Capítulo 31 - Acampamento
Saímos juntos da rebelião, adentrando na floresta vasta. Cada um carregava seu próprio candeeiro de fogo frio. Não conhecia tal aparato na Terra – essa ou a Central –, mas era um singularidade que me cativou aqui. Era útil, uma vez que a lua estava coberta por pesadas nuvens. O clima úmido era quase pegajoso e potencializava o frio que sentíamos.
– Cara, jamais imaginei que meu sextou seria indo contatar um espírito em uma praia deserta em outra dimensão. – David, apesar de absorver relativamente bem a bizarrice.
– Você acostuma lá pelos três meses. – Angel lhe deu uma piscadela lenta.
A sutileza no afeto trocado entre os dois talvez fosse o que mais me cativava. Durante os treinos, ele sempre tinha o olhar atento para a garota e a recíproca era verdadeira, preocupados em dar um suporte moral enquanto admiravam a evolução do outro. Vendo-os juntos com tanta frequência, cheguei a conclusão que se "almas gêmeas" fosse algo real, aqueles dois deram sorte de encontrar as suas.
Com esses pensamentos, notei institivamente meus olhos procurarem Nathan. Ele conversava animado com Felipe na dianteira. Então captei Jane me mirando, no centro do grupo, carregando o livro de tia Lúcia. O rosto dela levemente inchado, mas que se forçou a me dar um sorriso de lábios serrados.
– Você parece estar distante, amiga. – Tracy murmurou. – Aconteceu algo?
– Sim. Te conto depois, minha fofoqueira preferida. – Empurrei-lhe camaradamente com o ombro.
– Fofoqueira vírgula, propagadora de informações. – Trocamos uma risada confidencial. – Estou vendo que está com os olhinhos brilhando. Já até imagino o que seja.
– Como tá Luna depois da partida de Joshua? – Apressei-me para mudar de assunto.
– Ela estava começando a se apaixonar. Se tinha que partir, ainda bem que foi antes que quebrasse o coração da nossa ruivinha.
Meus olhos novamente procuraram Nathan. Eu queria tanto voltar para a Terra Central, mas minha partida o magoaria... Estaria eu sendo justa em o cativar sabendo do meu desejo de partir? Mas, se meu desejo era tão forte assim, por que recusei a proposta de Joshua? Teria meus sentimentos por Nate impactado na minha decisão? Ou seria apenas minha responsabilidade com minha herança? Ambos, quem sabe?
Tremi de frio. Deveria fazer uns quinze graus, mas meu peito congelava frente às possibilidades que passavam em minha mente. Senti algo repuxando minha calça e olhei para baixo. Assustei-me ao ver o animal roxo nojento e escamoso que subia pela peça, com dentes no lugar dos olhos e diversos pequenos bracinhos por todo seu corpo. Era algo hediondo.
Tentei o retirar de mim com um movimento do meu membro. Contudo, a fera apenas cravou seus dentes na altura da minha coxa para se segurar. Arfei em surpresa e isso trouxe a atenção de todos para mim.
– Casu potiu¹! – Reconheci o palavrão dito na língua rheykfordiana.
Nathan tirou o facão do cinto, veio em minha direção e cortou o bicho de forma coronal. Uma gosma cinza escorreu sobre minha calça. Tracy me perguntou se eu estava ferida e a própria constatou que não ao arrancar a outra metade do animal que estava presa a mim. Ouvimos sibilos fortes vindo em nossa direção, indicando mais animais como esse.
– Corram, eu e Enny vamos dar uma vantagem pra vocês. – Tracy foi enfática.
– Enny. – Nate segurou minha mão, querendo insinuar que ficaria. Os demais já corriam.
– Você tem que guiar o grupo e deixem rastro para nós duas. – Me enfureci ao vê-lo parado. – General Monteiro, é uma ordem! Vá agora!
Estranhamente as suas pupilas dilataram mais ainda e, assentindo, ele partiu. Com a ameaça se aproximando, não tive tempo para refletir sobre o que aconteceu. Uma massa gosmenta se aproximava de nós duas. Quando estava perto o suficiente, era possível ver que eram vários animais como o que me atacou.
Antes que eu pudesse ficar em posição, minha amiga criou um escudo em volta da maioria deles e o encolheu a tal ponto que era possível escutar os animais agonizando mortalmente pelo esmagamento que sofriam. Os remanescentes, eu os queimei. Apaguei as chamas ao notar a falta de movimentação deles. Não queria chamar atenção de guardas de Victor com um rastro de fumaça. Eu e minha amiga ficamos quietas, aguardando uma outra leva de ameaça que, felizmente, não veio.
– Acho que isso foi tudo. – Tracy constatou após alguns minutos.
– Desde quando você é tão letal? Nunca te vi fazer isso. – Notei que a calça externa estava totalmente rasgada, então a retirei para me livrar da gosma.
– Eu não gosto. Mas precisei sair da defensiva para o ataque. As condições forçaram a isso, certo?
Sua face tinha uma seriedade que eu nunca havia visto em meses de convivência. O peso da guerra desenhava suas sequelas no rosto de minha amiga. Começamos a andar, seguindo a trilha de mata aberta que o grupo deixou para trás.
– A batalha final está chegando, não é? – Tracy se abraçou, apertando as alças da mochila.
– Há muitos pontos cegos para mim... Porém, se conseguirmos o Elo, acho que não demorará muito com ou sem respostas. Rheyk não vai sobreviver por muito tempo sem o herdeiro de direito no trono.
– Amiga, eu estou com medo. – Tracy engoliu em seco. – Nenhum das meninas fala abertamente, mas é claro que talvez alguém não sobreviva. E o pior é que não consigo tirar essa sensação de que ou eu vou me perder para sobreviver ou não tenho chance. O que será que é pior?
Vi-me sem resposta. Afinal, intimamente, esse era um questionamento que eu também tinha. Controlar tanto poder... Poder esse que acabaria com uma vida com um singelo movimento do pulso... Era assustador. E, se eu fizesse isso, me tornaria tão imoral quanto a pessoa que meu pai dizia que eu era.
Andamos mais um pouco em silêncio. O frio já gerava arrepios, mas o medo mudo nos consumia.
– Victor vai tentar matar vocês para me atingir, como fez com os irmãos e marido de Aliat. Por favor...
– Eu sei. – Tracy me deu um sorriso de lábios cerrados. – Vamos fazer o seguinte: não tire seus olhos dele. Eu vou proteger os outros da melhor forma que puder. Já você... O mate na primeira oportunidade que tiver.
– Não sei se consigo matar Victor. Não quero ser uma assassina, Tracy. E, ainda sendo a Senhora da Luz... Sei lá, não me parece certo.
– Amiga. – Tracy se virou para mim bruscamente, seu olhar era de pânico. – Você definitivamente não está entendendo a gravidade das coisas. Se você não o matar, vai continuar sendo assassina. Porque, cada morte que ele cometer depois do duelo, vai estar nas suas mãos. Isso inclui eu, as garotas, Nathan... Não há outra opção. Victor tem que morrer.
Sem conseguir achar um argumento para ir contra ela, apenas assenti.
Andamos por quinze minutos banhadas apenas pela luz dos nossos candeeiros. Tracy estava ao meu lado, em silêncio. Minha hesitação em matar Victor a preocupava, era nítido. Ultrapassamos a cratera e, após a última camada de plantas, estávamos na praia. Angel e Luna correram em nossa direção, nos abraçando. Nathan estava mais distante com os dois outros rapazes, me encarando confuso. Pelo visto não fui só eu quem notou o que ocorreu antes dele partir.
– Você demoraram tanto. Achei que tinham sido capturadas. – Angel segurou nossas mãos, suspirando de alívio.
– A trilha estava fraca. Viemos devagar para não nos perdemos. – Tracy se antecipou, a acalmando e empurrando Luna, que tentou lhe fazer cócegas.
Fizemos um círculo ao redor da fogueira - que Felipe acendeu - quando fomos comer. Tentamos não falar da guerra ou de assuntos mais pesados, fingindo por um momento sermos apenas adolescentes normais. Notei que Nathan evitava me olhar.
– Conversa muito boa, mas melhor começarmos. – Aline me encarou, como se pedisse permissão.
– Melhor mesmo. Jane, pode me passar o livro?
Peguei o livro da garota de olhos de oceano que, novamente, me deu um sorriso acolhedor. Estava esperando raiva vindo dela após a conversa desta tarde com Nathan, mas ela parecia... resignada. Fiquei feliz por ver isso.
Com o livro em mãos, abri-o na parte marcada e ajeitei minha postura.
– Fechem os olhos, esvaziem a mente e deem as mãos. – Vi todos os oito me obedecerem, apertei as mãos de Tracy e Luna. Tomei fôlego, tentando inspirar coragem para continuar: - Agora, me escutem atentamente. Não devem pensar em nada além do espaço onde estão e nas suas próprias consciências. Qualquer coisa pode desconectar vocês da minha mente e eu não conseguirei trazer ninguém perdido de volta.
Limpei a garganta e comecei a ler com a voz firme:
– "Aqueles que foram e ainda estão presentes. Aqueles que estão vivos, mas não vivem. Aqueles que sonham e aqueles que são sonhos." – Fechei meus olhos, já sabendo do resto. – "A carne que foi e o espírito que ficou na missão interminável. Aquele que se mostra para seu sangue. Na minha mente estás, agora na mente dos outros aparecerá."
Ouvi passos leves pela areia. Abri meus olhos e vi a todos lá, ainda sentados e olhando para o centro do círculo. Não mais existia a fogueira. Apenas havia Aliat. David e Felipe iam com os olhos de mim até ela, notoriamente impressionados com a semelhança. Minha ancestral tinha um semblante desapontado, franzindo os lábios.
– Enny, Enny, Enny. – Ela estalava a língua. – Que despropósito é esse? Expor nosso elo dessa forma é arriscado. E tudo isso para quê? Descobrir o significado da cantiga? Seus amigos não vão poder te ajudar, eles não sabem como. Precisam do olhar de alguém de fora.
– Só me diga se está na Terra Central.
– Houve um tempo que esteve. – Mais uma vez, Aliat franzia os lábios, parecendo conter as verdades de lhe escaparem. – Tentaram lhe privar de o ter. Mas o Elo encontrou o caminho para casa por boas mãos.
– Por que você simplesmente não me diz aonde está?
– Essa resposta Joshua já lhe deu.
O silêncio se instaurou. Os demais se entreolhavam sem entender o que se passava. Mas eu compreendi muito bem. Aquele grupo era o mesmo do meu aniversário. Alguém tinha tido contato com Victor, talvez um traidor ou alguém compelido a se tornar um.
– Senhora Aliat, acho que não entendeu a urgência. Não temos tempo para charadas. Rheyk morre a cada dia um pouco mais. – Nathan estava com sua postura de membro do exército.
– General Monteiro. – Aliat se virou para ele. – Conheço bem sua linhagem. Honre o legado de sua família e proteja minha herdeira.
– Como assim? – Felipe verbalizou a surpresa estampada na face do amigo.
– O anel. – Aliat me olhou e eu ergui a mão, examinando a peça. – É uma joia de sangue. Encarcerei a maioria de meus poderes e a função de Senhora da Luz nele em um ritual antigo, que só pode ser feito com a morte de alguém leal ao detentor do poder. Eu encantei essa joia quando mataram Nizan Monteiro, seu antepassado, Nathan, e meu Guardião Real.
– Guardião Real? – Angel tomou a frente na conversa. – O que é isso.
– É a elite do antigo exército de Rheyk. Cada membro da realeza tinha uma família de Guardiões vinculados. Claro, todos sentiam-se compelido a proteger o herdeiro direto. Porém, a lealdade era cega unicamente com os descentes daquela pessoa da realeza a qual eles foram vinculados. Haviam os Guardiões Reais dos meus tios, dos meus irmãos. A lista era enorme e os poderes, os mais variado.
Aliat voltou a encarar Nathan, com um tom de nostálgica admiração, continuou:
– A família responsável pelo herdeiro da coroa era a sua, General Monteiro. Quando meus poderes despertaram para a pequena Enny, o seu sangue foi chamado. Um pertencimento, a necessidade de a proteger mesmo que custasse sua vida. Foi seu legado despertando.
– E por que foi comigo? – Essa pergunta repercutia na minha cabeça há meses.
Minha ancestral se virou para mim, confusa com minha pergunta. Minhas mãos suadas e trêmulas tentavam achar conforto em acariciar meus braços, cravando sutilmente as unhas nas densas camadas de tecido que eu vestia.
– Meu avô e meu pai foram filhos únicos. Eu sou a segunda na sucessão. Por que meu avô me deu a joia? Essa coroa é, por direito, de Júlia, não minha. O Elo de Sucessão não me reconhecerá.
O clima frio que vivíamos em Rheyk se tornou desconfortavelmente quente, como se o fogo que queimava meu peito pudesse atingir meus pensamentos e tornar o ambiente projetado a nossa volta em algo tão desconfortável quanto eu me sentia.
– Tem razão. Não era pra ser você. – Ela foi firme, mas carregava compaixão em seu olhar. - Contudo, no momento do seu nascimento, portais se abriram por todos os universos. O véu fragilizou em todas as dimensões. Seu avô sentiu, meu anel sentiu e Victor começou a lhe procurar. Em minha existência, nunca senti uma força vital tão intensa quanto naquele dia.
Aliat andou em minha direção, a cautela em cada passo parecia um zelo para não me assustar. Era como se suas próximas palavras pudessem despertar uma tormenta em mim.
– Eu acompanhava seu pai na época e ele sabia, desde sua concepção, que você era a herdeira mais poderosa da linhagem, aquela que enfrentaria meu irmão. Seus dons clamaram pelo trono, pequena. Suponho que apenas os Mestres tenham explicação para isso.
– O Sábio, não? – Aline a interrompeu, atenta.
– Isso. O Sábio. – Aliat prosseguiu, olhando nos meus olhos, mas minha mente estava distante. - Você precisa ver pelos olhos de Rheyk, minha pequenina.
– Aliat. – Aline a chamou com seriedade. – Por que nós cinco, mesmo sendo da Terra, temos dons?
– Você sabia que é uma menina muito esperta? Admiro isso.
Aliat ergueu os braços e foi como se vários vórtices surgissem. Eu sabia que aquilo não era real, sendo meramente uma ilusão em minha mente que minha ancestral criou para tornar mais lúdica sua apresentação aos demais.
– Os portões sempre existiram entre a Terra e Rheyk. No começo da guerra, Victor foi implacável. Ele criou os soldados marcados para conseguir dizimar todos os Guardiões Reais que possuíamos porque esses guerreiros tinham dons que nós da realeza dávamos a eles. O ataque foi brutal. Os que não morreram, foram marcados. E, para piorar, meu irmão caçou a família de cada Guardião Real para garantir que não seria formado um novo exército de elite.
Aliat falava enquanto andava pelo perímetro do nosso círculo, observando a face de cada um ali.
– Alguns Guardiões conseguiram esconder suas famílias para não sofrerem com a ira do meu irmão. Uns em Rheyk, como os Monteiros, outros na Terra. Vocês, meninas, são descendentes de Guardiões Reais de Rheyk. Bem... Exceto uma... Dom concedido pelo próprio Sábio.
Mais distante, um raio cortou o céu, transformando brevemente a noite em dia. Uma tempestade chegava. O choro preso em minha garganta parecia me impedir respirar. Tentando fechar a maldita caixa de Pandora que Aliat abriu, destinei meu foco àquela conversa, mesmo que o caos consumisse minhas entranhas.
– Por que meu irmão não tem dons, então? Ou meus pais? – Jane parecia espantada.
– Os dons despertam com a energia de Rheyk, que pode ser carreada por objetos ou pessoas. A convivência com Nathan pode ter sido o gatilho para a primeira. Quando vocês passaram a conviver por aqui, levaram mais energia para as que tinham os dons mais adormecidos.
– A senhora não me respondeu porquê meu irmão não tem dons. Ou o de Luna. – Jane suspirou quando houve trovão, mais perto. A tempestade se aproximava.
– Não é porque carrega um gene que vai expressá-lo na sua vida. Tipo epigenética. É isso? – David se intrometeu e Aliat sorriu, gesticulando para continuar. – Vocês cinco receberam a magia dos seus pais, mas ela só desperta no meio ou comportamento certo para isso.
– Você é um rapaz muito inteligente. – Aliat sorriu e olhou para Angel. O seu clareou com outro relâmpago. Alguns pingos sutis começavam a cair na faixa de areia. – Fico até satisfeita em ter me envolvido na situação de vocês outrora.
– Eu também fico feliz. – Angel retribuiu o gesto, ignorando as gotas que rapidamente começaram a lhe molhar.
Então, o clima se tornou arisco. Eu não conseguia mais controlar a caixa de Pandora em mim. Ventos fortes, raios sobre o mar e uma chuva pesada. Nenhum dos meus amigos conseguia se mexer, presos à minha mente. Eles gritavam para mim, pedindo para eu reverter o feitiço. Porém, eu estava focada em meus pensamentos. Aliat falando que meu pai sabia que eu herdaria a coroa de Rheyk. Era como se todos os insultos dele fizessem sentido na minha cabeça, representando agora o medo de um homem pela vida de sua primogênita.
– É por isso que Pedro me odeia? Tem medo que eu mate minha irmã, não é? Já que eu já roubei o trono dela. – Via Aliat negar minhas perguntas. – Não é tão diferente da história de Victor. No que isso me torna?!
Meu grito foi abafado pelo trovão que ressoou próximo. As minhas lágrimas estavam escondidas pelas gotas de chuva, mas o peso que elas carregavam não podia ser negado. Meu pai me odiou a vida inteira por causa daquilo que eu representava para ele.
– Na Rainha de Rheyk. Apenas isso, pequena. Victor torturou e matou todos a quem um dia amou para estar lá. Eu te vejo desde o seu nascimento. Vocês compartilham o mesmo sangue, mas não a mesma história. Meu trono, minha função como Senhora da Luz e Rheyk são seus, por direito. É seu lugar.
Aliat me abraçou e eu desabei chorando. Os raios pararam, porém a chuva se agravou conforme eu dava vazão às minhas lágrimas.
– Eu não vou voltar, não é? Nunca mais?
– Não, minha pequena. – Aliat ajeitava meu cabelo com nítida pena. – Se voltar, é porque guerras piores virão.
A abracei novamente, sentindo-me pela primeira vez em total conexão com Aliat. Compartilhávamos aquela sina, o peso da coroa que não queríamos a priori, mas era nossa responsabilidade.
Aos poucos, a chuva e vento deram lugar à claridade e a uma brisa suave. Abri os olhos e vi que minha mente nos transportou para o Salão Omiso. Aliat me soltou, seu semblante era de puro medo e dor. Ela olhava para cantos específicos do lugar, como se esperasse que algo estivesse lá.
– Foi aqui que Victor...? – Ela entendeu minha pergunta e assentiu. – Qual a chance dele tentar fazer o mesmo comigo?
– Meu irmão é um monstro. Ele vai tentar lhe derrubar matando cada um que você diz amar. Quer os proteger? Não deixe Victor saber quem são... E não cometa o erro que eu cometi. Mate-o na primeira oportunidade. – Ela continuava olhando assustada ao redor, como se esperasse uma ameaça chegar. – Agora nos tire daqui. Ele é muito mais forte do que você imagina neste local.
– Enny, vamos embora. – Jane chamou. – Estou sentindo a mente de alguém se aproximando.
Aliat se aproximou de mim, fingindo um abraço enquanto me murmurava as seguintes palavras:
– Pequena, eu não posso explicar tudo a você... Não aqui ou agora. Porém, Lúcia sabe as respostas para muitas de suas perguntas. Pegue-a de surpresa, ela não dirá de outra forma. –Aliat se afastou e continuou a plenos pulmões: – Vão! Victor está perto de encontrar a mente de vocês.
Fechei os olhos e falei os versos que finalizariam o feitiço. Ao reabrir, pude ver que estávamos todos deitados na areia gélida da praia. Observei cada um acordar por vez, sobressaltando-se com o regresso da consciência. Apesar de ser a primeira a voltar, fui a última a levantar, esperando que o tempo aliviasse o peso daquela conversa sobre o meu corpo.
– Uma pena não termos conseguido mais informações sobre o Elo. – Angel me deu a mão para que eu levantasse. – Aliat levou a conversa para outro ponto. Talvez ela não saiba de fato. Vamos o encontrar juntas, Enny. Não se preocupe.
Pude apenas concordar. Contudo, eu sabia, pelo que ela disse, que só eu poderia saber onde era. Fomos nos preparar para dormir. Por causa do frio, ficou decidido dormir em pares e um trio. Angel e David; Felipe e Jane; eu, Tracy e Luna; Aline e Nathan. Quando Felipe saiu para pegar mais água para bebermos, Aline e Jane vieram falar conosco.
– Tracy, Luna ou Enny, alguma de vocês poderia dormir com Nate? – Aline falou, me olhando. – Jane não está se sentindo confortável de ficar sozinha com Felipe e, admito, eu não me sinto bem ficando apenas com Nathan.
– E por que Felipe não dorme com Nate e vocês duas juntas? – Luna estava tão confusa com aquele xadrez quanto eu.
– Na verdade, acho que talvez Enny ficasse melhor com Nathan, mesmo. – Jane foi direta.
Eu, Luna, Tracy e Angel paramos o que estávamos fazendo para encarar as outras duas. Nós quatro nos entreolhamos, ainda procurando entender o que estava acontecendo.
– Eu estou perdendo algo? – Angel foi a primeira a quebrar o silêncio.
– Não é? – Aline zombou logo em seguida. – Quando ela chamou para falar isso, eu fiquei chocada!
– Ai, gente! Estou tentando evoluir e desapegar aqui. Não façam uma grande coisa disso ou vou voltar umas três casas nesse jogo. – Jane abriu um sorriso.
– Olha como ela está completamente evoluída. – Apesar do tom brincalhão de Luna, a ruiva olhava a outra com admiração. – Feliz ver a Jane do velho testamento de volta.
A garota de olhos de oceano estirou a língua para Luninha que fez o mesmo em reflexo.
– Nate, definimos aqui. Eu e Jane com Felipe e você dorme com Enny. – Aline gritou para o amigo. – Vai, Guardião Real da Herdeira da Coroa, a responsabilidade de cuidar da princesa é sua.
Apesar de ter sido uma brincadeira, tanto eu quanto ele ficamos sérios, nos encarando. Em pouco tempo, todos fomos nos deitar. A brisa marítima parecia cristais de gelo, agredindo sutilmente o calor que os nossos corpos emanavam. Nathan, percebendo o quanto eu tremia, pegou minha mão e me levou para a margem da floresta. Era um canto mais escondido da ventania que tanto nos afligia.
Não tínhamos trocado qualquer palavra após a conversa de Aliat, um silêncio gerado pelo peso das revelações de hoje. Enquanto ele arrumava as cobertas para deitarmos, tentei quebrar o clima tenso.
– Parece que estávamos predestinados, não é? – Brinquei, forçando um ânimo em mim. – Pelo menos, dá para entender o porquê você sempre quis me proteger tanto.
– No começo? Talvez. – Ele deu uma risada anasalada – Na verdade, agora muita coisa faz sentido. Mas eu não tiro uma palavra do que disse hoje. Eu amo Enny Scott Peres, não a rainha de Rheyk ou Senhora da Luz ou Herdeira Garfi. Espero que, o quer que você sinta por mim, seja pela minha pessoa e não pelo Guardião Real.
Mudamente assenti e segurei sua mão, acariciando o dorso. Sua boca se entreabriu e os olhos escureceram, o desejo de me beijar tomando forma nele. Sendo absorvida naquele clima e na escuridão que nos cercava, dei um passo em sua direção, minha mão ascendendo pelo seu braço. Porém, dessa vez, Nathan recuou, os olhos procurando onde Felipe estava.
– Se quiser, podemos conversar mais depois. O dia foi cansativo para você. É bom descansar. – Notei a posição do General Monteiro assumir.
– Não precisamos conversar sobre isso. Eu acredito em você. – Apontei com os olhos para onde o rapaz antes encarava. – Não confia nele?
– Com minha vida. Ele é como um irmão para mim. – Nathan deu um suspiro pesado. – Mas não aposto sua vida nisso. Quanto menos pessoas da rebelião souberem do meu amor por você, mais segura estará.
Deitamo-nos, um de frente para o outro, minha cabeça apoiada no seu braço e quase encostando meu nariz no tecido de sua camisa. Seu cheiro mutuamente mentolado e amadeirado era único, reconfortante. Por um momento, ele acariciou meu braço, ainda tentando me aquecer, demorando-se quando tocava minha pele. Porém, em pouco tempo, senti que ou ele fingia muito bem ou adormeceu. Pela sua ausência de consciência, eu encontrei coragem para falar o que queria.
– Eu te amo, Nate. – Mal pude escutar meu próprio sussurro. As próximas palavras saíram um pouco mais audíveis. – Mas estou com tanto medo de que seja você de quem Aliat e Joshua me alertaram. Por favor, não seja você.
"Victor é um mestre em manipular amor e medo."
Foi isso o que Thomas me disse outrora, foi por essa via que Victor converteu ele e outros rebeldes. Meu peito apertava ao cogitar que o déspota tivesse usado essa via para atingir Nathan, para me atingir.
Encostei minha testa em seu peito e ele se ajeitou, me apertando com força contra si. Ainda estava bem frio, só que agora eu me sentia segura. Ele tinha esse efeito sobre mim.
Enquanto o sono não vinha, revisitava a conversa com Aliat em minha mente, por mais torturante fosse lembrar a memória de alguns trechos. Tentei recordar de tudo. Palavra por palavra... Até que...
"Você precisa ver pelos Olhos de Rheyk."
Eu sabia onde estava o Elo de Sucessão.
E, com essa certeza, caí em um sono nem tão tranquilo nem tão relaxante. Porém, pela primeira vez em muito tempo, os pesadelos não vieram me assombrar.
Acordei em um salto, igual a todos os dias. O sol nascera coberto pelas nuvens neste sábado, ou seja, um dia normal para Rheyk. Porém, em pouco tempo, se fosse ágil, teria essa joia e então, oficialmente, começaria o planejamento para a última batalha que Rheyk veria. Derrubaria Victor de uma vez por todas.
***
¹ Significa "Puta que pariu". Enny é muito fofinha para traduzir para vocês.
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