Capítulo 29 - Aniversário
Estava em frente a um espelho que ia do teto ao chão. O corpo que eu via era parecido com o meu de dez anos. Entretanto, essa eu era mais alta, magra e bonita. Passei a mão em meu rosto, analisando a pele lisa de veludo e branca como neve recém-caída.
– Aliat! – A voz fina de um garoto me fez olhar para a porta. – Vem, não pode atrasar para sua festa. Falando nisso, feliz aniversário, Hecozonha.
Eu saí do corpo da menina e comecei a assistir, como uma telespectadora, ao que se passava. Ela se levantou do banco e saltitou até o garoto. Os dois sorriam como melhores amigos que escondiam um grande segredo do mundo e se orgulhavam disso. A semelhança entre eles era incrível: o formato do rosto, do nariz, dos olhos e lábios, até o cabelo tinha a mesma cor. Eles eram irmãos. Eles eram Victor e Aliat.
O que minha ancestral queria me mostrar?
Andei pelos corredores do castelo acompanhando os dois amigos, irmãos e confidentes. Chegamos ao início de uma escadaria monumental. Abaixo havia uma atenta multidão que me encabulou. Contudo, nenhuma das crianças pareceu se importar, ambas descendo com calma e elegância ímpar.
Quando chegaram ao último degrau, um casal – ao qual presumir serem os pais – os receberam. Victor se conteve em ir para o lado, enquanto o pai se aproximou da primogênita ladeado da esposa. Ambos carregavam um nítido orgulho no olhar.
– Filha. – O pai tinha uma voz grossa. – Dez sóis nos foram dados de presente desde seu nascimento. Restam apenas oito para que eu posso ter a honra de lhe chamar de rainha. Que o tempo lhe dê sabedoria para ser boa e justa.
Assim que o pai deu às costas para ela, Aliat trocou um olhar confidente com Victor, que continha um riso. Era inconcebível tal fraternidade para mim.
– E, pela primeira década de vida da minha herdeira, a apresentarei à joia dos reis. – O homem retirou uma pulseira do pulso. – O Elo de Sucessão.
As pessoas no pátio arfaram junto com as duas crianças e a mulher.
O pai pegou o pulso de sua filha e colocou a pulseira de ouro branco com fios trançados e cheia de pingentes, oito de cores opacas e mais outros dois, um era branco e o outro bege. Parecia que ela se encaixava perfeitamente na garota.
– Os opacos são daqueles os nomes do nosso passado que já se foram, anunciando também os que virão. – Seu pai comentou e deu um suspiro penoso. – Quando chegar o dia, você colocará o seu nome ao lado do meu. Ele brilhará como as estrelas, anunciando os tempos de glória de Rheyk. – O homem gritou com uma voz firme e a multidão aplaudiu.
Sua esposa o observava com paixão, tocando em seguida seu ombro para saudarem a corte, abrindo um caminho que os dois filhos trilhavam um pouco mais atrás.
– Que futuro cruel. – Victor dramatizava, brincalhão. – Eu quero o que você tanto renega... A sucessão.
Observei atentamente e era possível ver uma máscara caindo sutilmente no garoto.
A menina fitava seu pai seriamente e depois um garoto bonito que me pareceu estranhamente familiar, lembrava levemente vovô Hugo.
– Não almejo a coroa. – A menina controlava a raiva. – Muito menos me casar com ele.
– Não fique assim, Aliat. – Victor lhe deu um empurrão com o ombro. – Temos que nos juntar a família antes que mamãe venha destruir nossas almas.
Os dois riram e se encaminharam para um púlpito onde já estava, além do casal, outras sete crianças de idades diferentes. Nove filhos?! Aliat tinha mais sete irmãos além de Victor? Não pode ser!
Um barulho me puxou para a realidade e eu acordei assustada. Era o som de balões estourando. Sete pessoas se encontravam em meu quarto.
– Parabéns! – Meus amigos gritavam. – Feliz aniversário, Enny! – Me sentei de olhos arregalados, o coração batendo reverberava em minha boca.
Olhei para o relógio na mesinha e vi que era 00h02 do dia três de abril. Praguejei.
– V-vocês são loucas? Me acordar pode ser realmente perigoso, principalmente quando estou tendo sonhos altamente importantes, tipo Victor e Aliat quando era criança.
Os sete se entreolharam sem saber o que dizer sobre minha fala.
– Hã... Bem... Depois nós conversamos sobre isso, mas agora... – Angel tentava regressar ao ânimo anterior. Ri de seu exagero. – É hora de abrir seu presente.
– Finalmente, todas com dezessete! – Luna brincou.
– Só por 10 dias. Não esqueçam! – Aline exibia um largo sorriso.
– Relaxa, Li. Vou lembrar do seu aniversário dia... Que dia mesmo?
Aline deu um murro no peito de Nathan que a abraçou e lhe beijou a bochecha.
Tia Lúcia me entregou uma caixa gigantesca, enrolada em variados papeis de presente e mensagens manuscritas de felicitações escritas por todas as garotas.
– Estamos falidas. É só um, mas é especial para você. – Tracy explicou me abraçando. – E, para constar, Nathan não quis colaborar!
– Ele nunca foi bom de presente. Nem quando éramos namorados.
No mesmo instante, Jane olhou para ele e deu um sorriso tímido. Havia acontecido algo entre eles, era notório. Dei um sorriso amarelo e pigarreei para atrair atenção. Rasguei a embalagem com muito cuidado e arquejei ao ver o belo presente. Era um vestido lilás de decote em V e busto drapeado com vários traços multicores que corriam pelo tecido.
Pulei da cama e abracei Aline, quase a estrangulando. Ela sempre desenhava vestidos diferentes, como forma de passar o tempo, e eu não demorei a reconhecer que era um de seus modelos, o meu favorito.
Comemos um bolo de chocolate e eu contei um pouco de como comemorava meus aniversários no meu mundo. Por mais que adorasse as garotas, sentia falta de Lucas e Tayane. Sempre íamos à praia e jogávamos na casa de vó Paola enquanto comíamos pizza.
Arrumei algumas camas para elas e fomos dormir novamente. Assim que amanheceu, buscamos David e fomos até um novo portão para Rheyk. Queria passar o domingo em meu mundo.
Incomodava-me ver o quão Rheyk se afundava cada vez mais na destruição. O céu estava totalmente nublado, sempre passando a impressão de ser noite. O ar pesava ainda mais e as árvores pareciam lutar para sobreviver. Precisava fazer alguma coisa.
David se aproximou de mim e, intrigado, perguntou:
– Nossa, é horrível! Foi teu tio que fez isso?
– Sim. – Olhei-o absorver essa realidade. – David, entende no que está se metendo? Isso é uma guerra. E, talvez, morrer seja o final mais generoso aqui.
– Eu sei. – Ele contraiu os lábios. – Mas não vou deixar Angel sozinha nessa.
– Então, vamos começar. Fique perto de Nathan, ele vai te tornar um excelente soldado se você estiver disposto. Não vai ser fácil, já vou avisando. Sempre deixe uma bolsa de gelo preparada em casa.
O rapaz concordou e saiu acompanhando o pessoal que ia na frente, à procura de um lugar escondido para praticarmos. Admitia que admirava a devoção de David pela namorada. Será que eu seria capaz de ser tão devota assim a Rheyk? Era isso que era ser uma rainha, certo?
Desvencilhei-me desse pensamento e fui atrás dos outros. Nathan parecia me esperar, contudo, quando cheguei perto, acelerou o passo. Sentia que ele me evitava nas últimas semanas, mais especificamente desde a festa de Tracy. Tal fato me fez criar teorias do que aconteceu lá.
Chegamos a uma clareira nova e começamos a treinar. Em algum momento, Felipe veio para ajudar a ensinar David. O namorado de Angel, após tomar um grande tombo, foi vítima de chacota do rapaz mais velho.
– Relaxa, David. – Aproximei-me do trio, rindo zombeteira. – Felipe finge que tem essa moral, mas há uns 15 dias me deixou sozinha esperando pelo treinamento. Soube que ficou com medo que eu ganhasse dele.
– Em minha defesa, Nate faltou nesse dia também. – O rapaz empurrou a quem considerava um irmão. – Acho que ele tá com medinho que você perceba que é boa demais para ele. Na luta, claro.
– Vai sonhando. Enny, sem os dons, continua apanhando para mim.
– Vai deixar ele falar assim, Enny? – Tracy, sempre atenta às conversas paralelas, brincou. – Acho que nosso Nate desafiou nossa aniversariante.
– Quer testar? – Arqueei minhas sobrancelhas, o atiçando.
– Vou tentar pegar leve, já que é seu aniversário.
Há meses não combatia diretamente contra Nathan. Certeza que não ia ser fácil. Fiquei em posição, aguardando seu primeiro movimento. Conhecia-o bem, ele preferia atacar pela sua esquerda e tinha dificuldade em desviar sucessivamente. Teria que atacar sem pausa para ter uma chance. Porém, antes que eu pudesse pensar, ele me deu um chute duplo no lado direito, acertando meu quadril e depois cabeça. Fui imediatamente ao chão.
Raspei o solo, derrubando-o de surpresa. Fui para cima dele em um combate no chão. Por ser mais pesado, Nathan logo estava sobre mim. Mas, um semblante de culpa passou pela sua face e o distraiu. Aproveitei a oportunidade para jogar meu quadril para o lado e fechar um cadeado, o qual só parei de apertar quando ele desistiu. Estendi a mão para meu adversário e, em pé, tiramos a poeira do corpo.
– Peso de consciência é algo arrebatador, não é? – Perguntei sarcasticamente.
O sangue esvaiu do rosto dele. Lutei outras vezes com cada um do grupo, perdendo apenas para Nathan na nossa segunda rodada. A solidão do início do ano me permitiu melhorar minhas habilidades de combate, mas não o suficiente para o vencer de fato. Ele também parecia ter melhorado significativamente.
Antes que o sol estivesse a pino, já estávamos na sede da Rebelião. O almoço foi asqueroso, nem se comparava à comida que tinha no palácio. Enquanto a maior parte do grupo escutava Damnora contar suas histórias, eu lembrava daquela mesa farta no palácio e dos servos famintos ao redor da mesa. Tinha que parar Victor. Fui tirada dos meus devaneio quando captei um Nathan pensativo afastado do pessoal.
– Já volto. – Disse a Tracy, desvencilhando-me de seu abraço.
Andei com os braços apertados contra o peito, estava muito receosa sobre o que poderia estar incomodando o rapaz ao ponto de o deixar longe do grupo. Pude sentir alguém olhando minhas costas enquanto me afastava. Dei uma olhada rápida para trás e vi Felipe. Aquele olhar... Por que ele me olhava assim?
Ignorei meus pensamentos e voltei a observar Nathan. Estava perto dele agora.
– Um arcux pelo seu pensamento. – Brinquei, mas ele continuou sério. – O que houve?
– Agora não, Enny. – Ele se levantou, inquieto. – Fica com a galera.
– Assim... O único que não me deu parabéns foi você, então... – Ri e fiquei de ponta dos pés com as mãos presas nas costas, diminuindo nossa diferença de estatura. – Só saio daqui quando você falar "Parabéns, minha grande amiga Enny".
Ele se virou para mim. Suas narinas infladas, sua mandíbula rígida e seus olhos cerrados diziam que estava em um meio de decepção e medo. Nathan me encarou por segundos e relaxou sua expressão. Recuei e o encarei, chateada e levemente assustada. O que tinha acontecido?
– Meninos. – Angel apareceu de supetão, me assustando. – Desculpem. Enny, o que acha de irmos tomar um banho no lago? Um dia mais leve para a aniversariante.
– Aceito... Mas sem entrar na água. – Eles me olharam curiosos. – Não sei nadar.
Ouvi risadas em uníssono. Encarei os dois seriamente até eles pararem.
– Perdão, pitoco! – Angel controlava o riso. – Vamos! Tia Lúcia pediu pra avisar que esse biquíni é presente dela. Vá colocar e nos encontre aqui.
***
Demoramos duas horas de caminhada intensa, mas chegamos. Ao ver o local, admito que fiquei deslumbrada. Era uma das poucas áreas em Rheyk que estava relativamente viva, sadia. Estávamos descendo uma serra, a uns 5 metros do lago. Ele, em si, era lodoso, mas as árvores que o circulavam eram de um verde vivo, tal qual os olhos de Nathan. Me aproximei da borda da barreira, vendo que havia água abaixo de mim.
– Hora de mergulhar! – Jane, Tracy, Luna e Aline gritaram, já me empurrando.
Antes que eu pudesse me segurar em qualquer coisa, já estava caindo. Ouvi gritos quando meu corpo afundou na água. Senti meus pés encostando no fundo e peguei impulso. Emergindo, tomei fôlego e me debati, tentando manter a cabeça sobre a água. Então, senti braços se entrelaçando ao redor do meu tronco e me puxando.
– Enny! Enny! Calma! – Nathan foi firme e nadou para trás até chegar em um ponto onde dava pé para si.
Somente então, ele segurou minhas mãos e me puxou para perto de si, me abraçando com força. Meus braços o envolveram de volta, colocando minha cabeça no encaixe do pescoço e ombro, e com os dedos fortemente agarrados à gola de sua blusa. Ele estava tentando me acalmar, acariciando meu braço e costas.
Do absoluto nada, uma luz surgiu onde estávamos, espalhando-se por todo o perímetro do lago e depois adentrando na mata próxima, expandindo-se como vento fresco do outono. A água começou a borbulhar, desintegrando as camadas de logo. Nathan quis correr para nos tirar de lá. Contudo, quando eu estava conseguindo alcançar o chão, parei e o segurei comigo.
– Escuta, Nate. A água está cantando. – Eu podia escutar várias vozes cantando na língua nativa. O vento balançava meus cabelos e fazia formigar minha pele. A batida da música sincronizando com o ritmo do meu coração, fazendo-me uma parte do todo que era aquele mundo.
– Enny, esse é o Lago Olink. É a sua anunciação! – Seus olhos estavam arregalados.
Ele obviamente não acreditava no que via. Um brilho saiu de mim em direção ao céu e, como se houvesse alguma magia oculta, era como se Rheyk tivesse recebido um sopro de vida. As nuvens aliviaram e se podia ver o sol. O ar estava menos denso. Aquela sensação energética sob o esterno me deleitava. Não pude evitar sorrir, em deleite com o que acabara de acontecer.
Via na margem do lago os outros adolescentes. Ainda segurando na mão de Nathan, saí das águas, olhando diretamente para Jane.
– Você se lembrou do que Damnora disse. – Olhei ao redor e ri, abraçando-a em seguida. – Excelente escolha. Demos um tempo de vida para Rheyk. Obrigada, Jane, de coração... Agora, vamos curtir um pouco.
As cinco meninas e os três rapazes entraram no lago. Enquanto isso, peguei uma das toalhas que Luna trouxe e enxuguei o excesso de água dos meus cabelos. Tirei as roupas molhadas e deitei sobre a rocha, que estava fria. Em alguns instantes, Aline apareceu.
– Desculpa por te jogar. - Ela fez uma careta, mas logo sorriu quando eu disse que não havia problema. – Eu estava pensando... Seu sonho com Victor, como foi?
– O aniversário de Aliat de dez anos. – Relembrava enquanto meus dedos se enroscavam no tufo de grama. – É tão estranho, Aline... Eles eram muito próximos... Victor chegou a me dizer que o amor acabou com a relação deles e Aliat vinha me ignorando... Na real? Eu pensava que talvez, só talvez, ele não fosse meramente meu tio... Mas meu tataravó, pelo momentos que ele me trata quase com carinho. Só que agora, acho que estava errada.
– Por que mudou de opinião?
– Acho que reconheci o meu tataravô. Lembra muito meu avô.
Fique repassando cada parte do sonho na minha mente e de novo até perceber. Havia um segredo entre eles. Ela não queria a coroa. Ele desejava isso mais que tudo. Era amor, mas o amor pelo poder.
– É isso! Eu sei o porquê ele a matou. Teve uma hora que ficou nítido que ela iria abdicar o trono quando crescesse para Victor assumir. Aliat não queria ser uma rainha. Mas... E se, quando ela se casou, acabou fazendo questão pelo trono?
– Então, quando ela descumpriu o acordo, ele, com raiva, a matou. – Aline concluiu, espantada.
– Não só a ela. – Constatei, finalmente juntando todas as minhas visões e sonhos. – Aliat sempre me mostrou que perdeu alguém que amava muito. Presumi que era meu tataravó. Só que nesse último sonho... Eles tinham sete outros irmãos. Victor não tem aliados e ninguém da linha de sucessão jamais brigou pelo trono... Aline, eu acho que Victor matou toda sua família.
Encaramo-nos e, a fim de evitar gerar tensão nos demais, decidimos só conversar isso com eles depois. Em pouco tempo, Felipe chamou para irmos embora com uma excelente justificativa: se Rheyk ganhou fôlego com minha anunciação, Victor, com certeza, sabia onde estávamos. E, de fato, quando distantes, pudemos ver tropas chegando ao Lago Olink.
Eu estava no final da fila indiana, protegendo a retaguarda junto a Tracy, com quem fofocava acidamente sobre o colégio. Percebemos que Aline e Nathan estavam vindo em nossa direção. Tentei verificar se havia alguma mente se aproximando de nós e, consequentemente, se essa movimentação dos meus amigos era uma preparação para um ataque. Não havia ninguém.
– Tracy, consegue ficar com Aline na retaguarda? Preciso conversar com Enny em particular. – Ela concordou ao pedido de Nathan com um grande sorriso. – Protegida, me siga. Quero te mostrar uma coisa.
Sem dizer mais nenhuma palavra, Nathan tomou uma entrada à esquerda na mata e abriu caminho entre as árvores. Sem sequer hesitar, o segui. Andamos dez minutos na mata e eu simplesmente já não sabia como regressar ao grupo. Aquela área era nova para mim.
– Para onde estamos indo?
– Um lugar que eu ia com meu pai quando pequeno. – Nathan parou para me dar um sorriso e logo encarou o chão. – Se puder não contar, agradeço. Nunca trouxe ninguém... É pessoal.
– Devo me sentir especial, então?
– Ainda tem dúvida? – Mesmo sem me olhar, senti a profundidade em seu timbre.
Calei-me, constrangida com meu coração descompassado. Nathan parecia me querer isolada. Talvez desejasse conversar comigo, explicar seu comportamento, finalmente contar tudo que queria dizer há tempos. Ele pegou um livitar que parecia estar esperando por nós e me subiu no animal, montando atrás de mim. Recostei em seu peito e senti seu queixo se mexer, fazendo carinho em minha têmpora.
Fomos sobre o animal no meio da mata por uns vinte minutos até que Nate pediu para continuarmos a pé. Caminhamos por alguns minutos e para passar o tempo – e propositalmente o irritar – comecei a cantar dando o meu pior.
– Dá para parar? – Ele falou tapando os ouvidos depois de uma nota que foi muito aguda.
– Claro. – Eu sorri e o ultrapassei. – Estava só lhe irritando, meu protetor. Quando nós vamo...
Dei outro passo e caí dentro de uma cratera. Desci rolando e rolando até chegar ao fundo, que devia ser a dois metros e meio de profundidade. Assim que tive certeza que tinha parado, eu me levantei e chequei o meu corpo, para ver se me machucara. Os estragos eram: a alça da blusa rasgada, mão arranhada e toda suja de terra negra.
Nathan ria de cima, de forma zombeteira. O xinguei em uma falsa raiva. Tentei procurar um caminho para subir, mas não via uma saída.
Levantei o rosto e vi Nathan descer pela parede da cratera rapidamente, deslizando junto à terra, que descia com seu peso. Fiquei de boca aberta com sua destreza. Quando chegou ao meu nível, sacudiu a terra e ergueu as sobrancelhas com certa soberba. Baixei a cabeça contendo um sorriso que tendia ao flerte.
Assustei-me ao notar que ele se aproximara de mim. Havia um resquício de sorriso em sua face. Mas o rapaz não olhava para meus olhos, na verdade suas mãos pegaram a alça rasgada de minha blusa e, com agilidade, deram um firme nó. Eu o encarava, mirando mais do que devia os seus lábios. Quando a blusa estava segura, ele, finalmente, voltou seus olhos para os meus, pegando-me desprevenida. Mordi meu lábio inferior e virei o rosto no sentido oposto ao dele.
– Vamos. O que eu quero te mostrar está do outro lado da cratera. – Ele me deu a mão e puxou. – Está sentindo algo diferente?
De fato, havia um vento com um cheiro salgado. A escalada demorou cinco minutos e eu arfei ao ver o outro lado. Era o mar!
– Eu e meu pai vínhamos aqui pescar toda semana, segundo mamãe. – Ele comentou rindo. – Então? O que achou? Não é na sua cidade, mas é uma praia.
Simplesmente não conseguia responder. Ele lembrou do que eu disse mais cedo sobre meus amigos. Coloquei a mão sobre os lábios e notei que meus olhos estavam marejados. Tirei meus sapatos com meus próprios pés, me deliciando com o contato com a areia enquanto, com os olhos fechados, sentia a brisa marítima acariciar minha face. Os dedos de Nathan passaram pelas minhas bochechas, enxugando algumas lágrimas, e me levando ao encarar sua face.
– Muito obrigada. O melhor presente do mundo. Uma parte de casa.
– Sabe... Tanta coisa aconteceu desde sua chegada. Achei que gostaria de se reconectar um pouco com aquela garota fantástica que chegou aqui. – Ele sorriu. – O que acha de entrar no mar? Relaxa, ficamos no raso.
Concordei, estranhamente. Não deixava ninguém se aproximar de mim quando adentrava nas águas. Entrava em pânico. Mas só hoje, essa era a segunda vez que ficava com Nathan e não podia me sentir mais segura.
Ficamos conversando sobre a vida de cada um. Eu falava sobre meus amigos no meu mundo e comparava com o pessoal desse universo. Nathan falava bastante do pai, das vagas lembranças que tinha e de como imaginava que ele seria, se não tivesse sido capturado. Voltamos para areia e nos sentamos para nos secarmos e irmos.
– Você me deu o melhor presente de todos que eu poderia ganhar. – Disse com um sorriso torto.
Nate segurou minhas mãos e, repentinamente, mudou a postura para uma séria com ombros tensos e olhar receoso.
– Enny Scott Peres, eu demorei muito tempo, mas achei as palavras para te contar tudo que preciso, mas por favor, escute em silêncio e... E, se você não quiser me ver mais depois, só imploro que não me exclua de sua vida.
– Nate, você está me assustando.
– Porque você deveria ter medo de quem eu fui... Sou... Bem, sabe, de uma fração que habita em mim. – Ele tremia e sua respiração era encurtada e rápida. – No dia que você e Jane foram atacadas, você me disse que eu era um bom homem quando falou de Malok.
Nathan se calou, seus olhos finalmente me encarando. E então, entendi o porquê da pausa, mas precisava perguntar porque era cruel acreditar em minha suposição.
– Como sabe o nome dele?
– Porque fui eu quem o torturou. Não foi meu primeiro, nem o último.
Ele desatou a contar os eventos que precederam a tortura de Malok e o Círculo Azul, também mencionando seu passado quando entrou na rebelião. Um menino de onze anos treinado pelo General Erin para torturar e matar. No sadismo, o garoto achou a vazão para o ódio contra Thomas, sempre finalizando seus trabalhos com uma decapitação, escarnificação da Flor da Rebelião na face da vítima e o envio para o rastreador de Victor no castelo em Rheyk.
"Queria que ele soubesse que um dia eu vingaria a morte de minha mãe."
– Tia Lúcia lutou muito contra meus impulsos violentos, mas foi pelas meninas que eu decidi começar a mudar. Abrandei meus métodos, mas o demônio do meu passado ainda cantava em meus ouvidos. – Era notório o nojo em seu semblante. – Talvez seja por causa de quem você é, a Senhora da Luz, mas, desde que te conheci, foi como se essas vozes fossem pouco a pouco silenciando. Só que esse lado ainda está aqui em mim.
– Nathan... E-eu não sei o que...
– Calma, tem mais. – Ele riu sombriamente, constrangido. – Eu ia fugir com você quando Li veio com aquele plano estúpido. Por isso mandei que preparasse a mochila. Por isso não te beijei aquele dia no restaurante, só queria te beijar depois que falasse tudo. Sabe... Ouvi quando você foi ao meu quarto me contar que era a Senhora da Luz, eu sabia que iria te proteger.
"Bem como eu me afastei de você quando voltou do castelo de Victor porque fiz um acordo com tia Lúcia, minha distância pela sua permanência na casa dela. Ela temeu pela minha vida e a de Li porque, quando o assunto é você, eu sou antes de tudo, a porra de um adolescente apaixonado. Acima até do que minha vida, eu só desejo que esteja bem e segura, Enny."
Eu estava literalmente de queixo caído com todas aquelas informações, em estado catatônico.
– É-é muito para absorver assim, Nathan. – Minha respiração era forçadamente lenta para tentar ter calma à medida que meu cérebro processava tudo que ouvi. – Algo a mais?
Nathan alisou sua testa, notoriamente encabulado.
– Na festa de Tracy... Jane... Ela tentou me beijou quando vocês foram dormir. Não rolou nada, a dispensei. Só que, sabe, já que estou sendo honesto sobre tudo, não ia esconder isso.
Tudo aquilo era demais para mim. Olhá-lo agora era como ver a imagem das minhas expectativas quebradas. Me era indigesta a ideia que meu Nate podia ser, ao mesmo tempo, tão protetor quanto monstruoso. E não sabia quanto tempo levaria para decidir se acolheria ele em sua totalidade ou se o iria querer longe de mim.
Sem conseguir pensa direito com tantas informações novas, me coloquei de pé e comecei a partir. Todavia, senti a mão dele se fechar ao redor do meu pulso e me puxar para si. Seus olhos devoravam cada traço meu com zelo e, por fim, ele me abraçou.
– Por que não me contou do acordo com tia Lúcia? – O empurrei suavemente. Não conseguia manter esse contato agora. – Ou que ia tentar me tirar daquela armadilha? Por que deixou que eu te odiasse?
– Porque você estava fazendo as pazes com todas elas. Preferiria que ficasse com raiva de mim do que te ver triste e isolada como estava. Não te privaria de uma família.
Nathan, parecendo derrotado, enfiou suas mãos nos bolsos, contendo o impulso de me tocar novamente.
– Eu não sou o homem que você merece. Mas, te prometo que passarei o resto dos meus dias tentando ser. Não precisa decidir agora se me perdoa por tudo que ouviu hoje, só pensa com carinho e, te imploro, não despreze o que sinto por ti.
Mudamente assenti. Ficamos ali, nos encarando por alguns momentos até que o choro se desfez e voltamos para a Rebelião em silêncio. Os olhares das meninas foram de curiosidade ao ver o clima e a minha blusa rasgada. Desconversei, apenas avisando que não tínhamos encontrado inimigos, fora apenas uma queda. Arrumamos nossas coisas e voltamos para Terra.
Nesse trajeto, Aline contou sobre nossa conversa de mais cedo para todos. David, por vezes, interrompia com suas dúvidas, sendo imediatamente respondido por Jane. No fim, um temor se instaurou. Victor matou toda sua família sem dó. Por que ele ainda hesitava em fazer o mesmo comigo? Ou com meus amigos?
Pouco após o pôr-do-sol, estávamos de volta Terra, celebrando em uma mesa no restaurante de de tia Lúcia. Compareceram todos que foram para o Lago Olink, mais Jack, Carol e Erick. Esse último veio até mim e entregou uma caixinha de presente. Dentro havia um par de brincos. Eram lindas argolas prateadas.
– Fui bem babaca com toda aquela história de Brad, não é? Acha que um dia conseguiremos voltar a amizade? – Erick perguntou timidamente.
– Como eu poderia ficar com raiva do meu parceiro do caos?
Abracei o rapaz ruivo e cutuquei suas costelas, o fazendo se contorcer de cócegas.
– Você não vale nada, Catástrofe. – Ele segurou minhas mãos. – Bom ter você de volta.
– Juntos para o caos. – Dei-lhe uma piscadela.
O rapaz se afastou, tomando seu lugar na mesa ao lado de Jack e Carol. Joshua entrou no restaurante por fim, bagunçando meu cabelo.
– Olha se não é a aniversariante do dia! – O garoto estava empolgado. – Não é muito, mas achei a sua cara.
Joshua me entregou um chaveiro metálico de um violino junto a um piano. Era delicado e lindo.
– Enny, espero um dia tocar contigo. Debussy?
– Com certeza.
Ele, então, me deu um copo de refresco e brindamos. Mesmo sem álcool, a bebida pareceu doer ao descer pela minha garganta.
– Aproveite os dezessete, minha amiga. – Ele deu uma piscadela e se juntou a Luna.
Naquela mesa do restaurante reservada para nós, rimos e conversamos por horas a fio. Por fim, tia Lúcia apareceu com um bolo para cantarmos parabéns.
Eu só conseguia olhar grata para aquela mesa cheia de gente que cativei na minha jornada aqui. Tinha uma segunda família em Rheyk e, se eu não voltasse, sabia que tudo acabaria bem, desde que vencesse Victor e libertasse meu mundo.
***
Comentário da autora: a cena da praia, eu só consigo lembrar da música abaixo e, na minha cabeça, Nathan tava com ela tocando no juízo durante todo o papo.
https://youtu.be/Y73opo2RAPE
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