Capítulo 4 - Dois Mundos
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Dei um sobressalto, abrindo os olhos. Na minha frente, uma parede branca lisa. Estava em uma cama dura e desconfortável, com lençol escuro. Ademais, podia sentir um cheiro forte de cozinha de restaurante, com destaque para o aroma de costelas ao molho barbecue. Seria pedir muito que eu estivesse no quarto de mamãe e finalmente saído daquele pesadelo do desenho de Rheyk? Bufei e virei sob minhas costas em um ângulo de 180º.
É, onde quer que eu estivesse, não era minha casa.
Estava em um quarto extremamente branco e pouco mobiliado, apenas a cama onde estava e uma cômoda – talvez com a metade de minha altura – de madeira. Não tinha uma identidade visual que revelasse a personalidade do seu dono.
– Acordou, garota. – A voz agudíssima soou aliviada por perto, assustando-me e me fazendo sentar, à procura da origem.
Atrás de mim, Tracy sentava em um banquinho na extensão do quarto que eu não via quando estava deitada; perto dela, havia um saco de areia, halteres e algumas armas brancas. Já tinha visto esse cômodo em um único episódio, pertencia a Nathan. Pegando à esquerda de onde eu estava, tinha duas portas. A da direita dava no banheiro e a da esquerda, para o corredor dos quartos.
– Qual a dificuldade de me chamar pelo nome, Tracy? Eu sei o de todos vocês.
Cocei a cabeça, bagunçando meus cabelos. As minhas últimas memórias não faziam sentido e eu não compreendia como tinha vindo parar aqui. Estava na versão da Terra do desenho, onde as garotas viviam, especificamente na casa de Dona Lúcia, tia-avó de Aline.
– O que aconteceu? Como venceram Petrik e Thomas? Cadê as outras meninas?
A loira contraiu os lábios e tentou dar um sorriso. A garota se levantou e eu constatei que as roupas dela estavam sujas de terra e com alguns pontos de sangue. Além disso, ela trazia em suas mãos uma muda de roupa e uma toalha.
– Todo mundo tá na sala. Pega. – Ela me estendeu com um sorriso o que carregava e apontou seu indicador da outra mão para mim. – Sua roupa já era. Sorte sua que sempre deixo uma muda extra por aqui. Toma um banho no banheiro de Nate e vamos para a sala para conversarmos todos juntos. É por aqu...
– Não precisa. Eu já sei onde é. Fã do desenho, lembra? – A interrompi e me encaminhei para o lugar, com a garota vindo atrás. – Nem no banho vou ter privacidade?
– Depois. – Ela se apoiou na soleira. – Mas, primeiro tenho que ver se não é marcada. Sua história é muito doida para acreditar fácil assim.
A marca. Um sinal de lealdade que era colocado nos servos de Victor. Talvez, por preguiça de roteiro, nunca foi bem explicado como isso acontecia ou como garantia essa fidelidade. Mas eu sabia que uma pessoa marcada seria sempre tida como inimiga. E teria que ter olhos vermelhos, o que não era meu caso. Então fazia menos sentido ainda aquela garota vir procurar marcas em mim.
Ficamos em um minuto de silêncio, em uma guerra muda para ver quem iria ceder primeiro. Eu era cabeça-dura, bem como Julhinha vivia dizendo. Mas, poxa! Aquela loirinha não dava o braço a torcer. Suspirando, retirei minha camisa de banda de rock – que estava rasgada o suficiente para deixar bem à mostra meu sutiã – e a calça de algodão rosa, ou melhor, os trapos com sangue seco do que um dia foi minha calça de algodão rosa. Só de roupa íntima, dei um giro em meu eixo. Ela encarou minha barriga, franzindo o cenho.
– Sinal de nascença, é meio que familiar. Eu e minha irmã temos. – Minha mão foi para a marca branca logo abaixo do meu esterno.
– Relaxa! As marcas de Victor são escuras e quase sempre em formas geométricas. Nada do que vi aqui. – Tracy então olhou para minhas pernas e, ao captar o que ela encarava, girei meu corpo para esconder minha coxa. – Não se preocupa, essa cicatriz quase não dá pra notar. Foi algo sério?
– Não sabia que você era tão curiosa. – Revirei os olhos, sabendo que ela não iria embora sem que eu desse a resposta. – Um acidente com corda quando era pequena. Posso ficar sozinha agora ou é pedir demais?
A menina abriu um gigantesco sorriso, um daqueles que faz o semblante brilhar, e começou a sair do banheiro, me informando que passaria para os demais que eu estava limpa. Algo no jeito agitado que ela falava me fazia querer rir. Minha personagem favorita não era tão mal assim pessoalmente, concluí.
Entrei debaixo do chuveiro e, à medida que a água escorria com a poeira negra e o sangue diluído, permiti-me chorar todas as lágrimas que vinha contendo para passar a ilusão que eu era durona. A verdade é que eu estava em frangalhos. Queria minha casa. Queria mamãe, Julhinha, vó Paola, Tay e Lucas.
Com esmero, me acalmei e terminei o banho. Precisava fingir força só mais um pouco. Só o suficiente para voltar para meu lar e depois poderia me convencer de que isso nunca existiu. Até porque ninguém jamais acreditaria se eu contasse. Enrolei a toalha em meu cabelo e vesti aquele vestido azul com estampa de margaridas. Pelo amor! Eu era menor que Tracy e aquela peça de roupa era curta e apertada o suficiente para me incomodar. Devia estar ridícula!
Tirei a toalha do meu cabelo e decidi me encarar no espelho pela primeira vez desde hoje de manhã, na minha casa. O espanto foi tanto com o que vi que recuei uns dois passos . No aspecto geral, era a mesma cara de sempre. Porém, havia uma vitalidade que eu não via em meu rosto desde quando minhas "visões" começaram. As bochechas rosadas, olhos vívidos e até parecia mais bonita.
Então, pela primeira vez, me dei conta em como eu tinha coisas parecidas com aquele reflexo que era Victor. O defeito na base do nariz, o lábio superior menor, a sobrancelha mais reta, o olho sutilmente repuxado... Meus olhos encontraram o anel. Será que ele tinha algo a ver com isso?
– Está na hora de descobrir. – Murmurei par ao reflexo.
Saí do banheiro e, logo em seguida, do quarto. Dava para ver a saída para cozinha e podia escutar as vozes preocupadas falando o mais baixo que podiam. Silenciosamente, me aproximei para pegar mais informações.
– Tia Lúcia, você não está entendendo. Ela começou a lutar com Petrik. – Angel parecia surpresa.
– Conte tudo, Angel. – Jane a interrompeu com seriedade na voz. – Não foi só isso. A pirralha chegou dizendo que não tinha nenhum dom. Só que é mentira! Ela tem poderes, no plural, e estava flutuando. Não parecia humana, era mais...
– Como um anjo... Não sei explicar. – Luna completou, sem seu típico som de risada na voz. – Deu uma surra nele tão grande que Thomas esqueceu da gente para salvar o parceirinho.
– Se ela mentiu sobre ter poderes, não deveríamos confiar em uma palavra que ela diz. – Aline, racionalmente, estava certa. Mas a ouvir dizendo aquilo fez meu peito queimar de raiva.
Eu não tinha poder! Dezesseis anos de vida me faziam ter certeza disso. Magia era algo de fantasia, ficção, conto de fadas. Eu pertencia a uma Terra chata e sem graça. Contudo, se estava aqui por causa desse anel, será que... Antes que eu pudesse perceber, entrei na cozinha e, encontrando o primeiro par de olhos que avistei, perguntei:
– Qual a chance desses poderes virem do anel? – Encarava a senhora de 58 anos com firmeza.
Dona Lúcia, a tia-avó de Aline, era guia daquele sexteto e dona de um restaurante no térreo do prédio onde estávamos na dimensão da Terra que existia no desenho. Ela e Aline era a mesma face separada por décadas. Mesmo corte – com cabelo branco –, olhos similares – apresentados por detrás de óculos com grossas lentes – e idêntica postura ereta e imponente. A senhora abriu um sutil sorriso, tomando minha mão direita na sua e analisando a joia.
– Não me surpreenderia. – Ela deu uma risada anasalada. – Venha, se sente. É menor do que meus meninos disseram. Posso lhe chamar de pequena?
Virei-me então para notar que os outros seis me observavam. Constrangi-me pelas vestes que usava, cruzando os braços em frente ao meu corpo e repuxando a barra do vestido para cobrir melhor a sutil cicatriz na minha coxa esquerda. Tracy me deu um sorriso, fazendo um sinal de positivo com o dedo. Dentre aqueles olhares, o de Nathan me encabulou mais e, por consequência, assim que ele baixou rapidamente a vista, joguei meu cabelo para frente, escondendo o busto.
– Nem aprenderam meu nome e já querem zombar da minha altura... – Resmunguei em baixo tom.
Os seis estavam sentados em bancos ao redor da ilha de madeira no meio da cozinha americana. Tomei um dos assentos e aguardei um dos demais se pronunciar.
– Tia Lúcia, é verdade o que ela disse sobre vir de uma outra Terra? Que somos uma ficção? Um simples desenho? – Angel, como líder, tomou a dianteira.
Não sei bem o porquê, mas aquela senhora sabia muito sobre o mundo de Rheyk e acolheu Nathan quando ele era apenas um moleque, sendo a ponte entre ele e Aline e, posteriormente, as outras quatro garotas, quando seus dons despertaram e elas se juntaram à Rebelião. Nesse sentido, era entendível o porquê de todos os adolescentes ali olhavam para ela com admiração e respeito. Verdade seja dita, o fato de ela não parecer abalada com a notícia de ser um desenho animado me fazia crer que sabia de algo a mais.
– Meu anjo, não se lembra que, logo quando você entrou no grupo, eu te disse que haveria outros mundos. A pequena deve vir de um desses.
– E isso faz de nós o quê? Um bando de marionete? – Jane era nitidamente a mais indignada ali. Não era confusão, mas simplesmente raiva. – Vamos jogar conforme um script? E se cancelarem o show? Sumimos?
Não queria dizer a resposta que eu já sabia. Garota, vocês não somem se cancelarem. Mas não é como se eu soubesse da regra do jogo ali.
– Espera... – Jane se levantou brutamente, parecendo ser atingida por uma ideia. – Você disse que nos via desde os oito e tem uma cara de 14. Mas, quando meu Nate perguntou se vencermos Victor, respondeu que ainda não sabia. Que tipo de fã é essa? Ou é preguiçosa demais ou em 6 anos não o vencemos. Isso é, se não fomos cancelados, não é?
Os olhos de Luna se arregalaram e ela não conteve duas lágrimas de escapulirem. Se eu falasse a verdade, iria a magoar e gerar um medo de desaparecer, algo que não tinha como mudar caso fosse acontecer. Respirei fundo, batucando meus dedos na superfície de madeira escura daquela ilha.
– Eu sou preguiçosa. Satisfeita? Além disso, há vários episódios que não foram lançados no meu país. Ainda vão chegar. Quer spoiler? Me manda para o meu mundo que eu ligo para te contar. – Teatralmente coloquei a mão na frente da boca. – Ops, nem vai dar. Ainda não inventaram ligações interdimensionais. Sinto muito, queridinha.
A mão de Dona Lúcia repousou no meu ombro e ela se sentou no banco à minha frente. Pelo canto dos olhos, pude ver Angel contendo Jane de vir em minha direção. Como queria que ela tentasse novamente me bater. Dessa vez não tinha uma corda me amarrando para me impedir de quebrar os dentes dela.
– Bem... Acho que não somos marionetes, de fato. – Aline ponderou com o queixo apoiado em suas mãos cruzadas. – Digo... Com certeza não estava nos planos de nenhum produtor irmos para outra dimensão da Terra e trazermos ela para nossa casa. Então, por essa lógica, não estamos seguindo um script e, possivelmente, se cancelarem a série, nós não morreremos. Pior caso, ficamos presos num limbo, inutilmente reiniciando o processo. Mas, considerando a chegada da Enny, acho que isso não se aplica também.
– Até porque, com uma princesa como eu presente nas telas, quem ousaria cancelar nosso show?
Encarei Luna com um sorriso amarelo. Realmente não iria contar para não quebrar as suas expectativas. A mão idosa de Dona Lúcia pegou a minha e ela arqueou as sobrancelhas, como se estivesse tentando cativar minha atenção.
– Enny? – Ela acariciava minha mão tal qual minha vó Paola fazia. – Nome pitoresco. O que significa?
– Nem ideia e nem mamãe sabe também. Ela simplesmente sonhou com ele enquanto estava grávida e brinca que é o nome predestinado para mim. – Falar de mamãe me trouxe teimosas lágrimas, que não tardaram em escorrer pelo meu rosto. – Loucura dela, sabe? Minha irmã tem um nome normal. Júlia. Lindo e perfeito como ela.
– Você tem uma irmã? – Seu tom carinhoso e o teórico interesse eram para me relaxar. Saber a técnica não a impedia de ser muito eficaz. Estava começando a me abrir mais do que deveria com uma desconhecida. – Quantos anos mais nova?
– Mais velha. Ela tem dezoito e e eu, dezesseis. – Olhei para Jane, com um sorriso sarcástico. – Pareço mais nova porque não sou acabada como outras garotas.
Quando ela se ergueu novamente para vir em minha direção, Nathan a puxou contra si, segurando-a pelo pulso. Do outro lado da mesa, Luna, Tracy e Aline trocavam olhares e sorriam. Aparentemente, minha rudez irritou também Dona Lúcia, pois a senhora soltou minha mão imediatamente.
– Como seu avô te deu esse anel? – Até a simpatia na voz dela tinha ido embora.
Não pensava no meu aniversário de dez anos há algum tempo. Bufei, olhando para baixo e tentando remexer em minhas memórias.
– Foi estranho. Acho que o vi só duas vezes na vida. Estava lá na casa que vocês invadiram, jantando com minha família e meus melhores amigos. Então vovô Hugo chegou com meu pai. A gente sequer mora na mesma cidade. É uma viagem de avião de duas horas. – Franzi o cenho. – Eles jantaram com a gente e, no final da noite, vovô me chamou para o deixar no carro, me deu o presente e disse que era uma joia que estava na família há gerações.
Parei de falar, me lembrando de suas últimas palavras antes de ir embora. Ele me disse que era para eu nunca duvidar que pertencia à família. Talvez esse tenha sido o primeiro dia que me senti uma Peres. E possivelmente o último.
– Depois que o ganhei, eu nunca o tirei. Nem pra dormir... – Suspirei. – É isso que Victor quer, não é? Os poderes dele? Porque eu nunca tive nada disso, sempre fui insignificante... Ou era, até chegar aqui e sentir minha mão formigar, desmaiar e descobrir que flutuei. Esse anel veio de Rheyk, não é?
– Se não for, será uma surpresa. Tá parecendo muito isso. – Tracy me respondeu, apertando minha mão. – Como será que chegou na sua família?
– Portais. – Dona Lúcia falou apática, seus olhos atentos a mim. – Pode ter caído em um e a família dela encontrou. Na versão da Terra dela, os poderes podem ser amenos, mas o suficiente para eles prosperarem e tomarem a joia como um amuleto da sorte. O estranho é que esse tipo de coisa se dá ao primogênito, não a segunda filha. Por que você?
Passei a mão na bochecha, limpando as lágrimas que ainda insistiam em cair, e ri alto. Não conseguia acreditar que estava passando por aquele interrogatório patético. Eu tinha uma ideia do porquê eu e não Júlia. Minha irmã, apesar de ser mais diferente esteticamente do meu pai do que eu, podia dormir com a certeza que era uma Scott Peres. Eu aprendi a ser só Enny Scott. Vovô sabia e talvez quisesse amenizar a situação gerada pelo seu filho. Mas, claro que não ia me abrir assim para sete desconhecidos que me olhavam como se eu fosse, a qualquer momento, me tornar um problema.
– Sei lá! Um senhor de 80 anos quis dar um presente para sua neta. Não fiz uma entrevista antes de aceitar a joia. Peço desculpas. Da próxima vez que for tragada para um universo diferente, lembrarei de fazer perguntas assim.
Um copo de água foi colocado a minha frente na mesa. Erguendo a vista, notei que foi Angel quem o entregou. A líder parecia carregar uma serenidade consigo, mesmo que seus olhos sondassem meus movimentos a procura de qualquer ameaça.
– Você está tremendo, Enny. Beba. É água com açúcar. Vai lhe acalmar.
Fiz conforme ela mandou, sem reclamar. Porém, esse zelo me derrubou mais ainda. As lágrimas isoladas se tornaram de fato um choro, meus ombros tremendo e o fungar se tornando constante. Envergonhada, tapei meu rosto com ambas as mãos. Droga. Cá estava eu sendo uma garota fraca, chorona.
– Enny. – A voz de Nathan veio do outro lado da mesa. – Sabe... Todos estamos confusos aqui. Não chora assim, por favor. Me conta, já aconteceu algo estranho antes? Quer respirar antes de falar? Posso te ajudar? Respira comigo.
O guerreiro carregava um sorriso gentil consigo e seu olhar fixo parecia querer me tirar do pânico que transbordava meu peito. Inspirava e expirava conforme o movimento da mão dele. Aos poucos, consegui controlar meu nervosismo e vi que era capaz de responder sua pergunta.
– Faz meses. Eu tinha visões de questões da prova ou resultado de um jogo. Era bacana. Ganhei algum dinheiro até... – Mordia o lábio inferior entre as frases e acariciava minhas mãos, encarando o rapaz enquanto falava. – Só que comecei a ver minha morte. Apunhalada. Veneno. Enforcada. Espancada... Então chegaram os pesadelos. Mesmo tom sombrio. Essa madrugada, sonhei com uns olhos cinzas... Eu nunca tive tanto medo na vida.
– Mesmo depois de encontrar Petrik? Aquilo sim ali é perturbador! – Luna estava tentando amenizar o clima e me arrancou um sorriso choroso.
– Era pior. Não sei explicar o porquê. – Consegui parar de mirar o rapaz e migrei meu foco para as garotas. – Mas era só um sonho.
Dona Lúcia se levantou e pegou um copo de água para si, encostando-se na bancada da pia para beber lentamente. A memória de todo o meu dia voltava a mim lentamente.
– Eu vi Victor hoje. Ele apareceu no espelho, tentando me tirar essa joia. E à noite, Petrik apareceu. Ficou revoltado porque o cortei quando joguei uma maçaneta no olho dele. Teria me matado se vocês não tivessem chegado a tempo. Acho que estou devendo um obrigada.
– Você acertou uma maçaneta nele? – Luna exaltou a voz, incrédula. – Gostei dela, corajosa!
Encolhi-me com seu elogio, contraindo os lábios para coibir um sorriso.
– E se lembrem que ela deu uma surra nele. O lobigarto deve estar fritando até agora. – Aline parecia querer fazer alguma piada, pois ria sozinha. – Sério? Lobigarto, lobo mais lagarto!
– Amiga, deixa a comédia para Luna. Essa não é a sua praia. – Jane brincou sem tanta acidez na voz.
– Nathan riu. Ele apoia meu humor exótico. – A garota de cabelo curto estava indignada.
– Às vezes, as pessoas riem por pena mesmo. – Luna retrucou, arrancando uma risada forte de Nathan e Jane. – Continua tentando. Um dia você acerta uma, Aline.
A garota mais séria do grupo estirou a língua para a ruivinha. Daquele grupo, apenas Tracy, Angel, Nathan e Dona Lúcia mantinham o foco em mim. A primeira era a única que genuinamente parecia interessada que eu já estivesse equilibrada emocionalmente.
– Gente, desculpa ser chata. Mas... Como podemos achar uma portão para minha casa? Já entendi. O anel tem poderes. Não sou eu. Tem como me liberarem?
– Portal. – A voz de Dona Lúcia parecia novamente tranquila. – Rheyk e esta Terra são dimensões irmãs, então a passagem entre esses dois são portões. Para a sua casa, a sua versão de Terra, Enny, é preciso muita energia para quebrar o véu. Esses são os portais. Muito raros.
Minha respiração acelerou, as palmas das mãos suavam em excesso e eu tinha a certeza de que compreendi o que ela queria de fato dizer. Minha boca abria e fechava, tentando encontrar minha voz, achar as palavras certas, contendo os xingamentos que nunca disse na vida - mas que reinavam em meus pensamentos agora.
– Eu estou presa neste universo, não é? É isto que a senhora está dizendo? – Notei o vacilar no seu olhar e fui tomada por raiva ao perceber que a senhora queria dourar a pílula. – Responde!
Nathan afastou Jane e logo ficou na frente de Dona Lúcia, não tardando para Aline assumir a mesma posição. A senhora me olhava com pena. Esse sentimento me doeu demais porque era assumir que aquilo que supus era a realidade. Ninguém ali tinha ideia de como me fazer voltar para casa e agora era quase como uma garota perdida, sem lar, sem amigos, família... Até mesmo sem um teto sob minha cabeça. Andava de um lado para outro, usando as mãos para tapar os ouvidos e poder ignorar livremente o que aqueles sete estavam falando.
De repente, dois braços magricelos me puxaram para um forte abraço. Retribuí o afeto e me permiti afundar meu rosto na imensidão de cabelo dourado de Tracy. A garota tentava me acalmar, dizendo que tudo ficaria bem. Um outro par de mãos, mais senil, começou a acariciar meu braço. Separei-me da caçula do grupo e me virei para encarar a senhora.
– Vamos descobrir uma forma, pequena. – Dona Lúcia usava quase que um tom maternal, mesmo que seu semblante carregasse confusão. – Porém, você vai ter que esperar um pouquinho. Que tal nos entregar o anel? Cuidaremos dele para que Petrik não venha mais atrás de você.
Não. O anel é seu.
A voz que eu vinha me dizendo que era minha consciência gritou para mim. Instintivamente coloquei a mão atrás das costas e balancei a cabeça negativamente. A joia era minha e eu não conseguia conceber a ideia de me desvencilhar dela. Contudo, eu sabia que racionalmente precisava achar uma justificativa para minha relutância ou iria parecer ainda mais suspeita para eles. Pensa, Enny. O que alguém inteligente falaria? O que Julhinha ou Tay fariam? Encarando cada um ali, falei a justificativa mais plausível que me veio a mente.
– Se eu entregar meu anel para vocês, nada me garante que vocês me ajudarão a voltar para casa. Muito menos que me protegerão caso Victor e seus servos venham atrás de mim. Esse é o meu objeto de segurança e, enquanto eu estiver aqui, vai ficar no meu dedo.
Estava jogando com um blefe de confiança. Meus dentes sutilmente batiam de medo. Se as cinco usassem seus dons, nada impediria que elas arrancassem a joia de mim. Mas eu não podia vacilar agora ou perdia a chance de conseguir voltar para casa.
Jane deu um passo a frente, notoriamente instigada a me enfrentar. Porém, Dona Lúcia ergueu a mão, gesticulando para ninguém tomar nenhuma atitude. A senhora se aproximou de mim, seus olhos analíticos presos aos meus. Minha respiração estava pesada, mas eu não desmontei a pose de falsa confiança que queria passar. Era teimosa e me usei disso para me manter firme ali, mesmo que sentisse mais uma maldita lágrima escorrer até a curva do meu lábio.
– Ela está certa. – A mulher tinha um semblante sério. – A pequena Enny está assustada e precisa de uma segurança. Principalmente porque será uma excelente forma de se proteger, usando os poderes.
– Ela não pode voltar para a dimensão de Rheyk. – Nathan interrompeu Dona Lúcia. – Victor, em menos de 24 horas já lançou três ataques. Se levarmos a garota para a rebelião, estaremos colocando meu grupo em perigo. Lá eles são mais fortes, é um perigo a deixar junto do grupo rebelde.
– Claro, meu menino. Ela vai ficar aqui. Já abriguei você, vai ser bom ter uma garota para termos conversas femininas. – A senhora se virou para mim e deu uma piscadela. – Pode ficar no quarto de Aline e quando ela vier dormir aqui, temos uns colchonetes e o sofá, se quiser.
– Não acho uma boa ideia. – A sobrinha-neta se adiantou em baixo tom. – Vai ser um perigo para a senhora, tia.
– Minha querida, se não vieram aqui atrás de Nathan em 9 anos, não será agora. E, de qualquer forma, vocês cinco estão por perto e podem fazer a segurança dela. Será um prazer ver vocês todos os dias. O que acha, pequena? Gostaria de ficar aqui?
Não é como se eu estivesse com várias opções para poder escolher, não é? Então, desgostosa, assenti com um movimento de cabeça. A senhora abriu um largo sorriso, batendo sutilmente as palmas e girando sobre os próprios pés para encarar os outros na cozinha.
– Que notícia boa! Meninas, venham amanhã e levem a pequena para comprar uns produtos de higiene pessoal e algumas roupas, deixarei um dinheiro. Não vai ser muito, mas é melhor que nada.
– Eu tenho umas roupas que ia colocar para doação. – Tracy ficou na ponta dos pés, falando empolgada. – Enny e eu temos biotipos parecidos, acho que servirão. Trago logo cedo.
Meu rosto ficou rubro de vergonha. Nunca gostei de ser ajudada, sempre preferi ajudar os outros. De verdade, não sabia sequer como reagir nessa situação. O melhor que pude fazer foi mover meus lábios, gesticulando um mudo agradecimento, e encarar o chão, puxando novamente a barra do vestido que insistia em subir.
– Tão prestativa. – Dona Lúcia acariciava o rosto da caçula, dando uma gentil beliscada na bochecha. – Nate, pegue a chave do carro e vá deixar as meninas. Já está de madrugada, é perigoso para elas andarem na rua a essa hora. Eu vou aproveitar e mostrar o apartamento para a pequena.
Os seis pareciam insatisfeitos, mas obedeceram à senhora. Assim que eles saíram, a postura de Dona Lúcia mudou do que eu poderia chamar "acolhedora vovó" para uma senhora de semblante duro e olhos astutos. Ela tirou uma chave dourada antiga do bolso de seu casaco de algodão e, com o gesto das mãos, me chamou para a seguir. Notei que na cabeça da chave havia umas palavras estranhas gravadas, as quais não pude compreender.
A senhora tomou o caminho por um corredor que tinha antes daquela que dava para os quartos. Ao final desse, havia uma porta de madeira escura e com uma maçaneta de aparência tão antiga quanto a própria chave que ela tinha na mão. Com dois giros, escutei o destravar da fechadura e a mulher abriu a porta para me apresentar um quarto que sequer parecia fazer parte do resto da casa.
Esse quarto tinha um cheiro desagradável – mofo – e suas paredes tinham duas tonalidades (preta e marrom escuras), que enfatizavam a ideia de que aquele lugar era mais velho que o resto da casa. Só que em uma das quatro paredes tinha um armário branco com as portas de vidro, dentro dele tinha um livro ainda mais velho que o resto do quarto. Ela o tomou em suas mãos.
– Enny, você parece uma menina esperta. Notou que nada do que disse me chocou, não é? Vamos ter uma conversa sem filtros, certo?
– Me parece apropriado. – Minha voz acelerada era para inibir o meu medo de transparecer. – Eu tenho uma pergunta: se é tão raro esses portais, como eu vim parar aqui?
– Os relógios, pequena. – Ela me deu um sorriso confidente. – Pelo que entendi, na sua Terra, ontem era dia 15 de junho, assim como foi aqui. Talvez esse encontro no calendário tenha facilitado a abertura de um portal. O tempo é um poderoso aliado e um ardiloso inimigo.
– Que livro é esse?
– Um manual que rege este universo. – Seu olhar contemplativo consumia página a página foleada. – Conta a maioria dos segredos que eu descobri.
– Então você já sabia que tudo aqui não era real?
– "Realidade" é subjetivo. Você parou de ser real quando veio para cá? – Ela respirou fundo, ajeitou os óculos e leu: – "O mundo dele é o Eixo e lá tem uma mente de onde você surgiu, sendo apenas fruto de um desejo de proteção e sequelas de um amor". Parece quase um casamento que gerou um fruto, chamado Rheyk.
Encarei-a, pensativa, notando que a mulher esperava uma ação minha.
– Será que tem escrito como eu posso voltar para casa neste livro?
– Vou achar essa parte. – Ela riu, pegou umas cinquenta páginas e continuou a leitura. – "No mundo de seu criador, um simplório não pode chegar. Porém, três forças podem: a de maior bem, a que se consome pelas trevas e aquela que irradia a sua luz. Ou seja, o Sábio, o Senhor das Trevas e a Senhora da Luz".
– Deixe-me ver se entendi. – Comecei a contar nos dedos. – Victor é o Senhor das Trevas, então é melhor eu desistir. Mas a senhora é a Sábia e as meninas são as Senhoras da Luz. Por que não posso voltar? Não sabem como abrir um portal?
Dona Lúcia me encarou, parecendo questionar seus pensamentos.
– Certa, errada e errada. – Ela me corrigiu sorrindo. – Victor é o Senhor das Trevas e ele não vai te deixar ir enquanto você não der o que ele quer. Foi ele quem abriu o portal que lhe trouxe. Mas eu não sou a Sábia nem as meninas não são as Senhoras da Luz. Só existiu uma e ela já morreu há muito tempo. E o Sábio não aparece para os comuns, como dizem.
– Como? – Franzi minhas sobrancelhas. – Então, quer dizer que eu nunca vou poder voltar para minha casa? Aquela conversa de antes foi baboseira? Mentira?
Sentei-me em um banquinho, que – provavelmente – Dona Lúcia usava enquanto lia o livro, já que ele aparentava ser bem pesado. As mãos cobrindo o rosto, a mente só pensando no meu frustrado desejo de voltar. Queria que tudo fosse uma grande mentira, uma piada de mau gosto. Mas aquilo era a verdade, estava presa naquele universo, presa nos dois mundos – a sua própria versão da Terra, onde me encontrava agora, e a dimensão de Rheyk.
– Não é isso. – Dona Lúcia colocou a mão em minhas costas. – Um dia, você pode voltar. Só que, para isso, uma destas forças terá que te ajudar.
– E-e se as meninas derrotarem Victor... S-será que elas podem o obrigar a me devolver ao meu mundo? – Perguntei enquanto soluçava. Maldito choro.
– Você terá que esperar até o final da guerra.
– Esperarei o tempo que for necessário, contanto que volte para casa.
– Não se preocupe, pequena. Tenho certeza que vai descobrir o caminho para sua casa. – Ela começou a limpar as lágrimas do meu rosto assim que guardou o livro. – Só peço que mantenha este quarto e o que conversamos entre nós. Os meninos ainda são imaturos para algumas coisas.
Mudamente concordei. A senhora me deu um beijo na testa e abriu novamente a porta, chamando-me para mostrar o lugar que seria o quarto que me abrigaria, indicando que estava na hora de dormir. Um comportamento bem maternal para alguém que sequer me conhecia. Acompanhei-a, segurando a barra do vestido para o impedir de subir. Ao notar meu comportamento, Dona Lúcia riu e pediu para eu aguardar, saindo do meu campo de vista. A senhora regressou com uma calça de moletom e uma blusa gigante preta.
– Tome. Nate não vai se importar de emprestar uma camisa para você dormir por enquanto. – Ela me deu uma piscadela. – Venha conhecer o seu futuro quarto.
O quarto de Aline – temporariamente meu – era uma suíte entre o de Nathan e de Dona Lúcia. A senhora o apresentou, tirou uma nova coberta e disse que me daria privacidade. Assim que ela fechou a porta, fiz questão de tirar aquele vestido e o jogar longe, abrigando-me confortavelmente na imensidão de pano que aquele moletom e blusa tamanho M me ofereciam. Decidi explorar o quarto.
Ele era mais bagunçado do que o de Nathan e mais feminino, claro. Havia prateleiras cheias de livros românticos – incluindo todos de Jane Austen. A cama tinha como enfeite algumas rosas. Ao lado, havia uma mesa de cabeceira com um copo de água e um jarro de flores, e o guarda-roupa era branco, com algumas pequenas dedicatórias em suas portas. Decidi que as leria amanhã. Agora só queria me abrigar debaixo das cobertas.
Em poucos segundos, eu só tinha os meus pensamentos ligados à realidade – se é que aquilo era realidade – e, do jeito que ia, eles já estavam se juntando ao resto do meu corpo – em um descanso merecido. Mas meu último pensamento foi um pouco assombroso. O único que eu realmente não queria ter antes de dormir. Eu imaginava todas as minhas "visões" se encaixando a esse mundo, e aquele que eu nunca conseguira ver – meu assassino – já estava aparecendo dentro daquela horrível cena e se chamava Victor.
Quando pronunciei esse nome mentalmente, pude sentir um frio subindo pela minha espinha. Será que eu iria morrer aqui? Seria Rheyk o meu fim? Paralisada pelo medo, vi-me enfrentando um dor de cabeça infeliz.
Rodei na cama, tentando achar uma posição que a aliviasse, mas ela não dava trégua. Voltei a chorar e não sabia se dizer se era pela dor ou pelo medo. Subitamente, após liberar alguns litros de lágrimas, todo aquele aperto na mente e no peito se desfez e o cansaço tomou contra de mim. Eu dormi sem nem perceber.
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