Sob outros olhos - A Rebelião
O portal que usamos para voltar com Enny foi o que atravessei para minha visita noturna. Não conseguia nem pensar direito de tanta raiva. Como assim eu era uma propriedade de Jane?
Andei meio quilômetro até encontrar uma das passagem entre as árvores que dava no desfiladeiro onde era a rebelião. Atravessando a barreira verde, pude ver o local que é minha segunda casa. Nas paredes rochosas, haviam algumas casas construídas com madeira e aproveitando a estrutura da própria pedra. Caminhos eram esculpidos na própria rocha.
Mais ao fundo, perto da parte plana do desfiladeiro, tínhamos quatro grandes construções. O refeitório, a enfermaria, o salão de reuniões e a sala de armas. Esses circulavam o pátio onde treinávamos nosso exército e, durante a noite, os trabalhadores dormiam. Na periferia, surgiam as casas que se afastavam à medida que a classe da pessoa diminuísse. Eu, como general, tinha uma relativamente próxima aos armamentos. Aqui a neblina que cobria Rheyk não alcançava, era terreno livre de Victor em diversos sentidos. Porém, a poeira do chão de terra vermelha afetava os alérgicos.
– General! – Meu velho amigo Felipe me chamou, rindo. – Não esperava lhe ver esta noite. O que houve? Aquela sua namorada está lhe irritando, é?
– Estou solteiro, meu caro. Vim para beber. Me acompanha no refeitório? – Chamei, irritado.
A cara do meu amigo foi de surpresa e fomos até o salão. À noite, lá servia uma cerveja produzida pelos nossos artesãos. Nosso comércio interno se mantinha graças a esses pequenos serviços. O local estava lotado. Cinco mulheres ofertavam suas companhias. Alguns soldados aceitavam, mas eu, como general, sabia que jamais poderia fazer esse tipo de coisa e manter a honra do meu nome. Na verdade, evitava qualquer excesso para preservar minha reputação.
Eu era o general mais novo da história da rebelião. Ganhei o cargo após ter salvo a maioria das vidas desta unidade quando o exército de Victor achou nosso antigo esconderijo e atacou. Usei bombas de fumaça para dificultar a captura de rebeldes e tracei caminho pelo rio com os resgatados para evitar sermos rastreados, matando 20 servos daquele tirano durante a fuga. Trouxe os rebeldes para esse desfiladeiro, local em que eu me escondi por três meses após a morte da minha mãe, vivendo praticamente como um animal isolado.
Esse feito mais a indicação de Erin – o General que me acolheu na rebelião e morreu na invasão – e o fato de ser a ponte com as garotas com dons fizeram com que o apelo popular ficasse ao meu lado, tornando impossível não me conceder o título. E, claro, o fato de meu pai ter sido um General nomeado em Hoquin ajudava também. Infelizmente, o General Alberto, que dividia o controle desta unidade comigo, procurava qualquer deslize meu para me realocar. Não ia dar esse gosto para ele.
Peguei minha cerveja, cumprimentando Consuelo. De dia, ela tinha uma taberna na cidade de Rheyk – fingindo ser contra a causa e expulsando qualquer rebelde de perto de sua propriedade – e, durante às noites, ela e seu marido, Manoel, vinham nos trazer, além de informações, mais bebida. Na verdade, foi ela quem falou para Angel sobre a localização de Enny. A minha protegida tinha batido em sua porta, pedindo ajuda, e ela sabiamente a expulsou e monitorou à distância.
– Meu General! – Manoel se aproximou animado. – Não vai acreditar. O velho Elm mandou uma carta, em branco. Acredita? Mas finalmente aprendeu a escrever o próprio nome. Aquele ali é doido. Ainda bem que vende uma boa carne curada ou já tinha cortado negócio...
Maneei a cabeça repetidamente, fingindo escutar o homem de cabeça vermelha igual a um pimentão. Se o velho Elm entrou em contato, estava precisando de minha ajuda. Suspirei chegando a conclusão que hoje não iria em sua propriedade. Amanhã. O cacete do dia já foi pesado demais, queria encher a cara e só.
Felipe chegou ao meu lado, a cara toda borrada de batom e um semblante de quem sabia que ia se dar bem. Cocei o nariz para disfarçar uma inveja desgraçada. Uma pena não ter quem eu realmente queria aqui. Uma merda pior ainda era ela achar que eu era posse da minha ex.
– A garota que veio com o grupo hoje. A Maria sangrenta. Quem ela era? Só se fala disso por aqui. – Felipe perguntou após tomar um gigante gole. – Por que nunca a trouxe antes?
– Enny. – Respondi rispidamente. – Não quero falar dela.
– O que houve? – Sua entonação deixava claro suas piores conjectura.
Não pude impedir as memórias da garota virem. Do meu corpo pressionando o seu contra a parede. Do quanto eu queria passar minhas mãos por todas suas curvas, mas ela parecia estar com tanto medo que preferi ser comedido, respeitar seu tempo. E, então, a minha protegida me assume como uma propriedade de Jane. Porra! Meus sonhos, pensamentos e até desejos... Tudo pertencia só a ela. Eu era de Enny.
– Tem algo errado comigo. Essa garota... Eu moro com ela, Angel me incumbiu para cuidar dela... Era para ser uma missão. Só que parece que eu fui enfeitiçado. Desde o primeiro dia. Todos os meus pensamentos sempre se voltam para ela.
– Já pegou ela? – Em um único gole, lá se foi metade da cerveja dele.
– Não. – Meu jeito taciturno intrigou Felipe.
Passei a tarde ouvindo de Alberto que meu nervosismo quando não a encontrei na rebelião era de um adolescente apaixonado, que se soubesse de algum envolvimento meu com ela ia destruir minha carreira e a tiraria daqui para sempre... Quanto mais atenção chamasse para Enny, mais perigosa a rebelião poderia ser para ela. Então, mesmo tendo uma fraternidade com Felipe, não podia o deixar a par dos meus reais pensamentos.
– Entre no quarto dela à noite, use sua lábia e durma com ela. Mate sua curiosidade e vida que segue, irmão. Parece ser sem sal, mas deve ter um chá de buceta e tant...
Avancei nele, pegando-o pela gola da blusa e o puxando para mim. Ele era mais alto que eu, mas, agora em minhas mãos, eu o reduziria a um inseto se falasse mais uma palavra com aquela conotação da minha protegida. Através dos dentes trincados, disse:
– Meça suas palavras. – Meu tom foi de ameaça. Soltei-o, sentei de volta e continuei mais calmo: – Jamais faria isso com ela. Enny merece muito mais.
– Tão cavalheiro. Tudo bem, não abrirei mais a boca sobre ela. – Felipe zombou, voltando ao seu lugar sem parecer se irritar com o que houve há um minuto. – Seu mal é o atual celibato, Monteiro. Vamos para casa de Madame Kia, achamos uma bonitinha para você trepar e problema resolvido.
Esse era Felipe Freito. Desbocado, pervertido, sem filtro, mas meu melhor amigo. Nos conhecemos há mais de quatorze anos, quando meu pai foi transferido de Hoquin para cá. As fofocas dizem que sua mãe é uma mulher infértil que, para não perder o marido, assumiu como seu o filho de uma jovem solteira da rebelião de Ozin. Parece que a mulher tinha tido um caso com um sargento que não quis assumir o fruto proibido daquele namoro. De fato, ele não parecia nem com o falecido pai tampouco com a criatura amarga que ele chamava de mãe.
– Um homem que paga por sexo é porque ou está desesperado ou não tem capacidade de conquistar alguém. – Fiz uma pausa, olhei para meu amigo de soslaio e lhe ofertei um meio sorriso. – Só para constar, seu caso é o segundo.
– Engraçado. Lembro de um pirralho de 14 anos que ia toda semana. – Meu amigo zombou, rindo forte.
– Sabe muito bem o motivo. – Dei um enorme gole, tentando achar uma saída para onde essa conversa levava.
Cada vez ficava mais difícil para Felipe lembrar daquela garota do prostíbulo, mas a traição dela ainda permanecia fincada em meu cérebro, me impedindo de esquecer todo o resto. Uma erva daninha que colocava em risco a segurança das seis garotas.
O silêncio tomou conta do salão. Os olhos de Manoel encararam com tédio a entrada, enquanto limpava mais uma caneca de madeira. Pela tensão no ar, sabia muito bem quem era. O corno do General Alberto. E falo corno sim porque não foi apenas meia dúzia de meus soldados que já ouvi falar que dormiram com a esposa daquele homem, a lista era gigante. Terminei minha cerveja em um grande gole e pedi o refil, que veio de imediato. O outro se sentou à minha esquerda e pegou uma caneca para si.
– Cabo Freito. Por que você não se junta com sua laia? – O chifrudo se dirigiu a meu amigo sorrindo. – Digo, com os da sua patente. Porque com sua laia você já está.
– Sim, senhor, General Alberto. – Meu amigo prestou continência e saiu, voltando aos braços das prostitutas de aparência hedionda.
Aos poucos, o som voltou. Bebemos os primeiros goles em silêncio. Apesar de que, em minha imaginação, eu vinha esmurrando aquele corno por cada insulto que teceu a minha protegida nesta tarde ou por cada ofensa a minha honra que escorria de sua boca como veneno. Por ser mais velho no cargo e ter mais tropas abaixo dele, eu tinha que me conter a fim de garantir o melhor para a rebelião.
– Os Generais de Cagecha e Ozin estão aqui. – O homem barbudo de 25 anos parecia mortalmente satisfeito. – Souberam do ataque de hoje e querem explicações.
– Não vamos os deixar esperando. Estão no Salão de Reuniões?
O homem, com um sorriso no rosto, assentiu. Virei a caneca e me levantei rumo ao meu destino. No exército da rebelião, a expectativa de vida era 30 anos, nossas baixas alavancavam diariamente. Juro que não me sentia nada culpado pela alegria que me tomava quando imaginava que daqui a cinco anos Alberto seria só uma memória inconveniente a qual eu cuspiria no túmulo. Cinco malditos anos.
Entrei no Salão de Reunião que mais parecia uma capela de igreja. Com a ausência das tochas, a única luz provinha da lua, que atravessava as diversas claraboias. Ótimo, isso deixava bem claro que nossa reunião, além de emergencial, era secreta. Estufei o peito e contraí sutilmente meus músculos para deixar nítido que, se me faltava idade, me sobrava força para lutar.
– Monteiro! – General Gael, de Cagecha, me saudou animado. Me tinha apreço desde que salvei sua vida quando eu ainda era um tenente. – Só você para liderar um ataque a jato e ainda sair com a maior parte viva.
– Um terço da tropa sobrecarregando a enfermaria. – General Koh, de Ozin, era um grande amigo de Alberto e outra pedra no meu sapato. – Imprudente.
– Eu disse. Um moleque tão jovem como um general geraria isso. – General Alberto sorria. – Ataques motivados pela emoção.
– Deixe o rapaz se explicar. – General Gregório, de Cagecha, interrompeu. Ele era voltado sempre a apaziguar as situações e agir racionalmente. – Um ano aqui e esse é o primeiro deslize. Vamos analisar os fatos antes de um veredito.
– Perdoem-me, generais. Isso é um julgamento? O que está em pauta? A perda do meu cargo?
– Não. – Gregório respondeu após ponderar. – Uma possível redistribuição de guarnições. Para tentar preservar nossas tropas.
Bufei e assumi minha postura como o líder que eu sabia que era. Olhava os cinco generais à minha frente. Apenas o General Patcho Herquio, o mais velho daqui, estava sentado. Como capitão, fui treinado por ele para estratégias de guerrilha. Ele veio de Ozin para cá com sua mãe e neta há três anos. Beirava aos 70 anos, sendo um caso raro de vida longa, mesmo que alguns de seus membros tenham ficado pelo caminho.
– Por favor, todos nós sabemos o que houve. General Monteiro movimentou tropas para resgatar um rabo de saia. – Alberto zombou. – A garota ocupou o consultório boa parte da tarde. Tão inútil que quase morreu.
– Tão inútil que ela foi quem identificou que nossos guerreiros estavam vivos e voltou para os resgatar enquanto você e suas tropas fugiram sem olhar para trás.
– Você acha que está falando com quem, seu moleque?!
O barulho da bengala soou pelo recinto, acalmando os ânimos. Com o silêncio, General Herquio se pôs de pé e, olhando com desprezo para todos, falou:
– Idiotas! Não viram as roupas que a terráquea estava vestindo. Tecido real. Victor cuidou dela. O mesmo rei que faz uma fila de enforcamento mensal e deixa os corpos expostos no mercado público. O mesmo rei que tentou matar as outras cinco garotas que nos protegem.
O senhor olhava para cada um com sua cara séria, que só utilizava quando íamos para combate.
– E o anel que ela usa... A pedra tem o corte igual à imagem entalhada nos portões do castelo. Eu tive ao menos a decência de ir a conhecer. Garota esperta, de respostas afiadas. – Ele ergueu seu único dedo inteiro da mão esquerda para mim. – Ela não é como as outras cinco, não é?
– Aparentemente, não. Essa foi a quarta tentativa de Victor de a capturar. – Mesmo tendo o mesmo nível hierárquico, eu sentia que tinha que obedecer aquele senhor tanto quanto ele tinha demasiada confiança em mim. – Ela não sabe como ativar, mas tem diversos poderes. No último acesso, aqui em Rheyk, o local onde estávamos ficou com vegetação verde no outro dia. Incluindo a Flor da Rebelião, que persiste na área.
– Acha que ela pode derrotar Victor Garfi?
Sua pergunta me pegou de surpresa. Não queria a deixar participar disso porque seria a expor ao perigo. Eu tinha que a proteger, era algo que urgia em mim de forma tão vital quanto respirar. Mas, a necessidade de ser honesto com aquele senhor me dominou.
– Do jeito que ela está hoje? Não. Se aprender a dominar os poderes e tiver um exército ao seu lado, talvez um dia. Mas seria muita presunção minha prever um período certo. Ela é bem verde na arte da luta, apesar de apresentar uma rápida evolução.
– Como você a achou, Monteiro? – General Gael estava intrigado.
– Estava voltando da minha viagem para Hoquin, senti um portão diferente e acionei as meninas. Vimos que Petrik atravessou sozinho e resolvemos intervir. Chegando lá, ela estava fugindo dele, muito ferida. Trouxemos a garota e fomos direto para nosso esconderijo na Terra.
– Ela pode ser uma boa moeda de troca com Victor pela nossa sobrevivência. – Alberto falou. – Estamos caindo como moscas, talvez essa seja nossa salvação.
Apertei os punhos, querendo o socar até a morte apenas por sugerir isso. Não era a primeira vez que ouvia essa conversa e a odiava cada vez mais. Ela não era um peru que engordamos para o abate. Era a minha protegida.
– Alberto, o que lhe sobra em músculo, lhe falta em razão. Se ela é tão forte quanto o rapaz falou, seria idiotice. – General Gregório interveio. – Mas se ela se encontrou com Victor e foi tão bem tratada, o que garante que não fez uma aliança?
– Enny não se corromperia. – Falei automaticamente. – Isso eu tomo total responsabilidade. Coloco meu cargo em xeque, se for necessário.
Os olhos dos cinco voltaram para mim, surpresos. Eu era conhecido por ser orgulhoso e egoico. Colocar minha honra e carreira em jogo era algo inédito para mim. O semblante de Alberto se iluminou macabramente, vendo uma oportunidade de me tirar do poder.
– Ótimo! Se o garoto confia tanto nela, vou apoiar. – Ele disse, dando tapinhas nas minhas costas. – Afinal, é nosso general de ouro. Estou lhe deixando sob responsabilidade dos movimentos táteis das minhas tropas. Porém, se ela não for essa salvadora que está pintando ou se aliar a Victor, você abdicará do seu cargo. Fechado?
Os quatro demais me miraram. Se eu não aceitasse, assumia que não confiava nela e perderia a estima de todos ali. Eu era filho de um General Monteiro, o único a sentir a abertura dos portões – e os rastrear – e a ponte com as garotas. Conquistei tudo sozinho, apenas confiando no meu instinto. Não ia fraquejar agora. Principalmente agora.
– Feito. – Apertei a mão de Alberto. – Só um adendo. Quando ela e meus batalhões vencermos Victor, você sairá do exército para sempre.
Ele hesitou, mas concordou. Alinhamos algumas movimentações mensais e todos saíram, deixando-me sozinho com General Herquio. O senhor me encarava com um sorriso. Era um dos poucos aqui que eu, de fato, admirava. Lia mapas como ninguém, o mais observador e sabia que o silêncio era um importante aliado.
– Não me pareceu meramente uma confiança. – Seu semblante era intrigado. – Seja honesto comigo, o que sente pela menina?
– Eu confio nela. No que ela pode fazer. Apostei minha carreira nisso. – Ri, nervoso. – Jamais faria isso por nenhuma das outras garotas, nem mesmo por Li. Mas essa... Ela é diferente. Única. Eu pertenço a ela.
– É visível isso. – Ele se pôs de pé, indo embora. – Confio no seu julgamento, rapaz. Pelas histórias que mãe Damnora me conta, o nome Monteiro sempre foi sinônimo de bons... – Patcho suspirou, olhando para o chão, como se pescasse a palavra certa no terra batida. – Guardiões. Certeza que continuará honrando às tradições.
O General Herquio se pôs de pé, andou até mim e deu pequenas batidinhas no meu ombro.
– Avisarei aos meus subordinados que prestarão contas a você também. Se precisar de ajuda ou algum conselho, estarei aqui.
Dizendo isso, ele saiu. Dei alguns minutos a mais e voltei para o salão. Felipe já tinha se arranjado com uma das meninas e disse que ia para minha casa para ter mais privacidade. Ótimo, acabei de perder meu lugar para pernoitar. Vamos beber até amanhecer ou até meu amigo resolver liberar a caceta da minha casa. Fui para o balcão. Consuelo estava servindo.
– O que você vai querer, querido?
– Tudo que você tiver para esquecer esse dia. – Disse, suspirando.
Na realidade, queria esquecer a face de Enny, nem que fosse por um segundo. Ela tinha me rejeitado. Mas não queria nada além de tê-la em meus braços novamente e, quem sabe, consumir ao menos um dos diversos pensamentos que não iam embora.
***
(Depois de revisar o capítulo, notei que Nathan não descreve Felipe fisicamente, só que Enny vai o descrever em detalhes no futuro. Então, para evitar a quebra de imagem porque ele é um personagem recorrente no POV de Nathan, vou deixar uma imagem feita por IA que se assemelha com o melhor amigo do nosso general)
Parece com o que estavam imaginando?
Cabo Felipe Freito
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