Capítulo 9 - A chave
Thomas me encarava seriamente, nitidamente reflexivo sobre seu próximo passo. O caos da batalha à nossa volta parecia diminuto frente à tensão entre nós. Com um suspiro, ele tirou uma adaga que estava na bainha e me entregou.
– Pequena, corra. – Havia urgência em sua voz.
Arqueei as sobrancelhas, em torpor. Não! Não tinha tempo para choque. Desengonçadamente, me agachei e tentei puxar o corpo desacordado do jovem rapaz pelo rastreador. Não o deixaria aqui para se tornar um prisioneiro.
– Eu disse para correr! – Ele agarrou minha roupa, arrastando-me para longe do menino desacordado. Atirou um punhal no peito de um homem que vinha em nossa direção, deixando aberta uma passagem em meio à batalha, e me empurrou para longe de si. – Vá!
Corri entre a multidão, desviando do bradar selvagem de diversas lâminas. O cheiro de lama, enxofre e ferro sufocavam junto com a poeira. Seria esse o odor da morte? Olhei ao redor, procurando qualquer face conhecida. Os servos de Victor, em sua grande maioria eram diferentes graus de quimeras, misturas macabras com animais que nunca vi. Os guerreiros da rebelião tinham rostos pintados ou usavam máscaras de madeira ou couro, possivelmente escondendo suas identidades para evitarem se tornar alvos.
Ao longe, via corpos flutuando e sendo arremessados contra os muros do castelo. Luna! Sem pensar duas vezes, tracei meu caminho até ela. Então, Nathan apareceu, golpeando incessantemente, com seu soco inglês, um homem que tinha espinhos no pescoço. O General não usava qualquer proteção no rosto, mostrando sem medo sua face marcada por sangue.
Seus olhos arregalaram ao me reconhecer e ele soltou o corpo molenga de seu inimigo. O rapaz caminhou até mim, me puxou com um braço e me abraçou com mais intensidade do que esperava, mas sem baixar a cabeça – atento ao menor sinal de perigo. Minhas mãos foram até seu rosto, passando por sobre a mancha de sangue. Suspirei aliviada por ver que não era dele. Nathan não estava ferido.
– Victor encostou um dedo em você? – Nathan rosnou para mim, migrando sua espada da mão direita para a esquerda. Exímio em combate, o rapaz vivia se gabando de ser ambidestro e das vantagens que isso lhe dava em um confronto.
Ele me puxou com sua agora mão livre para me salvar de um ataque e cortou a garganta do agressor. Arfei em choque e me virei em sua direção, afundando meu rosto em seu peito e o abraçando com força.
– Enny, alguém te machucou? – Ergui meu rosto para que ele me visse negar. Sua preocupação pareceu aliviar momentaneamente. – Vamos te tirar daqui.
Nathan desvencilhou meus braços de sua cintura e, segurando minha mão, tentou me puxar para recuar. Dei o primeiro passo junto a ele, mas a memória do menino desacordado retornou a mim, bem como os gritos por piedade que escutei na noite anterior. Não podia o condenar a esse destino, mas não conseguiria sozinha. Parei e puxei Nathan.
– Vem comigo. Eu preciso de ajuda. – Larguei sua mão.
– Enny, não! – Nathan me repreendeu, porém eu já corria, me distanciando dele.
Olhei para trás e vi que ele me seguia, notoriamente furioso. Um guarda surgiu na minha frente, e eu o driblei sem esforço. Sendo esse uma pobre vítima de um único golpe do General Monteiro. Cheguei ao garoto loiro e notei que ele parecia ter quinze anos. Tentei o levantar, mas não adiantou. Era muito fraca. Nathan finalmente havia me alcançado e me ergueu, colocando-me sob seu ombro como se eu não pesasse nada.
– Caralho, Enny! Dá para facilitar? – Ele estava furioso.
– O menino ainda está vivo. Eu vi Thomas só o desacordar. – Debati-me, gritando. – Pode ver o pulso se não acredita. E aposto que não vai ser o único.
Nathan me soltou bruscamente, praguejando para o nada. Peguei um escudo no chão, olhando atenta ao redor para dar cobertura enquanto ele se agachava para verificar o sinal vital do rapaz. Mantinha a adaga de Thomas na minha mão dominante, torcendo para não precisar a usar. O semblante de assombro do General confirmava que eu estava certa. Nessa hora, uma serva de Victor com uma boca que ia de orelha a orelha atacou, tentando abocanhar Nathan.
Entrei na frente, usando o escudo para nos proteger. Sua força era tão exorbitante que me derrubou por cima de Nathan, mas mantive o escudo firme. O General tirou uma adaga do boldrié e, em um movimento rápido, fincou a arma na cabeça da mulher, o corpo sem vida dela pesando sobre os nossos. Ele conseguiu me ajudar a rotacionar meu corpo para jogar aquele gigantesco cadáver para o lado e conseguimos sair debaixo dela.
– Vamos resgatar seu exército, General Monteiro. – Disse ao ficar de pé.
Por debaixo do rosto todo ensanguentado, conseguia reconhecer aquele sorriso que pertencia ao Nathan que conhecia, o seu maldito ego inflado ganhando vez. O rapaz pegou o menino desacordado, apoiando-o no ombro e gritou a plenos pulmões com uma voz tão grossa e alta que mal pude reconhecer como dele:
– Recuem agora. Peguem o maior número de caídos que puderem. Há sobreviventes!
Tudo que aconteceu em seguida foi demasiadamente rápido. O exército se moveu como um único organismo, correndo no sentido da cidade de maneira caótica para evitar serem seguidos. Os rebeldes, vez ou outra, pegavam um corpo no chão e o levavam consigo. Com o caos da fuga, não demorou para que eu perdesse Nathan de vista, mas continuei seguindo o fluxo na esperança de encontrar mais alguém. Ate que...
Tropecei em um corpo. Então, um guarda surgiu perto de mim, tirou um punhal do seu boldrié e tentou me apunhalar. Consegui me proteger com o escudo. Logo em seguida, o ser de nariz arrebitado como um porco arrancou minha proteção de minha mão com um brusco puxão. Percebendo que precisaria atacar para continuar viva, finquei a adaga em sua perna e a rodei. A besta urrou em resposta. Levantei-me o mais rápido que pude, preparando-me para a fuga.
Porém, ao olhar a cidade, notei que já não encontrava nenhuma pista para aonde os rebeldes correram. Em um misto de desespero e confusão, acabei me esquecendo do meu oponente. Senti uma dor forte no meu braço e o fluido quente vermelho escorreu até meus dedos. Fui ferida. Ao me virar para ver meu inimigo, pude observar as espadas de Thomas o perfurando no centro do peito. O rastreador de Victor olhava para seu colega de farda com fúria demoníaca enquanto esse caía de joelhos. Thomas lhe chutou as costas, libertando suas lâminas do corpo que se debatia com a chegada da morte.
Tirei meus olhos daquele assassinato e mirei meu braço. Tanto sangue jorrava da ferida aberta. Desnorteada, fui ao chão. Minha cabeça girava, perdendo a noção da realidade. Iria desmaiar. Não! Eu não podia apagar. Não ali. Essa era a chance que eu tinha de fugir, e não iria desmaiar por uma simples apunhalada. Levantei-me.
– Fuja, antes que mais alguém apareça. Vou lhe dar cobertura. – O rastreador me empurrava. – E, pequena, volte quando melhorar. Rheyk precisa de você.
Eu corri o mais rápido que pude com minhas pernas cambaleantes. Minha visão embaçada e minha respiração falha dificultavam a fuga. Porém, consegui adentrar na cidade. Parei na frente da primeira casa que considerei distante o suficiente do palácio e bati à porta desesperadamente, deixando nela a marca de minha palma com sangue.
– Por favor, abram. – Minha voz mal passava de um sussurro.
– Saia daqui. Você será uma encrenca para mim. – Uma mulher falou por detrás da porta, com irritação. – Morte à rebelião.
Recuei com medo de ser denunciada e presa. Andava com uma mão apoiada nas paredes, resistindo ao tropeçar dos meus pés. Se eu não parasse aquele sangramento, não demoraria até desmaiar. As ruas da cidade de Rheyk estavam vazias, nenhum sinal dos rebeldes. Eu caminhei até uma loja de frutas e me sentei em um banco que tinha ao lado do cesto, escondida.
Mesmo doendo, movi o meu braço direito para pegar uma faca que tinha em cima da cesta e rasguei duas partes do meu vestido. Uma, a menor, coloquei na minha boca para abafar o grito que eu sabia que viria. A segunda, a mais comprida, usei para dar duas voltas ao redor do meu braço de forma apertada para comprimir o ferimento. Precisava estancar o sangramento ou não sobreviveria para encontrar a rebelião. Na hora do nó, gritei desesperada pela dor que me infligia, lágrimas gordas descendo junto com o sangue de outros pelo meu rosto. Usei minha mão esquerda para continuar aplicando pressão. Eu tinha que sobreviver.
Um tempo depois, o movimento na cidade começou a aparecer. Escondi-me mais atrás da cesta de frutas. Ainda lutava para não desmaiar, mas o pior já tinha passado. O sangue havia coagulado. Por sorte, o dono da barraca não tinha chegado e nem solto nenhum malteho – aquele canídeo bizarro que vi no meu primeiro – para proteger a loja. Uma mulher gritava protestando. Eu reconheci a voz dela, era aquela que disse que me negou ajuda.
– Eles não se conformam com a vida e querem atrapalhar quem os cidadãos de bem. – Ela cuspiu em uma espada que estava no chão. – São uns meliantes.
Tive uma sutil impressão que ela me avistou. Mas, aparentemente estava errada, pois a mulher não me denunciou. Por medo de ter sido reconhecida como rebelde e entregue à guarda, decidi que precisava achar os meus. Levantei-me, quase caindo novamente, e iniciei minhas buscas. Ainda não conseguia andar normalmente, então me arrastava pelas paredes. A mistura da dor e hipovolemia distorcia a minha percepção espacial. Esbarrei em uma mulher com uma capa cinza.
– Enny? – Ouvi uma voz suave falar, e imediatamente me lembrei da minha mãe. Talvez tudo aquilo tivesse sido um sonho e mamãe estivesse me acordando agora. – É você, Enny? Te encontrei! Poxa, que alívio!
Abri os olhos e vi quem era a real detentora daquela voz.
– Me ajuda, Angel. – Disse isso bem na hora, pois minhas pernas falharam e eu caí, porém ela conseguiu me segurar antes de atingir o chão.
A líder colocou a mão na minha cintura e puxou meu braço esquerdo por sobre seus ombros.
– Apoia seu peso em mim. – Ordenou, já me ajudando a prosseguir na caminhada. – Não podemos parar, Enny. Tem guarda por tudo que é canto atrás de você.
Estranho. Foi exatamente o braço esquerdo de Victor que me deixou ir. Será que a lealdade de Thomas estivesse enviesada? Como era possível se ele era marcado?
Angel parou em um beco mais deserto, olhou melhor minha ferida e me entregou o odre, mandando eu beber. A água estava quente e tinha um gosto residual horrível, mas os céus sabem o quanto minha garganta se alegrou a cada gole. Molhei um pouco o rosto, tirando a lama e o sangue. Aquele cheiro de morte invadiu mais uma vez minhas narinas, gerando um arrepio que percorreu todo meu corpo.
– Me diz que ideia idiota foi essa de trocar sua vida pela minha? – A líder sequer me encarava, seus olhos percorrendo as ruas à procura de qualquer ameaça.
– Você me disse que eu fazia parte da família. – Sorri debilmente. – Esse é o tipo de idiotice que faço pela família. Por que mandaram a Rebelião? Achei que eu fosse uma carta para ficar na manga, escondida.
– Garota. – Angel se virou para mim com um grande semblante impressionado e carregado de comoção. – Como eu podia deixar como prisioneira a baixinha que me salvou? Sem chance! Obrigada, Enny. Você está sendo uma das melhores surpresas deste ano.
– Essa grata surpresa vai logo virar um trabalhoso cadáver se não formos a um médico.
– Vem, vamos para a Rebelião. Luna está procurando por ti na mata. Encontramos ela lá. As outras estão acolhendo os feridos do ataque.
– E Nathan? – Me vi perguntando mais emotiva do que deveria e notei Angel me encarar de rabo de olho. – Acabei me perdendo dele...
– Sei... Bem, um outro General da rebelião trancou ele numa sala e tá dando um esporro. O cara é um pé no saco. Só fingir que não o escuta e, se ele encher muito, fala comigo que o coloco no lugar dele. – Angel me deu uma piscadela camarada. – Melhor? Vamos!
Ela me ajudou a ficar de pé e continuamos nossa caminhada cautelosa até adentrarmos na floresta. Não demorou até vermos Luninha que tateou meu rosto, mãos e braços, fazendo uma vistoria preocupada das minhas lesões. Ela me mandou relaxar e ajudou Angel a me carregar. Chegamos a uma área com várias árvores próximas a uma rocha de cor escura. Angel pegou um aglomerado de cipós, afastando-os e revelando uma passagem.
– Bem-vinda a Rebelião de Rheyk, Enny. – Angel falava em um tom camarada.
Ao atravessar essa, pude ver um desfiladeiro com algo que eu diria ser uma pequena vila na parte mais baixa. Engraçado. Era como se o traço de enxofre não pudesse ser sentido aqui, tampouco a neblina adentrava a essa zona. O formigamento em minha mão regressou e eu olhei para o anel. Aliat. Seria ela a antiga dona desse anel? Ou o teria roubado também?
– Vem, Enny. Vou te levitar. – Luna avisou já se preparando para exalar seu dom. – Do jeito que está fraca, é mais fácil você tropeçar e rolar que nem uma bola do que descer andando.
– Você ia rir disso, né? – Brinquei.
– Claro! – Ela abriu um enorme sorriso. Suas sardinhas ressaltadas sem maquiagem. – Mas com muito respeito, juro!
Luna fez como prometido. Assim que chegamos na parte mais baixa, notei o olhar dos demais me encarando, murmurando entre si e carregando um semblante de suspeita. As duas pediram para eu ignorar e me levaram a uma das quatro maiores construções no centro daquela "vila". Assim que atravessei a entrada, Aline repousou seus olhos preocupados para mim e me levou para uma sala privativa.
– O que foi isso, Enny? – Seu tom sério estava um pouco mais agudo pelo pânico. – Foi Victor?
– Não. Um soldado me atacou na batalha. Não estou me sentindo bem, Aline.
– Aline, vá chamar Doutor Honesh. – Angel usou sua voz doce. – Enny, ele é um curandeiro vindo da Vila de Maurin. Basicamente a versão de Rheyk de médico. Vai ficar tudo bem. Luna, chame o resto do grupo. Farei a segurança da pitoco.
As duas obedeceram de imediato. Assim que a ruivinha passou pela porta de tecido, um senhor entrou. Ele carecia de uma das pernas, metade de seu braço direito e um o dedo anelar esquerdo, usava uma bengala e fazia uma expressão impressionada para mim.
– Então, essa foi a causa de tanto alvoroço?
– Sim, General Herquio. – Angel se pôs de pé para responder. Então esse era o babaca? Percebendo minhas conjecturas, a garota prosseguiu: – Enny, esse é o terceiro general que cuida desta unidade. Ele é uma lenda no movimento. A que devo a honra?
O senhor tomou uma cadeira, notoriamente cansado por andar com sua prótese. Ele repousou a bengala por cima da sua coxa e puxou minha mão direita, examinando atentamente o tamponamento rudimentar que eu fiz. Agilmente, seus olhos encontraram o anel antes de ajeitar a postura para longe de mim.
– Generais Alberto e Nathan estão discutindo que nem duas velhotas. – Sua risada até fazia parecer que aquele senhor não representava nenhum perigo. – Preferi conhecer nossa nova espécime. O que você fez para encantar tanto esse sexteto, menina? O que tem de tão especial?
– Acho que uma personalidade cativante. – Senti o beliscão de Angel me repreendendo pela resposta rude.
Definitivamente esse General Herquio não era alguém a quem eu queria ter inimizade. Mas o homem simplesmente começou a rir.
– Ela está sob nossa responsabilidade, General Herquio. A nova membra do grupo. Nathan vem a treinando em segredo sob meu pedido. Estávamos esperando ela estar mais em controle de sua capacidade antes de a apresentar. Sabemos como uma nova garota com poder deixa a comunidade emotiva. Não queria arriscar sem ter certeza que ela valia a pena.
– E você simplesmente decidiu que ela vale a pena em uma bela manhã. Então, aparece aqui com o Monteiro e arrastam, quase que escondidos, metade de nossas tropas, alegando a inverdade que Victor tinha conseguido um artefato que poderia usar para nos destruir. E, claro, estupidamente arriscando toda a sobrevivência da rebelião. Foi isso, senhorita White?
Vi Angel recuar sem conseguir palavras para encarar o homem de semblante duro a sua frente. Era como se ele tivesse algum domínio sobre ela, impedindo-a de dizer livremente o que pensava. Ou talvez fosse simplesmente um receio de perder o apoio da rebelião e correr o risco de condenar ainda mais Rheyk. Independente das causas, não deixaria aquele general a tratar assim.
– Eu sou o artefato perigoso. – Murmurei com um tom suave, tentando evitar um conflito. – Ele capturou Angel para chegar até mim. Troquei minha vida pela dela ontem. Passei a noite naquele castelo e hoje, quando vi o ataque da rebelião, achei uma brecha para conseguir fugir por debaixo de uma carruagem. Lastimo as baixas, General Herquio. Jamais quis isso.
O senhor agradeceu minha honestidade, se pôs de pé e começou a deixar o ambiente, regressando sutilmente para dizer as seguintes palavras:
– Quão perigosa ela é se nem a algemaram no castelo? Melhor, Angel, a pergunta certa é: para quem ela é perigosa?
O silêncio perdurou após sua saída até que chegaram as outras quatro garotas acompanhadas de um ser que exalava loucura na sua aparência. Baixinho, raquítico, bigodudo, cabelo totalmente desgrenhado, óculos de lentes grossas. Uma figura única, decerto. Suas mãos ágeis tiraram meu arranjo para conter o sangramento.
Então, Nathan entrou com passos pesados e uma postura firme que raramente via na Terra. Ele disse meu nome de forma seca como uma forma de cumprimento, olhando para o corte e não para minha face, e se colocou em posição de guarda em um ponto distante. Seu semblante sério pouco lembrava o rapaz que me acompanhava diariamente ou até mesmo aquele que encontrei na batalha há poucas horas, sua íris escurecida pela sombra da possível briga com o tal General Alberto. O maxilar de Nathan travava e relaxava de maneira quase compulsiva enquanto encarava minha ferida e segurava com demasiada força o cabo de sua espada.
– Boa atadura. – A sua voz era de quem tinha o nariz entupido. – Tem prática, menina?
– Já tomei uma surra ou outra na vida. – Instintivamente minha mão foi até onde eu sabia que a cicatriz na coxa habitava. Balancei a cabeça, tentando trazer bom-humor a mim. – Se me der a agulha, linha e anestésico, pode deixar que termino sozinha.
– Vai com calma, guerrilheira. – Tracy zombou, sentando ao meu lado e começando a tirar a lama de mim com um pano úmido.
Habilmente, o homem começou a dar algumas dezenas de ponto, correndo contra o tempo para fazer o processo antes da analgesia findar.
– Já que General Alberto me proibiu de fornecer o Soro de Cicatrização para qualquer um além das tropas, vamos ter que fazer seu tratamento através de pomadas.
O homem com óculos de lupa encarou Nathan ao ouvir o protesto das garotas. O rapaz, com um movimento de cabeça, o mandou prosseguir. Honesh entregou para Aline um pote.
– Foi muito profundo, mas o pior já passou. Talvez deixe uma cicatriz grande, mas vai ficar bem.
– Quais são os cuidados com ela? – Tracy parecia a mais preocupada ali, sua voz mais aguda do que o normal. – Alguma recomendação?
– Sugiro trocarem o curativo assim que chegarem em casa. – O doutor Honesh falou rapidamente. – Ah! E só a tirem daqui após a tontura dela passar, ela perdeu muito sangue. Hidrate-se, coma bem e repouse. Antes que imaginar vai estar por aqui, lutando de novo.
Aline disse que ia pegar uma bebida para mim que ia ajudar a me recuperar. Angel e Jane foram com ela, pois estavam se sentindo abatidas. Tracy e Luna desataram a falar como elas lutavam de forma defensiva e dando suas perspectivas da batalha. A única coisa vívida na minha cabeça era caos, sangue e morte. Eu teria que lutar de novo, não era? E talvez, em um futuro não tão distante, teria que ser a carrasca de alguém. Ia ser uma assassina, ia assumir que era tão ruim quanto ele dizia que eu era. Não! Essa não podia ser minha jornada, não deixaria isso acontecer.
– Eu não consigo. Não sou capaz de lutar com vocês. – Murmurei, cativando a atenção das garotas. Vi a confusão tomar elas tanto quanto Nathan. – Desculpem. Posso treinar, ser um suporte na defesa. Mas eu não sou uma assassina. Não consigo matar. N-Não...
– Enny, olha aqui. – Luna afagou minha coxa. – Ninguém tá te pedindo isso. E nem vai. Não consegue? Tranquilo, só nos ajude na defesa. Pior cenário, a gente diz para Jane que o guarda deu em cima de Nate e deixa ela fazer o trabalho sujo. Simples!
– Exato! No máximo, vamos te jogar como escudo e deixar teu "surto de poderes" tomar conta. – Tracy brincou, me fazendo rir. – E, se acabar acontecendo, eu e Luninha estaremos aqui pra te dar apoio. Ok? Estamos juntas nessa, tudo bem?
Sorri para as duas em um sinal de agradecimento. As outras três garotas regressaram com sete copos de um líquido azul cintilante. Cada um ali bebeu. Ele gerava um burburinho meu estômago, quase como se eu me sentisse alimentada. Era uma sensação gostosa. A maioria ali conversava animadamente, exceto eu, Jane e Nathan.
– Enny. – Jane falou timidamente. – Posso falar com você?
– Claro. – Minha voz saiu abafada pelo cansaço.
– Em particular, se não houver problema. – Acrescentou, mais tímida. Cerrei os olhos.
Eu estava totalmente sem energia para falar, então apenas assenti. Todos saíram do pequeno consultório, mesmo que desgostosos. Tentei, inutilmente, me sentar na pequena maca esculpida na pedra, e Jane se sentou ao meu lado.
– Desculpe-me. – Ela começou a falar sem olhar para mim. – Não devia ter falado aquilo ontem. Você foi amiga de Angel e demonstrou isso melhor do que eu. Arriscou a sua vida para salvar a dela. Obrigada e desculpa. – Havia uma sinceridade inquestionável. – Parabéns, conquistou meu respeito.
Eu estava tão cansada que apenas apoiei minha cabeça em seu ombro. Entendia o porquê de ela estar tão furiosa comigo quando sua amiga foi sequestrada. Elas são amigas desde pequenas e, para Jane, eu poderia ser a culpada pela morte de uma delas. Eu a admirava por isso, ela defendia com unhas e dentes aqueles a quem amava. Talvez sua qualidade mais forte.
– Não foi só por isso que falei aquilo para você... E sabe muito bem. – Ela pontuou, sorrindo de forma envergonhada.
– Somos amigos. Nunca houve nada. – Pigarreei para melhorar a minha voz.
– Eu sei que não houve. O problema que tem coisas que crescem em nós sem sequer percebermos. E quando vemos, temos um monstro que não podemos domar ao nosso lado. – Ela suspirou. – Esse companheirismo quando vocês dois se olham...
– Se você tivesse tentado me conhecer, teria visto que eu sou companheira de todos os meus amigos. – Trocamos uma risada anasalada sutilmente triste. Eu sabia que persistia na cabeça dela a ideia que uma paixão latente habitava em mim. – E, não se preocupe, caso me apaixonasse, faria de tudo para tirá-lo da minha cabeça. Ele é seu Nathan, não é mesmo?
– E do coração? – Ela perguntou retoricamente. – É fácil tirar da cabeça, mas é quase impossível tirar do coração. Eu já tentei tantas vezes... – Jane ergueu meu cabelo e deu um sorriso ao olhar meu semblante. – A palidez reduziu. O que acha de voltar?
– Se voltar significa tomar um bom banho na Terra. Eu sou totalmente favorável!
Jane saiu para chamar a todos. Luna voltou me trazendo um copo de água limpa, enquanto Tracy, Aline e Angel discutiam a melhor rota até uma zona de passagem para a Terra – a Terra delas, no caso. Na soleira do consultório, Nathan me encarava fixamente com um semblante triste. Ele era o responsável pela minha segurança desde que nos conhecemos. Um ferimento desses era um sinal de fracasso para ele.
Voltamos para a Terra assim que o General Alberto – um homem horroroso e de modos grotescos – disse que a guarda do rei já tinha saído das proximidades do esconderijo e era seguro irmos embora. Nathan me carregou nas costas. Achei uma péssima ideia, até contestei, mas cedi ao não ver Jane ficando vermelha nem me fuzilando com os olhos.
– Foi uma boa escolha, Enny. Rheyk não é gentil aos feridos e, com sua sorte, não duvido você cair ao tentar fugir de um ataque. – Seu polegar acariciava meu pulso que estava próximo ao seu pescoço. – Eu vou descobrir quem te machucou e o mato.
– Não se preocupe com isso. Mataram ele. – Decidi omitir o nome do assassino com um estranho desejo de proteger Thomas. Apoiei meu queixo perto do pescoço dele, levemente tonta da movimentação. – Por favor, não se arrisque assim. Não quero te ver machucado, Nate.
– Nate? – Ele deu um sorriso, virando sutilmente a face em minha direção.
– Poxa! Ainda não sou digna de usar o apelido? Achei que tinha ganho esse direito ao te proteger da mulher bocão. – Sorri debilmente ao passo que ele gargalhou com o codinome que inventei.
– Ok! Você fez por merecer, Enny. Mas... Prometa-me que não vai mais até o castelo de Victor. – Olhei estranhamente para ele, não entendia a razão de mudar o assunto. – A cada segundo, fiquei preocupado com o que poderia estar acontecendo com você. Prometa-me.
– Não sei... Eu sinto como se eu não pudesse evitar voltar lá. – Baixei a minha cabeça, meu nariz roçando em sua nuca. Ainda era possível sentir residualmente o seu tão típico perfume amadeirado com traço de menta. Confortável. – Mas, por enquanto, eu prometo.
Era difícil prometer que não voltaria depois. Afinal, Victor tinha me dado respostas e me disse qual seria meu próximo passo. Teria que achar esse coração que a tal de Aliat roubou. Além disso, havia algo naquele rei que me cativava, como se houvesse uma atração inexplicável entre nós. Só de lembrar de seu semblante solene ao fitar minha face, meu estômago se revirava e minha garganta apertava.
Atravessamos para a Terra das garotas e tive problema para ignorar as centenas de olhares julgadores dos transeuntes. Chegamos rápido à casa de Tia Lúcia, que quase desmaiou quando viu meu braço. Ela ignorou toda a sujeira e me tomou para um forte abraço, afastando-me para acariciar minhas bochechas e trocar um sorriso carinhoso. A senhora foi para a cozinha – nos chamando – para montar um prato para mim.
– Nunca mais faça isso. Pensei que o pior tinha acontecido, pequena. – Tia Lúcia travava na fala, contendo um choro de alívio. – O que você comeu naquele calabouço?
– Um copo de suco? – Falei timidamente, encolhendo os ombros.
– Tome, pequena. Sem sustância, seu corpo não vai cicatrizar. – Ela encarou o sexteto, tento a mesma reação maternal com cada um, suspirando grata ao notar que dos danos o meu era o pior. Todos estavam bem. – Preciso descer para o restaurante. Qualquer coisa, me chamem. E tomem um banho! Deu para sentir o fedor de vocês quando estavam no corredor.
A senhora deu um sutil beliscão no meu queixo como despedida e saiu. Era bom que o restaurante fosse no térreo deste pequeno prédio, sempre sentia que aquela senhora estava zelando por mim. Ouvindo a recomendação dela, Nathan, Jane e Luna foram se banhar. Aline, Angel e Tracy se serviam com o tradicional strogonoff de frango com arroz de brócolis de tia Lúcia. Como odiava frango, disse que estava enjoada para justificar a recusa a comer e me levantei da bancada da cozinha americana, indo para porta para a trancar.
Perto da soleira, vi algo caído no chão e me agachei para pegar. Era uma chave pequena e bastante velha, tinha umas partes enferrujadas. Girei-a entre meus dedos, para a examinar melhor e vi que era a mesma que Tia Lúcia usou para abrir a porta daquele pequeno quarto no fim do corredor, ao lado da cozinha. Observei atentamente o que tinha escrito nela e que, da última vez, eu não tinha entendido. Li em baixa voz.
"Pole cashomeron topíner capon arb
pole aliat lotur pole henny ahin pole copetiko."
Não entendia o que aquela frase significava, mas conhecia duas palavras, henny e aliat – "vida" e "aliança". Guardei a chave por dentro da manga do vestido e me sentei junto as garotas, pensativa. Depois voltaria ao castelo de Victor e procuraria as respostas. Por enquanto, iria fazer o que Thomas mandou, cuidaria da minha melhora.
– Agora. – Aline falou com um meio sorriso no rosto quando me sentei à mesa. – Nos conte de tudo que aconteceu enquanto você esteve com o inimigo.
Inalei profundamente, tentando decidir por onde e como começaria.
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