Capítulo 3 - Rheyk
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Meu corpo se contraiu repentinamente no chão empoeirado, do mesmo jeito que acontece quando tenho um pesadelo. Dessa vez, me recusei a abrir os olhos. Não suportava mais aqueles sonhos infernais! Mas, se tinha sido só um sonho, por que minha perna parecia latejar? Por que o ar a minha volta estava tão pesado? Por que era tão difícil respirar?
– Agora esperar a bela-adormecida resolver acordar para descobrir de onde ela é. – Era uma das vozes que estavam no meu quarto. Ela carregava acidez que só uma patricinha sabe usar.
Apertei ainda mais meus olhos e paralisei. Droga! Não tinha sido um sonho? Não! Tinha que ser! Não faz menor sentido personagens de um desenho infantil atravessarem uma TV para me sequestrar. Mas, por via das dúvidas, ia ficar quietinha aqui até eles se distraírem para que eu pudesse fugir. Se eu estava presa em um sonho, tinha que me manter viva até acordar.
– Nate, você tem alguma suspeita? Conhece ela? Ou por que Petrik a quer? – Uma voz angelical, que me lembrou mamãe, soou. Ótimo, Angel continuava aqui.
– Nunca vi. Mas... Alguma coisa no olhar dela me pareceu familiar. – O rapaz respondeu, irritadamente frustrado. – Eu deveria saber, não é? Mais uma falha para mim.
– Ah, Nathan! – Uma nova voz, mais aguda e infantil que as demais, disse. Essa era nova. – Deixa os dramas para mim, amigo. Você não tem obrigação de conhecer cada habitante desse mundo.
– E olha as roupas dela. – Uma garota interrompeu. Sua voz doce parecia um riso que se estendia. Muito bom. Mais uma voz nova. – Qual é? Com certeza, essa menina devia estar escondida na Terra há algum tempo.
– A grande pergunta é: por quê? – A voz rouca de Aline falou de forma analítica. Ao menos uma que eu conhecia. – Petrik foi atrás dela. Ele nunca foi buscar cidadãos de Rheyk na Terra. Tem algo diferente nessa garota.
– E pior, Aline. – A voz irritada, a primeira, voltou. – O que vamos fazer com ela?
Bem, supus que as três novas vozes fossem das outras três garotas do quinteto que eu não vi na Terra. Mas, honestamente, não estava com coragem de abrir os olhos e descobrir. Queria sondar para escutar qualquer coisa importante antes.
Ouvi uma risada gostosa ressoar pelo ambiente e uns passos serem dados em minha direção.
– Nossa! Estava pensando em levar ela para Aline fazer uns testes de laboratório e poderíamos a tornar nosso pet. Não é legal? – Apesar da atrocidade dita, sua risada deixava nítido que ela zombava da outra. – Jane, sua bobinha. A garota deve ter nossa idade, vamos deixá-la ir para casa. O certo é o certo.
Jane... Era o nome de uma das garotas do quinteto. A que eu menos gostava de assistir.
– Não sei se é o mais seguro. – Aline ponderou. – Se Petrik quer tanto a cabeça dela, Victor almeja isso. A deixarmos ir pode significar colocar uma arma para a cabeça da menina.
Engoli em seco e, com essa frase motivadora, decidi abrir meus olhos. Tentei me mover o mais lentamente possível para não representar um perigo para aqueles que me fitavam. Com esmero, coibia meu desejo de correr desesperada. Precisava analisar o recinto primeiro.
Estava deitada em um chão muito sujo de terra preta. O clima era úmido e quente, fazendo diversas gotas de suor marcarem meu pescoço e capturarem mechas do meu longo cabelo. Olhando ao redor, supus que estávamos em alguma casa decrépita totalmente abandonada. Havia uma lamparina metálica perto de nós, a única fonte de luz no recinto. Ao redor daquele lugar, seis adolescentes me cercavam. Meus olhos se arregalaram o máximo possível, reconhecendo a verdade.
Céus! Esse era o sonho mais louco que eu já tive! Eram realmente os membros do programa infantil Rheyk. Angel, Aline e Nathan estavam mais próximos. As outras três garotas do quinteto, Tracy, Luna e Jane, também se faziam presentes. E não... Não como desenhos. Eram de carne e osso assim como eu. Meu queixo caiu de surpresa, fitando os seis pares de olhos que acompanhavam qualquer movimento meu.
Minhas mãos deslizaram para minha perna e eu encontrei o rasgão na calça de algodão rosa onde outrora estava o corte feito por Petrik. Pele limpa, sem qualquer sinal de machucado. Então, por que ainda doía? Por que minha mão direita formigava?
– Oi, garota. Tenha calma, por favor. – A voz irritantemente aguda era da loira Tracy. – Queremos só conversar. Me chamo Tracy. Como é seu nome?
Assim que ela deu um passo em minha direção, abriu uma brecha e eu pude ver o brilho do luar, denunciando uma saída daquele casebre. Pus-me de pé lentamente, evitando que eles notassem meu plano, e aproveitei o aparentemente relaxamento deles para correr. Deixei atrás de mim seis gritos de surpresa.
Assim que atravessei o buraco na parede da parede de barro, paralisei em choque. Era noite, a luz branca emitia seu fraco brilho no céu nublado e sem estrelas. Estava no meio de uma rua de terra negra batida e esburacada com algumas pedras, dando a entender que em algum momento – há muito tempo – ali já foi calçado. A rua era sinuosa e ficava na parte baixa de um declive, permitindo contemplar uma cidade decrépita que ascendia aos céus. O esgoto parecia correr uma rua abaixo, explicando o embrulhar no meu estômago com a amônia que ardia aos olhos. Uma sutil neblina avermelhada tomava o ambiente, carregando o cheiro de enxofre, e parecia pesar nos meus pulmões.
Senti mãos fortes me alcançarem, agarrando-me pelo braços. Mas não me importei. Meu olhar era para o horizonte, cativo. Não podia crer no que enxergava. Subindo um monte, logo acima da cidade, havia um castelo colossal, cercado por um muro de pedras gigantescas. De lá, era possível ver uma luz vermelha intensa sendo emitida. Céus! Era onde Victor Garfi morava.
– Bem-vinda de volta a Rheyk, garota. – A voz grave de Nathan soou perto do meu ouvido, causando-me um arrepio na nuca. Será que me fariam mal?
De supetão, eu o empurrei e tentei correr. Mas um campo de força surgiu na minha frente e eu dei de cara nele, caindo no chão pelo impacto. Gemi de dor, sentindo meu nariz derramar uma gota de sangue. Logo depois, eu perdi minha visão, ficando tudo negro. Pude sentir as mãos calosas do rapaz me segurar e amarrar meu pulso a algo e então meu sentido voltou, permitindo-me constatar que Nathan me prendeu a ele.
– Lógico, nos meus sonhos vocês também têm poderes. Droga!
Sim! As garotas tinha dons para facilitar e muito a minha vida. Luna possuía a capacidade de levitação, Tracy construía campos de força, Aline era capaz de transmutar objetos – transformando-os no que sua imaginação permitisse. Angel e Jane partiam para um nível mental mais difícil de explicar. A primeira conseguia trocar de sentido com seu alvo, entrando na mente da sua vítima e podia ver, ouvir e sentir por essa e, além disso, ainda conseguia privar o indivíduo de seus sentidos – como acabara de fazer comigo. Jane, por sua vez, invadia a mente da pessoa e conseguia descobrir seus medos e anseios, podendo gerar uma ilusão da sua vítima confrontando isso. O dom dela era talvez o que mais me assustava.
E agora, eu, sem poderes, sem sanidade e em um sonho que insistia em não acabar, tinha que lidar com essas cinco mais um líder do exército rebelde. Talvez seja melhor ficar quietinha e cooperar com eles, que são os mocinhos, antes que me mandem direto para o vilão.
– Como assim "sonho"? – Luna, com sua voz risonha, mesmo quando séria, perguntou.
– Óbvio que tem que ser um sonho. Vocês seis me salvando de Petrik? Ou eu surtei de vez ou não devo ter acordado ainda do pesadelo.
– Eu resolvo isso. – A rude voz de Jane fez questão de ressoar. Bem, a soberba voz de uma patricinha irritante fazia jus a ela.
A garota de longos cabelos lisos negros, olhos azuis como safira e a maior beleza que já vi na vida se aproximou agilmente de mim. Com um rápido movimento, ela me esbofeteou uma única vez na cara. Meu semblante de choque ficou escancarado. Angel pegou a amiga pelo braço e a afastou de mim.
– Acordou? Oh, não! E nem vai, queridinha, porque isso é real. Então, pare de se fazer de louca, e comece a nos ajudar.
Institivamente, me preparei para dar um gancho de direita naquele nariz irritantemente perfeito dela. Patricinha metida idiota! Infelizmente, meu contragolpe foi frustrado por motivo de minha mão direita estar amarrada a Nathan. Duas garotas se colocaram entre nós e eu as reconheci, Tracy e Aline.
– Chega, Jane. – Angel, a líder, usou seu tom autoritário. Era dela que vinha a voz que me lembrava mamãe. – Eu e Tracy prosseguimos daqui.
Olhei melhor a loirinha, que entrou no grupo por último, se aproximar de mim de forma apaziguadora.
– Garota, como é seu nome? – Ela se aproximou com cuidado de mim.
Tracy era um pouco mais alta que eu, mas sua magreza e jeitinho de princesinha de filme infantil a fazia parecer menor e com menos idade, apesar de ser quatro meses mais velha. Ela lembrava uma fadinha, com um rostinho pequeno, narizinho arrebitado, olhos redondos de cor mel e cabelo de longos cachos dourados até a cintura. Era a mais novinha do grupo.
– Oi? Você está me ouvindo? Consegue me entender? – A caçula me chamou a atenção.
Levei a mão para o nariz, limpando o rastro de sangue que o impacto com o escudo tirou de mim. Dor. Eu sentia dor. Nos meus sonhos, eu sempre despertava quando algo mais doloroso acontecia, mas nada agora... Ou dessa vez não era sonho ou não iria despertar. Isso não podia ser bom...
– Enny. Enny Scott. – Me vi beirar ao gaguejar devido à incredulidade. – Vocês são reais? Eu estou realmente com vocês seis em Rheyk? Como é possível?!
– Garota, você sabe quem nós somos? – Aline, a da voz mais rouca ali, perguntou. – Como?
Impressionante como Aline era, ao mesmo tempo, igual a como sua voz soava, uma alma velha presa em um corpo jovem, e totalmente oposta. Seu estilo destoava das garotas, com suas vestes hippies, brincos tribais, o bronze em sua pele e os pequenos olhos ágeis marcados sempre por um delineado forte de cores variáveis conforme seu humor.
– Certeza que Petrik não danificou o cérebro dessa garota? – Jane escancarou escárnio na sua frase. – Parece que não sabe sequer falar.
A voz com aquela típica entonação de patricinha me irritou. Jane era sim maravilhosa fisicamente e os diversos prêmios em campeonatos de miss provavam isso, mas que menina irritante, baixa, fútil! Parecia que usava um escudo de sarcasmo para evitar ser um humano funcional. Tudo bem que eu não era muito diferente, só que ela era pior e isso me tirava totalmente o bom-humor.
– Você é moca? Não me ouviu falando antes? Ou Petrik arrancou um pedaço do seu cérebro? Se é que já houve algo nessa cabeça. – Não pude evitar retrucar as ofensas dela, mesmo sabendo ser idiotice na minha situação.
– Ai! Essa doeu. Bom que aprende a ficar quieta. – Luna ria, mas olhava ao redor. – Estamos começando a chamar a atenção.
– Nate, tem algum lugar seguro que possamos levar ela? – Angel questionou agilmente.
– Neutro não tem muita opção. – O rapaz franziu o cenho, nitidamente desconfortável com a opção que passou por sua mente. – Podemos ir na casa da Madame Kia. Conseguimos um quarto particular para conversar. Vai ter privacidade.
– Que maravilha! Uma cabaré. E ainda vem dizer que não me trai. – Jane disse acidamente para o nada.
– Até onde eu saiba, você acabou comigo semana passada. – Nathan travou a mandíbula ao encarar a garota de olhos de oceano. – Vamos.
Ele foi na frente, me arrastando junto. Sim, o rebelde e Jane viviam em um relacionamento de idas e vindas com várias acusações dela de traição. É verdade? A televisão nunca mostrou. Coloco minha mão no fogo? Considerando que estava indo em um prostíbulo que ele conhecia e a sua beleza exorbitante, minha resposta era um gigantesco "não".
Caminhava olhando ao redor, vendo as casas que pareciam desabar, as ruas que se desfaziam, o lixo a céu aberto. Era difícil de respirar e não necessariamente pela insalubridade. O ar parecia denso ao mesmo tempo que carecia de oxigênio. Percebi que não importava aonde estava na cidade, sempre conseguia ver o castelo de Victor.
Dobramos em uma rua e eu travei meus pés, vendo gaiolas penduradas com pessoas caquéticas presas e expostas. Abaixo dessas, dormiam alguns animais que me lembravam o corpo de um coiote, mas com as penas longas de um lobo-guará e pupila igual a de uma ovelha. Que canídeo bizarro era esse?
– Por que ninguém ajuda eles? – Falava através do meu ofegar. Os olhos, em pânico, notavam que algumas daquelas celas já detinham cadáveres deixados lá para apodrecer.
– Por que acha que existe a rebelião? – Nathan mantinha um semblante sério, evitando olhar para cima. – Esses são os prisioneiros de pequenos furtos. Se sobreviverem aos cinco dias, estarão livres. Não podemos nos arriscar resgatando esses.
– Eu nunca tinha visto isso. – Sussurrei meus pensamentos mais íntimos.
– De qual vila você vem? – Havia estranhamento em sua voz. – Em qualquer cidade maior acontece isso.
Antes que eu pudesse responder, Luna apareceu, cobrindo-me com um manto e colocando o capuz sobre meus cabelos. Olhei para a menina de forma assustada.
– Roubei para esconder essas vestes. Se Petrik está atrás dela, temos que ser discretos. – A garota deu um sorriso caloroso para mim e Nathan.
Luna era um raio de sol à parte. Sentia-se uma energia boa só de estar perto dela. Fisicamente, era a mais diferente. Estava com sobrepeso, surpreendentemente branca – beirando ao albinismo –, tinha o cabelo vermelho como fogo com cachos bem fechados e olhos redondos azulados. Sua boca tinha um formato pitoresco de coração, mas isso era difícil de notar porque ela quase sempre estava com um sorriso.
– Garota, me tira uma dúvida. Como você cicatrizou aquele corte horroroso na sua perna tão rápido? Tem poderes também?
– Não. – Minha voz afinou devido ao choque da pergunta. – Sem poderes por aqui. Sei lá... Talvez a mudança de dimensão. Não sei. Eu só acordei em Rheyk porque o irritadinho aqui me arrastou.
– Salvei sua vida, mal-agradecida. – Nathan puxou a corda bruscamente, causando dor no meu pulso.
– Quando voltar para casa, eu agradeço. – Usei o mesmo tom ácido dele.
Paramos em frente à porta dos fundos de uma residência grande. Era uma casa bem estruturada e com muito barulho na parte interna. A porta foi aberta, deixando ver uma mulher de seus quarenta anos, seios fartos apertados pelo corset e saia do vestido era muito curta para um padrão mais conservador. Ela abriu um imenso sorriso vendo o garoto ao meu lado e parou para observar as meninas.
– Ora, ora. Pensei que nunca mais veria você, pequeno Nathan. Seis garotas? Não sabia que era adepto de orgias. Era só ter me avisado que providenciava para você.
Minha bochecha esquentou e eu sabia que estava rubra de vergonha com aquela conversa.
– Só vim porque era necessário, Madame Kia. Preciso de um quarto. E pode me chamar de General Monteiro. – O rapaz tirou umas pedra negras do bolso. Ele colocou um sorriso malicioso na sua face e falou quase como um ronronar. – Digamos que queremos toda a privacidade que eu sei que só sua casa pode ter.
O sorriso da mulher abriu ainda mais, adquirindo um traço grotesco enquanto ela tomava aquelas pedras em suas mãos. Ela o entregou uma chave dourada.
– Segundo andar. – Madame Kia me olhou de baixo a cima. Eu encarei o chão, nervosa. – Essa é bonita e parece intocada. Se não a usar, pode deixar comigo que eu consigo um bom valor por ela e podemos dividir os lucros.
– Se ele não a usar, pode deixar comigo. – Aline interrompeu e entrou no bar, tomando a corda das mãos de Nathan e me puxando com ela.
Tudo ali me chocou. As mulheres com seios expostos deixavam os homens beberem em seus corpos e logo se sentavam em seus colos, trocando beijos e carícias. Céus! Nunca na vida beijei, sequer assistia a filmes mais indecentes. Tayane vivia me chamando de menininha por causa disso. E agora... isso?! Definitivamente, não era um sonho. Minha cabeça, apesar de enlouquecida, jamais conseguiria conceber essas coisas.
Agradeci o fato de Aline não se demorar no trajeto, me puxando até que eu e os meus seis sequestradores estivéssemos dentro de um quarto espaçoso e perfumado com cheiro de erva-doce. Assim que a porta foi trancada, ela soltou o outro lado da corda.
– Agora é hora de falar. Enny, não é? – Angel assumiu sua posição de líder, colocando-se na minha frente. – Por que você estava na Terra?
– Talvez porque seja minha casa? – O deboche foi mais forte que o bom-senso devido ao medo. – Vocês que apareceram na porcaria do quarto da minha mãe e me arrastaram para este mundo.
– Engraçado, um mundo que você parece conhecer bem, garota. – Nathan bufou com ironia.
– Claro! Eu assisto a Rheyk desde que tenho oito anos! – Me sobressaltei. – Vocês são um desenho animado para mim. Entenderam o porquê eu pensei que era um sonho?
Jane e Aline começaram a gargalha, nitidamente ariscas à ideia. Angel e Luna, todavia, se entreolharam com um quê de torpor, notando o traço de verdade em meu choque.
– E espera que acreditemos nessa palhaçada? – Aline perguntou. – É melhor abrir a boca ou vamos ter que usar a força.
Bufei, rindo com raiva daquele interrogatório. Eu era a droga de uma refém em um mundo de ficção. Tudo bem, ia jogar conforme as regras do jogo. Luna ou Tracy disse antes que iriam me mandar para casa depois disso, não é? Então, que seja assim.
Caminhei até a cama, onde Tracy já estava sentada e, respeitando uma singela distância, me juntei a ela. Os olhos daquela garota eram curiosos, mas doces. Para aquela pessoa, eu contaria a verdade, não para a soberba da Jane. Abri e fechei minha mão direita repetidamente, tentando mitigar a dormência que vinha do meu dedo maior de todos.
– Não acreditam em mim? Eu tenho como provar. – Funguei, coibindo as lágrimas que queriam vir à tona. – Sei que vocês garotas vêm da Terra... Digo, sua Terra, e descobriram há poucos anos sobre Rheyk onde Nathan nasceu e hoje é da rebelião contra Victor Garfi... E, também sei que... Bem... Jane levou uma queda de bicicleta e tem uma cicatriz na coxa. Ela contou isso para as vocês no dia em que Aline caiu de patins, depois que saiu do trabalho no restaurante de Dona Lúcia. E-e... o pai de Angel a abandonou quando ela era um bebezinho. Não se fala sobre isso, mas todos vocês sabem desses segredos.
A cada palavra minha, os olhos de cada uma das meninas se arregalavam e elas pareciam em choque e furiosas ao mesmo tempo. A corda amarrada em meu pulso foi transmutada para uma algema de ferro pesada e bem apertada e eu reclamei de dor. Angel veio em minha direção com passos pesados. Ela tirou um canivete do cós da calça e apontou a lâmina para minha garganta.
– Há quanto tempo você vem nos espiando? É uma nova marcada de Victor?
– Eu? Vocês são surdas ou o quê? Eu não sou desse universo! Venho de uma outra Terra! Victor, para mim, é um vilão de desenho infantil, Petrik e Thomas, seus lacaios, vocês seis, Dona Lúcia são ficção pra mim! – Percebi que aqueles seis formavam um cerco ao meu redor. – Esperem! Me escutem! A avó de Aline morreu cedo. Você guarda a foto dela com Dona Lúcia debaixo do livro Orgulho e Preconceito, o favorito de sua avó. Estou mentindo? Teria como espionar isso?
Era uma boa evidência. Ninguém sabia disso, sendo um segredo de Aline e que apareceu ao fim de um episódio dramático com ela chorando sobre a fotografia no seu quarto. A garota, ouvindo o que eu sabia, recuou e os demais a acompanharam, confusos.
– Ela não está mentindo – A voz de Aline falhou. – Se o que ela tá dizendo é verdade...
– Como? – Tracy completou, catatônica.
O formigar em minha mão aumentou e eu olhei finalmente para ela, encarando a fonte daquela sensação. O anel. Vê-lo foi o suficiente para me trazer a memória do reflexo daquele homem antes que eu fosse para escola. Aquele cabelo ruivo, aquelas fisionomias... Céus! Era claro!
– Victor veio atrás de mim. Hoje... Antes de Petrik. Ele tentou roubar esse anel. Foi isso que aquela besta veio atrás. O anel. Esse anel.
– Garota, qual foi o beco estranho que você achou isso? – Mesmo sem querer, Luna fazia piada.
– Teoricamente, é uma herança familiar. – Respondi encarando a joia. – Por isso eu não consegui entregar.
E, até agora, por mais lógico que isso parecesse aos ouvidos, era como se fosse a ação mais absurda que eu pudesse tomar. Meu coração apertava só de imaginar me livrar dessa joia. Foi meu avô que me deu. A única coisa que eu tinha da minha família paterna, que me fazia ser parte daquele lado. Era meu e não de um vilão qualquer de desenho infantil.
– Será que tia Lúcia sabe alguma resposta para isso? – Angel encarou Aline.
– Vocês estão comprando essa ideia que não somos reais? – Jane parecia carregar mágoa em sua fala. – Quer dizer que um sádico desgraçado do mundo dessa pirralha acha que pode controlar nossa vida? Matar a gente e os nossos a seu bel prazer? Que merda é essa?!
– Calma, princesa. – Nathan se aproximou dela com olhos preocupados. Parecia haver algo não dito sobre essa situação, um segredo. – Vamos conversar com tia Lúcia antes.
Ela o abraçou, parecendo conter um choro. Por sobre a cabeça dela, o rebelde não tirava os olhos dos meus, parecendo nitidamente confuso. As outras garotas se olhavam com o mesmo estranhamento. Aqui não era meu lugar. Silenciosamente, me pus de pé, chamando a atenção do sexteto para mim.
– Desculpa estar parecendo insensível, mas eu quero voltar para minha casa. Acham que conseguem me levar para... Sei lá de onde vocês saíram?
– Como se a gente soubesse... – Tracy encarava o chão, apática. – Nate encontrou por acaso seu portão e nos chamou para observar. Fechou pouco tempo depois que vocês voltaram.
– E como volto para casa? – O desespero em minha voz era claro.
O silêncio foi opressor. Angel olhou ao redor, parando para encarar Aline como se pedisse uma autorização que, após muito diálogo mudo entre elas, foi dada.
– Vamos levar a Enny conosco para Terra... A nossa Terra, só pra ficar claro. Precisamos confirmar esse negócio de sermos um desenho com tia Lúcia, vermos qual é a história com esse anel e acharmos um jeito de mandar a garota para sua casa.
Com um movimento de cabeça, agradeci pela ajuda. Aline transmutou novamente a algema de ferro para uma corda e o alívio foi imediato. Nathan veio em minha direção e tirou a corda do meu pulso.
– Em algum desses episódios, nos livramos de Victor? – Ele murmurou.
Surpreendi-me com sua pergunta e o medo que ela carregava. Sempre o via tão confiante nos desenhos que notar seu receio de nunca ter sucesso me fez questionar o quanto de fato conhecia aqueles seis. E, verdade seja dita, considerando que eles estavam absorvendo ainda que não eram reais, eu não queria pesar a notícia com o fato de que nunca houve um final. Que foram cancelados...
– Ainda não cheguei lá. Quando eu assistir, eu te conto. – Murmurei em resposta, dando um singelo sorriso de confidência que o fez agir da mesma forma comigo.
Estando livre, saímos o mais rápido possível daquele lugar pecaminoso em todas as instância. Percebi que Luna e Tracy ficaram tão envergonhadas quanto eu com aquilo e me aproximei delas por pura empatia. Angel, Aline e Jane pareciam mais maduras, vividas. Conseguia me identificar melhor com as duas mais novas.
– Nate, tem algum portão para Terra por perto? – Aline perguntou assim que chegamos na rua.
Meu coração descompassou. Iria atravessar um portão pela primeira vez. Ao menos, seria a primeira vez consciente. E iria conhecer a Terra delas e Dona Lúcia. Céus! As loucuras desse dia não acabavam. O que mais poderia acontecer?
Ouvi uma risada profunda tomar o ambiente. As garotas assumiram uma posição de duelo e Nathan veio para meu lado de forma mais protetora.
- Mas já? Vocês ficam tão pouco em Rheyk.
Vi o vulto que era a origem daquela voz gélida. Ele foi se aproximando e pude ver quem realmente era, mas eu já sabia antes mesmo de encarar seus olhos vermelhos. Thomas. Era o mensageiro e rastreador de Victor. Sempre que Petrik não podia acabar com algo, Thomas ia. Ele era um marcado singular. Seu cabelo branco arrepiado – com poucos fios castanhos – era bem parecido com a tonalidade de sua pele e seus olhos vermelhos eram bem amedrontadores para mim. Alguns pontos do seu rosto eram deformados, criando um vislumbre animalesco no homem. Há rumores que ele se juntou a Victor para proteger seu melhor amigo - Petrik - quando este se alistou.
– Olá, Enny. Soube do seu pequeno conflito com Petrik. Ele lhe assustou, pequena?
Nathan assumiu ainda mais a minha frente, de forma protetora. Sua mão esquerda se estendeu e pegou a minha direita, como se me sinalizasse que não deixaria nada me acontecer. Eu, porém, experienciava uma calma que nunca tive.
Nada vai lhe acontecer agora.
Essa voz de novo... Quase como minha consciência, mas tinha certeza que não era isso.
– Pequeno? Ele tentou me matar. Sorte minha que ele é ruim no que faz. – A confiança que minha voz transmitia não era compatível com o meu coração acelerado.
– Peço desculpas pelo mau jeito. Vamos começar do zero? Eu sou Thomas e meu mestre está ansioso para lhe conhecer. Venha comigo.
Instintivamente apertei um pouco a mão de Nathan. Mas, antes que eu pudesse dizer qualquer palavra, Angel assumiu a liderança.
– Se quiser chegar nela, vai ter que passar por a gente. – Ela sorria com presunção de quem sabia que não perderia esse duelo. – Nathan, leve Enny para um lugar seguro.
– Pode vir, Petrik. Elas querem lutar. – Thomas parecia mortalmente satisfeito na resistência delas.
A besta assustadora com corpo de serpente e seis patas avançou como uma fera para derrubar as garotas. Nathan me puxou pela rua e a última coisa que eu vi foi Tracy e Luna entrando na frente de Thomas quando esse nos perseguia. Era nítido que elas iam ter dificuldade para ganhar ou até mesmo tinham altas chances de perder.
Usei todo o peso do meu corpo para fazer Nathan parar e o encarei com pavor. Meu olhar apontava para o local de onde vínhamos, demonstrando que estava em pânico por as deixar.
– Garota, entende uma coisa. – A fúria por fugir dominava sua voz. – Quanto mais tempo você ficar nesse mundo, maior é o risco para as garotas. Temos que te tirar daqui.
Pus-me de pé, apertei meu indicador com firmeza no seu esterno e o encarei com mais intensidade do que achei que fosse capaz.
– Meu nome é Enny Scott e não sou o tipo de garota que deixa ninguém para trás. Nós vamos voltar, me usem como distração e deem uma surra neles. Já vi isso acontecer diversas vezes.
– Quem você pensa que...
– Se o General Monteiro não vier comigo, eu volto só. – Ao perceber que eu não ia vacilar, ele concordou. – Ótimo. Oficialmente, eu enlouqueci. Vamos nessa.
Assim que regressamos à rua principal, ao lado da casa de Madame Kia, pude ver uma Tracy e Luna contra à parede, tentando se proteger dos insistentes ataques de Thomas. Peguei uma pedra e joguei na cabeça dele.
– Não é o anel que vocês querem? Então venham pegar! – Gritei com mais confiança do que achei que seria capaz.
Thomas paralisou, notoriamente chocado com a coragem da humana de baixa estatura e pouco idade na sua frente. Eu mesma não me reconhecia naquela menina. Mas sabia que, apesar da falta de amor a vida, essa era a escolha certa a fazer. Sentia isso no meu peito. Petrik, por outro lado, pareceu gratificado com meu retorno e não tardou em avançar de maneira animalesca em minha direção.
– Petrik, não! – A voz do rastreador ressoou com força.
Mas era tarde demais. Antes que eu pudesse entender o que estava acontecendo, o formigar na minha mão se tornou um calor que tomou minhas veias de forma intensa em direção ao meu esterno. Fui tomada por um frenesi que fez minha visão escurecer. Ótimo, desmaiei mais uma vez!
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