Enny.
– Não toque nisso! – A voz do curandeiro foi profunda, paralisando a todos no local. – Por algum motivo, ela não morreu ainda. Seres ordinários não sobrevivem a isso. O corpo dela é a única coisa que impede essa energia de escapar e nos matar. Vão ter que confiar que ela vai suportar.
Eu queria gritar para ele tomar alguma atitude, fazer algo. Porém minha voz estava presa no peito, assim como meus olhos estavam cativos de Enny. A paralisia da incapacidade me tomando. Ela chorava de dor, suas unhas tão fincadas na palma que começavam a cortar e as pernas empurravam a cama como se almejassem fugir daquele sofrimento.
– Não há nada que possamos fazer? – Angel tinha a sobriedade necessária para o momento.
– Tentar controlar a dor e esperar que ela sobreviva. – O homem já aplicava uma injeção nela. – Amanhã virei aqui para a acompanhar. Qualquer coisa, me chamem. Vou deixar a pedra sob o esterno dela para ajudar a redirecionar a magia da menina.
– Que pedra é essa? – Aline era a mais atenta ali e por isso sempre fazia os questionamentos certos.
– Obdium. É a mesma que tem nas duas joias da menina. É uma rocha rara que se dá apenas ao redor da Vila de Maurin. Ela funciona como um organismo vivo que sente a magia em Rheyk, podendo direcionar ou armazenar.
Sem dizer mais uma palavra, o homem guardou todo seu material e saiu da minha casa. Luna e Tracy foram se sentar na minha cama, tentando consolar Enny. Então, na perna da mais nova vi uma mancha vermelha em sua calça rosa.
Meus olhos então sondaram cada uma das meninas. Luna e Jane estavam intactas. Angel tinha uma marca similar a de Tracy na roupa, mas ambas sem corte porque o elixir as sarou. O elixir que Alberto trouxe. Espera. Em que momento aquele corno manso foi embora?
Então, sondei Aline. Um fino corte no pescoço e o rastro de sangue seco. Minhas mãos institivamente envolveram sua cabeça, erguendo seu queixo para que eu pudesse examinar melhor. A boca rígida da garota e seu olhar furtivo eram o suficiente para eu saber que ela escondia algo.
– Quem fez isso? – Minha voz era um rosnado entre meus dentes trincados. Ninguém machucava Li e ficava ileso.
– Nathan. – Angel murmurou, mas tinha uma fúria latente em cada entonação. – Pode me acompanhar?
Fomos para o extremo oposto da casa e então a líder White – que era distinta da minha amiga Angel – começou a me contar de tudo que houve na clareira. Ouvi atentamente cada palavra sem a interromper, deixando que ela usasse todo o vocabulário pejorativo que conhecia para expressar sua indignação.
Quando as meninas vieram treinar mais ativamente em Rheyk e participar de missões com a Rebelião, eu fiz um acordo com a líder do quinteto. Angel me passava com antecedência os locais e horários que treinaria com as garotas e eu garantiria uma tropa minha por perto para dar suporte caso algum servo de Victor aparecesse. Apenas esse grupo que, teoricamente, era de minha confiança saberia a exata localização delas, a fim de evitar que algum espião pudesse as alcançar.
– Não foi uma traição dos meus soldados. – Constatei o óbvio. Ela estava certa de sentir raiva após o acontecimento, mas eu não ia culpar inocentes. – Se um General chega pedindo informações, eles poderiam ser considerados traidores se não dissessem.
– Então trate de controlar esse General. – A rispidez dela até me fazia crer que ela me mataria para garantir a segurança das meninas. – Eu segurei o grupo hoje para preservar você e seu cargo. Mas, da próxima que ele ousar se meter conosco, essa estrela vai terminar no olho dele e pode dar adeus a nossa ajuda na causa. Entendeu?
A garota pegou minha mão e depositou a estrela cheia de espinhos e manchada de sangue que Alberto atirou nela.
– Não se preocupe, eu vou resolver isso. Ele não vai chegar mais perto de vocês.
– Acho bom. – Ela bufou. – E eu não quero mais tropas sabendo da nossa localização daqui para frente. Eu e as outra cinco já estamos aptas o suficiente para nos defendermos sozinhas.
Mudamente concordei. Não estava realmente de acordo, mas, nos humores ali, era o mais sensato. Depois que resolvesse o problema de Alberto, renegociaria essa tropa com Angel. Olhei para a minha cama, em fúria ao entender o motivo que fez Enny estar daquele jeito. Antes, achei que tinha sido um inimigo externo e estava pronto para o estripar. Todavia, sabendo que era alguém de dentro e até mais influente que eu, não poderia resolver da forma que desejava.
– Ela vai sobreviver. – Angel capitou qual era o foco de minha atenção. – O filho de uma rameira de fato a fez controlar os dons. Enny tem muitos poderes, Nate, e mostrou um senhor talento no domínio deles. Nem eu ou as meninas fizemos algo tão bem em tão pouco tempo.
– Enny tem o espírito de guerreira. É um talento nato para isso. – Mudei meu foco para Angel. – Vou garantir que Alberto tenha a punição devida.
Escutei-a questionar como eu iria fazer isso, mas já me encaminhava para fora da casa. Fui para a quadra de treinamento. As pessoas me olhavam espantadas, daqui ainda se podia escutar os gritos ocasionais que Enny dava. Cada vez que a escutava sofrer, um arrepio descia pela minha espinha, lembrando-me que não estava lá para a proteger.
– General Monteiro! – Felipe Freito se aproximou da margem da arena. Ele tinha um gigantesco sorriso, observando de soslaio as duas meninas que o miravam. - Veio zombar da ralé? Soube que a maria sangrenta estava na sua cama gritando. Realizou um sonho, meu amigo?
Estufei o peito e o encarei com um olhar gélido. Só usava essa carcaça quando agia meramente como general. Meu amigo notou o desejo de vingança em meu olhar.
– Quero saber quem estava quem estava monitorando as garotas. Te passei a localização delas. Preciso dos nomes que você escalou. E ninguém pode saber dessa nossa conversa.
Cinco nomes me foram falados. Nenhum que eu tivesse plena confiança. Engano-me, um talvez valesse à pena investir pela lealdade. Mas, ainda assim, a trupe reunida pelo meu cabo era uma vergonha e nada digna da magnitude da missão que eu deleguei.
– Felipe, estou lhe falando como amigo porque da próxima lhe punirei como General... Nunca mais ouse pegar uma função que eu lhe atribuí, no grau de importância que tinha, e faça pouco caso. Se algo acontecer com qualquer uma das seis meninas por desleixo seu, eu lhe tiro da minha tutoria e lhe boto debaixo da asa de Alberto. E vá por mim, esse é mínimo que eu farei. Fui claro?
– Claríssimo. – Os nódulos de seus dedos ficaram brancos com a força que o cara segurava o cabo da espada. Após respirar um pouco, desmontou o franzido da raiva. – Posso me desculpar pagando uma bebida hoje? Ou desenrolar uma boa companhia para você passar a noite entretido?
Estava puto com ele, mas nossa amizade era muito mais profunda e, da minha parte, não se quebraria por essas coisas. Separar lazer de profissão, esse era meu lema para todas as relações. Cocei o rosto, contendo um sorriso porque já sabia o que viria de resposta dele.
– Não posso sair e sobre a companhia... Enny vai dormir na minha casa, não preciso de mais ninguém. Quero estar lá para a proteger de...
– Sei bem que tipo de proteção você tá querendo fazer. E bom se proteger mesmo para evitar um resultado inesperado daqui a nove meses. – Ele me deu um murro no ombro.
– Volta para o treinamento e bota a porra de uma camisa, Cabo Freito. – Apesar de evocar a patente, meu riso mostrava a informalidade entre nós. – Mostra decência.
Me afastando da quadra de treinamento, comecei a me dirigir sentido sul. Na periferia da Rebelião, algumas famílias se juntavam e faziam residências com uma arquitetura que mimetizava os bories. Na paisagem quase árida com pedras brancas empilhadas, era nítido que o tempo de seca estava se aproximando. Vim a procura de um moleque. Pelo que sabia, um dos cinco nomes estava lá, dividia o abrigo com outras crianças órfãs.
– General Monteiro. – O garoto loiro de 15 anos evidenciava nervosa surpresa, prestando continência assim que me viu.
– Emanuel. Boa tarde. Podemos conversar? Em particular. – O menino assentiu ao meu pedido.
O moleque, que parecia correr da puberdade, era exatamente aquele por quem Enny voltou no dia do confronto com as tropas de Victor. Quando Emanuel soube que a minha protegida tinha tomado a corajosa ação, arriscando sua própria vida, ele praticamente se ajoelhou aos meus pés, implorando para vir para uma de minhas tropas e servir a garota também. Não era bom em quase nada além de confecção de armadilhas para caça, mas tinha uma fé na causa que me lembrava o meu começo.
Sentados sozinhos dentro daquela moradia, comecei a extrair cada verdade do que realmente aconteceu com meus soldados para que abrissem a boca e revelassem a localização das meninas. Um detalhe solto me chamou atenção. Uma vírgula que Emanuel nem pareceu notar, mas que, se eu estivesse certo, me daria o direito de destruir Alberto sem arriscar minha carreira ou colocar as garotas em perigo futuro.
***
Quando estava regressando ao centro da Rebelião, Angel me chamou através de seus dons. As garotas iriam para casa, estavam exaustas psicologicamente de ouvirem Enny gritar. Jane chamou a neta de Patcho Herquio - Mariah - para acompanhar a minha protegida até que eu regressasse.
– Eu sei o que falamos, Nate. Mas não faça nenhuma besteira que se coloque em risco.
– O corno tirou sangue de Aline. Vou parar quando minha mão estiver com o sangue dele. – Minhas narinas se dilatavam em fúrias. – Só precisava achar uma via que me permitisse isso sem perder meu cargo. E acho que consegui. Passarei uns dias aqui em Rheyk e não quero a presença de vocês por enquanto. Fale com tia Lúcia para esperar Enny amanhã no portão. A deixarei lá assim que Honesh a liberar.
Ela concordou seriamente com meu planejamento. Com um suspiro pesado, a garota de despiu da máscara de líder, demonstrando as sobrancelhas franzidas que indicavam tristeza, e me abraçou com força. Não fui recíproco, nunca era em locais públicos em Rheyk. Angel já sabia e não se importou com meu pouco caso.
– Fica bem e se precisar que eu venha, usa nosso código. – Ela olhou por sob o ombro, vendo as meninas começarem a sair de minha casa. – Agora, recomendo vazar ou Jane vai colar em você. Não vamos piorar o clima no triângulo que você criou.
– David te contou? – Essa pergunta estava entalada na minha garganta há uns dias.
A garota de pele de chocolate fingiu zipar os lábios, andando de costas e indo até as garotas. Percebi os olhos de Aline fixos em mim, demasiadamente preocupados. Contudo, fingir não os notar, tomando meu caminho para a casa Herquio. Ela me lia como ninguém. Não queria que visse o demônio da vingança que crescia em mim, arranhando as paredes do meu ser para ser liberto.
Bati na porta da família Herquio e logo fui recebido.
– Monteiro! – Damnora, a mãe de quase 100 anos de General Patcho Herquio, abriu a porta empolgada. – Imagino que não trouxe esses belos olhos aqui apenas para me admirar.
Eu era realmente apaixonado por aquela senhora. Desde que ela veio com seu 10º filho - o último vivo - para a unidade de Rheyk, eu passava horas ouvindo seus causos da juventude. Ela por vezes me lembrava de Katerine, dos meses que a coloquei para morar nesta casa com eles. Os demais da rebelião achavam que a senhora era louca quando falava disso. Na verdade, na sua senilidade, ela era a única que lembrava e sempre me impedia de esquecer.
– Apesar de ser um excelente motivo, hoje não. General Herquio está disponível?
A senhora de cabelos brancos como a neve, entrou rumo ao quarto para chamar seu filho. Aquela casa era acolhedora, decorada confortavelmente. Um lar cheio de vida, de quem tem muito a perder... Nada do que eu queria para minha, precisava da efemeridade.
– General. – Cumprimentei o senhor assim que ele deu as caras. Sua mãe nos ofertou uma sopa quente. – Obrigada, Damnora. Poderíamos conversar em particular, Patcho?
Não o chamar pela sua patente evidenciava que eu ia lhe pedir um conselho de algo que poderia dar muito errado. O senhor, com um sorriso caloroso, concordou. Assim que ficamos sozinhos, comecei a falar sobre os acontecimentos de hoje e minha conjectura.
– Entendi. Tem noção que é uma acusação séria, certo? – Assenti a sua pergunta. – E o que você pretende fazer? Iniciar uma investigação? Arrancar a patente dele?
– Círculo Azul. – Minha voz mal era audível. Nunca me pensei proferir tais palavras. – Se ele sobreviver, pode manter a porra da posição dele desde que não chegue mais perto das garotas.
– Considerando as habilidades de Alberto, é suicídio, Nathan. Lhe treinei para ser mais inteligente que isso. Mas se é o que quer... Vou chamar os representantes de nossas células rebeldes para discutirmos a aprovação do Círculo Azul. Reúnas suas evidências. Tem que ter 70% de aceitação do Conselho, sabe, não é? Agendarei para próximo para daqui a 8 dias.
– Não. – Minha voz saiu mais rouca devido às sombras assassinas de meus pensamentos. – Tenho que pegar ele de surpresa ou conseguirá extinguir as provas. Marque para sábado de manhã. Acharei os portões e trarei um por um dos representantes.
O senhor concordou e eu me pus em pé para partir. Pela janela, pude ver que o céu estrelado já ganhara vez. Mais duas outras visitas e finalmente poderia ir abraçar minha protegida.
– Sabe que, se for negado seu pedido, isso será uma mancha na sua carreira e uma faca no pescoço da Enny, certo? – General Herquio parecia genuinamente preocupado.
– Sim. E é por isso que vou levar um caso irrefutável.
Fechei a porta atrás de mim e tomei rumo a cada de Madame Kia. Usei um livitar - a nossa versão de cavalo, só que com 6 patas e pele mais grossa - para chegar lá mais rápido. A dona do prostíbulo me odiava por ter arrancado uma de suas garotas há quase quatro anos, mas, como eu não proibia meus soldados de irem lá, ela aturava minhas visitas desde que pagasse bem.
Vi quem procurava no canto, se entretendo com duas mulheres tão feias quanto ele. Peguei duas canecas com cerveja no bar e me dirigi à mesa. O homem paralisou ao me ver, sua cara parecia a de um rato com os dentes enormes, nariz reduzido e uma orelha gigante. Doug, um marcado de Victor tão inútil que foi expulso do castelo e rodava como um vendedor de informações. Há quem diga que, devido a sua aparência roedora, ele se comunicava com os ratos das cidades para obter segredos dos outros.
Lhe arranquei uma orelha da última vez que nos encontramos. Peguei-o divulgando para o exército do tirano minha rota de desvio das armas que vinham de Abson, cidade onde o arsenal bélico de Victor era produzido. Não podia o deixar sair sem uma pena, mesmo que fosse útil o manter vivo para comprar informações sempre que necessário.
Assim que me sentei da forma mais despojada que pude, uma garota novinha – não devia ter 14 anos – veio tentar sentar no meu colo. Meu olhar gélido a paralisou e ela regressou ao balcão, obedecendo um movimento meu de cabeça. Meus anos na Terra me faziam achar inconcebível o quanto a infância em Rheyk era roubada dolorosamente. Ninguém mais parecia notar isso.
– Doug, que prazer lhe ver. – Deixei a caneca como um presenta a sua frente. Virei-me e chamei Madame Kia, que não tardou em se aproximar. Tirei quatro pedras pretas e o olhar da mulher cintilou com o interesse. – Pela noite de Doug com essas duas naquele quarto que você me deixou ir da última vez com as garotas.
– Claro, pequeno Monteiro... – A mulher passou a mão pelo meu peito, gerando-me um asco que tive que engolir. – Quer dizer, não tão pequeno pelo que contam as boas línguas.
Assim que ela saiu, levando as duas garotas para as preparar para a noite que teriam, eu e Doug nos debruçamos sobre a mesa, bebendo nossas cervejas de péssima qualidade.
– A informação que você quer deve valer muito. – Rimos como se uma piada fosse dita. Doug testava limites. – Para você o preço vai ser o triplo por causa da pequena parte que me falta.
– Malok. Onde ele está? – Notei o homem estava fingindo confusão mental para encarecer a informação. – Dê seu preço ou descubro por minhas vias e suspendo o serviço de Kia.
– Cem yponk. – Cada pedra negra vinda de Zimbu valia cem de prata, sendo nossa moeda mais cara. Um valor exorbitante que me deixou com cara de surpresa. – Podemos fazer um acordo. Reduzo na metade o valor se você me der informações privilegiadas da garota que a rebelião resgatou no castelo de Victor.
– Porra. – Fingi deboche, escondendo a face com a caneca ao beber. – Achei que Victor era mais poderoso. Com medo de uma garotinha qualquer?
– Qualquer, Monteiro? Ela tem um metro e meio, olhos pretos, meio ruiva, dizem que queimou Katerine e Petrik com raios saindo das próprias mãos, como Victor faz... E, principalmente, dizem que ela dorme contigo. Parece uma garotinha qualquer?
Meu rápido travar de mandíbula deixou claro que ódio ascendia meu peito. Mas não tardei em o controlar, apaziguando a chama da violência que queria tomar forma em mim. O homem captou essa informação e com certeza a venderia como um "a cabeça da garota vale muito para o General Monteiro". Tinha que quebrar essa impressão.
– Ah, por favor! As terráqueas são muito fáceis. Acha que não venho com frequência aqui por que? Tenho elas em minha cama quando quero. – As próximas palavras me rasgaram a garganta ao sair. – Quer a menina? Eu lhe dou. Você faça o que quiser, inclusive a leve para o seu dono. Ele tem a grana e o interesse nela. Pra mim, a pirralha não vale nada além de uma noite.
O olhar ganancioso do ratinho brilhou pelo dinheiro e pela luxúria, sua mão nojenta descendo para coçar a genitália. Filho da puta. Sorri diabolicamente com meus pensamentos. Ele já era um homem morto. Era só questão de tempo.
– Trinta moedas agora. Amanhã a entregue na primeira casa da fronteira com a floresta onde ela queimou Katerine. Somente lá, e depois que eu a provar, é que passo a localização. Monak está bem escondido. Nunca o achará sem mim, então sem joguinhos.
Engoli todas as fantasias que estripava o homem a minha frente para lhe ofertar um sorriso aberto e aceitar sua mão estendida. Peguei cinco yponk e coloquei no bolso, entregando a bolsa com os outros 30 para aquele homem, que se pôs de pé e subiu para receber de braços abertos a agitada noite que viria.
Aproveite, desgraçado. É sua última noite vivo.
Peguei meu livitar e cavalguei, por assim dizer, até a sede da rebelião. Deixei o animal em nossos pastos e corri até a casa da família Freito. Conversei com Felipe abertamente, falando sobre o plano que tinha para nós dois mais o jovem Emanuel no dia de amanhã. Ele conhecia meu pior lado e era o único a quem eu iria querer por perto se fosse revisitar os grotescos hábitos do passado. Pedi que meu amigo fosse junto com o pirralho para a proximidade de onde combinei de encontrar Doug.
Dinheiro e prazer podiam comprar alguém. Mas eu conhecia uma outra moeda de troca, aprendi a usá-la assim que entrei no exército e, por mais que desprezasse admitir, era muito bom com ela. A tortura.
– Isso tem que ser um segredo meu e seu. Até o pivete tem que estar cego. Mande-o preparar armadilhas ao redor e dentro da casa. Quando capturarmos Doug, dispensamos ele. O busque e vão antes do sol nascer. – Meu amigo concordou e trocamos um abraço bruto. – Preciso ir, meu irmão.
Enquanto a adrenalina baixava no regresso à casa, pude sentir meu pé latejar e apertar na bota. Puta merda. Não podia ir para um Círculo Azul assim ou perderia. Amanhã tinha que pegar um elixir de Honesh sem falta.
Assim que entrei em minha casa, Mariah me recebeu com demasiada animação. Em consideração ao avô e a bisavó dela, a suportava. Porém, a garota me dava asco. E, para piorar, me irritava o quanto ela fingia ser amiga de Jane – que comprava essa máscara de boa garota – enquanto vivia se oferecendo para transar comigo. Aquela era a última mulher do mundo com quem dormiria. Antes as putas horrorosas que estavam com Doug. Não era ingênuo, o interesse dela era para garantir um bom matrimônio nem que fosse à base de chantagem. Aos 18 e solteira, as pessoas começavam a dizer que era indesejável.
– Consegui dar água e um pouco de sopa na boca dela. – Fingi a ouvir, sentando-me derrotado na cadeira. – Deixa que eu tiro a bota.
A garota se colocou ajoelhada no meio das minhas pernas e baixou seu decote para que eu tivesse uma melhor visão dos seus fartos seios. Joguei a cabeça para trás, bufando e controlando o impulso de a chutar. Custa ter um pouco de paz?
– Soube que você e Jane acabaram... Queria dizer que sinto muito... Mas, finalmente, podemos nos divertir. – Suas mãos subiam, massageando minha coxa em direção à virilha. Peguei em seus pulsos com violência. – Relaxa, daqui a garotinha não verá nada. Será nosso segredo.
– Quer que eu conte para sua bisavó? – Sabia que ela temia mais a senhora Damnora do que o avô Patcho. A garota se pôs de pé, tentando se soltar do meu aperto. – Vaza daqui e, de hoje em diante, só entra na minha casa com minha autorização. Entendeu?
Minha ameaça quase animalesca a assustou e, assim que a soltei, a garota praticamente correu para fora do recinto. Fui mancando até meu quarto, vendo que Enny estava tendo pesadelos, seus lábios se moviam agoniados em conversas mudas. Iria cuidar dela, mas precisava de um banho antes.
Caminhei até o precário banheiro que deu pra construir sozinho quando recebi essa casa. Tomei um banho de balde, deixando a porta aberta para a socorrer caso escutasse algum barulho. Gratificado, percebi que a água fria pareceu anestesiar meu pé. Daqui escutava o resmungar de Enny e uma última onda de energia percorreu em mim, precisava estar lá com ela.
Voltei para meu quarto, vestindo nada além da calça de algodão fina. Olhei para minha protegida. Ela tinha voltado a se debater na cama e a pedra que Honesh deixou estava ao lado de seu corpo. Sentei na minha cama e a puxei entre minhas pernas, recostando suas costas sob meu peito e a envolvendo em meus braços, abraçando-a como um necessitado.
Por fim, tomei a pedra e coloquei em cima do seu estômago, regressando ao processo de cura. O alívio dela foi quase que imediato. Suspirei ao ver seu respirar calmo. Ela melhorava.
– Vou fazer uma besteira, Enny. – Sussurrei, mesmo sabendo que ela não me escutava. Aparentava ter adormecido. – Pedirei um Círculo Azul e talvez não sobreviva. E, se isso acontecer, saiba que não me arrependo. Se for para garantir que ninguém jamais lhe machuque, morrerei em paz.
Beijei-lhe o topo da cabeça, deixando algumas lágrimas do meu fracasso derramarem do meu rosto até a pele exposta do ombro dela. Não a protegi e, agora, Enny lutava para sobreviver. E por quê? Por ego ferido? Para a provocar em um jogo de gato e rato? O pior era saber que em algo Alberto estava certo, eu vinha me portando como um adolescente apaixonado. Caralho! Eu sou um guerreiro, a porra de um General e tinha uma missão clara:
– Eu vou cuidar de você, minha Enny.
***
– Nate, acorda. – A vozinha de Luna era suave e quase murmurada. Abri os olhos, confuso. – Gazeei aula. Tinha que ver Enny. Dormiu agarradinho com ela? Estão juntos?
– Eu acho que fui dispensado, mas não tenho certeza ainda. – Respondi no mesmo volume, repousando o corpo adormecido da minha Enny na cama. Encarando aquela menina ruiva, uma lamparina ascendeu em meu cérebro. – Foi providência a sua visita. Preciso de sua ajuda.
Solicitando sigilo, pedi que Luna se disfarçasse de Enny para que eu pudesse capturar Doug. Insatisfeita, a garota concordou ao notar meu desespero. Assim que minha protegida começou a despertar, pedi para a ruivinha sair, visando não levantarmos suspeitas.
– Quanto tempo eu dormi? – Seu cenho franzido com a luz me indicava que a dor persistia. Ofertei-lhe um copo d'água.
– O resto do dia. – Cada registro de dor dela inflamava meu ódio e culpa. – Vou chamar Doutor Honesh. Fique deitada.
Queria conversar com ela, explicar tudo que estava acontecendo, pedir desculpas por não me impor com Jane e não a chamar para festa comigo – era algo importante para ela, apesar de eu, simplesmente, não dar a mínima e não compareceria de livre e espontânea vontade. Contudo, não podia parar para isso. Precisava acelerar para garantir ter direito a um Círculo Azul e assegurar o bem-estar de Enny e das demais meninas em Rheyk.
Enquanto o curandeiro estava com Enny, fui encontrar Luna e passei a localização do ponto de encontro com Emanuel e Felipe. A ruivinha era muito boa em despistar inimigo e a que eu mais confiava para fazer e conduzir trilhas pela atenção aos detalhes. Assim que a garota partiu, voltei para minha casa onde minha protegida já estava sozinha. Peguei minhas armas em um buraco que construí debaixo da cama e saí com ela para o portão.
Queria a abraçar antes de partir, mas ela parecia muito enraivecida, fazendo aquele típico biquinho e repetindo o dilatar de suas asas nasais. A vontade de beijar cada centímetro daquele rosto serviu como gasolina para instigar o fogo da minha vingança. Apontei o portão para Enny. A garota me encarou propriamente pela primeira vez, os olhos de ônix me prendendo, e a raiva se esvaiu do seu semblante.
– Você não vem comigo?
– Tenho que resolver uns problemas da rebelião.
– Sabe que não tem culpa por ontem, não é? – Fiquei desconcertado com sua fala. – Se não fosse Alberto agora, isso aconteceria por qualquer outro ataque no futuro. Faz parte da minha jornada aqui.
Ela baixou a vista, encarando o chão com pesar. Estaria escondendo algo?
– Você é bom, Nathan. – Os olhos dela me encontram novamente. – Mas, desde que acordei, vejo sombras no seu olhar... Não deixe isso tomar você, por favor.
Ela apertou um ponto sensível e eu quis a abraçar, contar o terror que eu faria ainda hoje, vê-la criar nojo de mim – de quem eu era realmente – e, então, me rejeitar. Não podia contar. Não poderia a perder assim.
– Atravessa, Enny. – Minha voz era um murmúrio agourento.
Minha forma ríspida de falar a magoou e, com um aceno de cabeça, ela partiu.
Recompondo-me, reiniciei a caminhada para a próxima parada, encontrar com Doug.
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