Capítulo 23 - A remediação
Depois do café, Victor me apresentou mais partes do castelo, quase nenhuma tinha semelhança estética com meus sonhos. Perguntei onde era o quarto de Aliat, mas ele só deu um sorriso amarelo e me mostrou o próximo cômodo. Isso deixava claro que minha suspeita não estava errada. Era o cômodo ao lado ao meu.
Antes do almoço, mandou que Thomas me levasse até o meu quarto para que eu estivesse apropriada para o passeio. Apesar de todo meu decoro e simpatia, Victor não confiava em mim.
– Vai ser enquanto eu estiver no Salão Omiso, não é? – Murmurei e o vi assentir.
– Sim, mas vá com ele. Victor fica mais calmo lá. Talvez você consiga o fazer falar algo importante. – O rastreador abriu a porta para mim. – Sobre seus amigos, qual é sua decisão?
– Não são meus amigos. – Respondi secamente. – Se eu fingir que não importo, há chances de Victor os deixar ir?
Vi a mandíbula de Thomas travar. Uma fúria preocupada tomava as sombras de seu rosto. A pele deformada pela marca de Victor se enrugava, transfigurando o semblante dele em algo mais animalesco.
– Não seja burra, pequena. O que motiva o rei é sua própria loucura. Não há estabilidade, muito menos previsibilidade. Quer seus amigos seguros? Tire-os daqui.
– Por que eu deveria confiar em você? – Questionei, entrando no meu quarto. – Pode ser muito bem uma jogada de Victor para testar minha lealdade.
A postura rígida do homem parecia proposital para controlar as suas palavras de tomarem forma. Se minha hipótese estivesse certa, quais as chances dele ter consciência disso? Quais as chances de Victor saber e estar usando a seu favor?
– A escolha é sua. Só saiba que às três da tarde o sol se põe em Rheyk.
Dito isso, Thomas fechou a porta. Às três? O que ele quis dizer com isso?
Fui levada posteriormente para almoçar com Victor. Novamente, uma mesa farta e servos miseráveis ao nosso redor. Ele parecia se satisfazer com os olhares famintos depositados sobre a mesa. Uma implícita necessidade de mostrar o controle que ele tinha sobre a vida dos outros. O homem conversava empolgado sobre
Quando se satisfez, me chamou para o acompanhar. Subimos algumas escadarias chegando até o quinto andar daquele castelo. Enfim, paramos em frente a uma porta dupla com o enorme símbolo de uma rosa entalhada na madeira.
– Essa é minha verdadeira casa. – Ele abriu a porta após me ofertar um sorriso acolhedor.
Fiquei pasma ao ver aquele esplendor. Victor me empurrou um pouco para podermos entrar porque eu tinha paralisado em choque. Nunca pensei que poderia ver algo tão belo em Rheyk. Abri os meus braços e deixei que a luz do sol esquentasse minha pele.
Um vento mais forte levantou os meus cabelos e colocou o cheiro das rosas em mim. Ri da simples beleza do local enquanto girava com o vento feito uma tonta. Era como se, por uma fração de segunda, a guerra, as traições e toda a dor nunca tivesse existido. Paz. Era isso que aquele lugar transmitia junto com o frescor de esperança. Se havia um local assim em Rheyk, seria muito eu tentar cogitar um dia todo o reino ser assim?
Abri meus olhos e contemplei as árvores que se estendiam até os céus com galhos e cipós envolvendo outras árvores menores. A cachoeira, com suas águas que dançavam entre as pedras e elas mesmas. Havia rosas por todos os cantos, cada uma com uma cor e uma beleza diferente. O chão era tão verde e vivo, com formigas e outros animais que não reconheci. Alguns paralelepípedos pareciam criar trilhas pelo gigantesco Salão. Pequenos besouros e aves dançavam no ar, esbanjando graça. Era assim que eu queria que fosse Rheyk.
– Eu e Aliat plantamos cada árvore. – Me virei para ver Victor me admirar com seu olhar distante.
– Você fala como se fossem muito próximos. O que aconteceu para isso ter mudado? – Perguntei calmamente. Para tirar algo dele, teria que ser gentil. Não podia despertar sua face maníaca.
– O amor nos separou. – Respondeu com um esforço gigantesco.
– Eu não compreendo...
– Minha irmã era a pessoa que eu mais amava no mundo... É mais fácil sermos magoados assim. – Seus olhos marejaram, encarando um banco metálico ao qual ele fez questão de adquirir distância. – Quase como seus amigos fizeram contigo.
Eu e Victor nos sentamos ao pé de uma najaleira – o pé de najalar – e ficamos contando piadas e rindo. Victor se mostrava mais humano do que eu jamais vira. Ria genuinamente de como ele falava sofisticado enquanto tentava ser engraçado, relembrando seus insucessos durante o aprendizado com os dons. O pior é que em vários momentos, eu conseguia me correlacionar com ele e isso me assustava.
Não sei bem como, mas me vi envolvida naquela conversa em tal grau que me notei perdendo as muralhas contra ele. Porém, mesmo tão envolta na órbita de Victor, ainda reparei algo: ele jamais encarava diretamente meus olhos. Todo o resto, o déspota parecia contemplar como a um retrato antigo. Mas nunca meus olhos.
Vendo o quanto ele próprio estava relaxado, vi uma oportunidade de ajudar os meus amig... Antigos amigos.
– Victor. Posso fazer uma pergunta? – Disse enquanto girava uma flor em meus dedos. – Por que você não os deixa ir hoje?
– Eles tentaram jogar família contra família, merecem a pena.
– Victor. – O repreendi em um tom agradável. – Eles são o seu povo. Você tem que os tratar com o devido respeito, ou eles se revoltam. Por isso tem tantos focos rebeldes.
Seu olhar parecia culpado. Pus-me em pé, precisava achar alguma forma de sair daqui sem levantar suspeitas. Tirei meu sapato e, pisando na grama, andei até um monumento de mármore perto do banco, no encontro de quatro caminhos de paralelepípedos. Vi que o déspota me seguia, os olhos atentos ao menor movimento.
– O que é isso? – A ponta dos meus dedos acariciavam a sombra na superfície do objeto.
– Um relógio solar. – Ele me deu uma breve introdução de como funcionava o objeto. – Agora são duas. Como o tempo passa rápido quando nos divertimos, Hecozonha.
O encarei, ofertando um sorriso amarelo com a intensidade de sua voz. Quase como se a loucura margeasse esse momento, preparada para atacar. Quando o homem tentou tocar meu ombro, afastei-me, circulando o relógio e tomando um dos caminhos. Decidi pular de paralelepípedo em paralelepípedo, fingindo uma brincadeira para criar distância dele. Se um rompante de ira estivesse chegando, queria estar longe de Victor.
A voz de Thomas veio à memória. Três horas o sol se punha. Porém, quando olhei pro céu, ainda estava bastante claro. Interpretar... Eu tinha que interpretar o que ele queria dizer. No anoitecer tudo fica escuro e "escuro" é uma palavra derivada da língua Rheykfordiana – ecores – que significa ausência de cores, fim.
Às três horas era o fim do meu... do grupo! Eu tinha sido uma idiota em os entregar, fiz por uma vingança, um coração partido. Não podia deixar que eles fossem executados. Não deixaria.
Engolindo em seco, tomei minha decisão de agir. Se fosse um plano para testar minha lealdade, eu falharia porque me dilacerava a mera ideia de ignorar a possível morte deles.Eu só tinha uma hora para despistar Victor, fugir de Thomas, resgatar o sexteto, tirá-los do castelo e fazer isso tudo sem que alguém perceba ou suspeite do rastreador.
– Victor. – Sufoquei por um segundo. – Preciso ir para meu quarto.
– O que você vai fazer no seu quarto? – Ele levantou uma sobrancelha, interrogativo. Aparentemente, nossas horas conversando aqui o fizeram crer mais em mim.
– Preciso dormir. Estranhei as acomodações e virei já duas noites em claro. – Ri nervosa. – Estou morta de cansada. Podemos conversar mais no jantar? Talvez você possa ler algo para mim.
– Claro, Hecozonha. Tudo para que se sinta em casa. – Sua piscadela lenta tentava transmitir afeto quase paternal. – Deixe-me a levar para seu quarto. Ou prefere algum guarda?
– Um guarda. Você já fez tanto por mim, meu tio. – O grosso vestido escondia meu peito que tremia ao tentar controlar a respiração.
Uma mulher que parecia ser um meio caminho para se tornar uma transformação similar a Petrik me guiava para o meu quarto. Quando finalmente reconheci o corredor que eu estava, decidir que era hora de agir. Criei um escudo em minhas mãos e acertei a cabeça da marcada com tanta força que ela caiu desmaiada imediatamente. Usei o dom de levitação e a coloquei dentro de um quarto, pegando a chave e a trancando lá.
Lembrando-me dos meus sonhos, comecei a correr pelos corredores, sabendo bem o trajeto a ser feito. Os sonhos repetitivos não eram tão inúteis agora, não é?
Ao chegar na entrada do cômodo, notei que havia vigilância. Usei a força da minha mente para deixar os guardas inconscientes e peguei as chaves de seu cinto. Minha cabeça latejou mais do que o normal, mas dei pouca importância para a dor. Salvar aqueles traidores era mais importante. Desci a escadaria até alcançar a imensa gaiola onde estavam. Analisei ao redor, não havia ninguém. Corri até onde estava o grupo
– Voltei. – Sussurrei com um sorriso aliviado ao os ver intactos.
– Enny! – Luna quase pulou de felicidade. Meu sorriso se iluminou ainda mais.
– Cuidado. Ela não e quem nós pensávamos. Nem de longe é quem eu achei que ela era.– Nathan falou enquanto eu procurava a chave da cela. – Valeu à pena nos trair, Enny?
Os rostos das garotas, que antes estavam animados, ficaram preocupados e com raiva, exceto o de Tracy, que permaneceu com uma face de arrependimento.
– Vocês têm toda a razão de estarem com raiva e não confiarem em mim. Só que, agora, precisam me ouvir. – Falei apressada. – Serão mortos se não formos agora.
– Ouvir você? – Aline destilou veneno. – Ah! Você...
– Cale a boca, Li. – Jane sibilou. – Enny é nossa melhor chance de sair daqui. E não é como se não fôssemos fazer o mesmo com ela antes...
– Por favor. Victor vai matar vocês. Preciso que façam o que eu digo. – Estava desesperada. Encarei Angel, ela que daria a palavra final. – Podem fingir que eu não existo depois. Só sobrevivam.
– O que temos a perder? Se não seguirmos você, vamos pra forca. – Angel falou depois de me analisar. – Enny, a cela está encantada, não conseguimos usar nossos poderes. Consegue abrir pra nós?
Aline não tinha mais o que discutir. Angel decidiu e todos obedeceriam. Eu tinha visto bem esse efeito enquanto eles planejavam me mandar para o abate. Testei as chaves que roubei até que uma finalmente abriu a fechadura. Foi um voto de confiança, pois sabia que as meninas poderiam me atacar depois disso. Angel foi a primeira a sair, estendendo-me a mão em um sinal de paz.
– Plano errado. Motivo certo. – Ela me disse antes de apontar para a escadaria com a cabeça, um sinal para eu liderar a fuga. – Imagino que o seu também foi nessa linha?
– Espero que esse plano de fuga dê mais certo do que o meu de acabar essa guerra. – Ri, ofegante.
Guiei-os para fora do castelo da mesma forma que ontem fui levada à sala dos guardas. Vi Thomas em um atalho, mas não confiava nele o suficiente para arriscar a vida dos meus antigos amigos. Mais dois corredores e alcançaríamos a área externa do palácio. Faltava tão pouco. Todavia, quando entrei no corredor que dava para o pátio externo, ouvi uma risada triste, que foi sucedida de uma fala:
– Ora. Minha única aliada é a minha maior inimiga. – Victor apareceu no fim do corredor. Pelo seu olhar, era possível ver sua ira frente à traição. – Achei que nosso elo era especial, Hecozonha.
– Como você soube? – Posicionei-me na frente do sexteto. Enquanto pudesse evitar, Victor não encostaria um dedo neles.
–Thomas me alertou sobre sua traição. – O tirano riu quando prendi minha respiração. Que bastardo!
O rastreador surgiu com um sorriso patético na minha frente. A raiva que eu senti fez com que fogo saísse de minhas mãos. Lancei a chama no homem que desviou com velocidade. Victor lançou um raio que me jogou contra a parede, gritando de dor. Senti o gosto de sangue na boca, meu lábio inferior estava cortado, deixando sangue escorrer pelo meu queixo. No mesmo instante, um exército mais Petrik apareceram no mesmo corredor, impedindo que meus amigos fugissem. Eles colocaram algemas no grupo.
Criei fogo em meus punhos e, no mesmo instante, Victor puxou Aline, criando raios vermelhos que corriam entre seus dedos.
– Um passo a mais e ela morre! – Lá estava toda a sua loucura exaltada. – Renda-se.
Encarando os olhos culpados de Aline, abandonei meus poderes e estendi as mãos para Thomas colocar as algemas. Porém o rastreador aproveitou o momento e enfiou um papel em meu punho cerrado. Aproveitei sua proximidade e cuspi na sua face. Assim que ele saiu da minha frente, encarei o sexteto com um honesto pedido de desculpa em meu semblante. Meu corpo fragilizou com o peso do metal nos pulsos, como se ele tirasse um pedaço da minha vida.
– Levem os rebeldes para as suas celas e a garota... Posso não lhe matar, mas farei você pagar essa traição por toda sua vida. – Victor falou com ira.
– Deixei de ser família agora, titio? – Gritei com acidez. Victor me ergueu a um palmo de distância do chão, vindo a passos violentos em minha direção.
– Você é mero o fruto da traição de Aliat. – Ele apertou minhas bochechas com força e falou rispidamente por entre os dentes trincados, encarando fixamente meus olhos com seu olhar fulminante.
Seus olhos cubavam cada centímetro do meu rosto, pensativo. A ira perdendo domínio e coexistindo com um espírito fúnebre.
– Poderíamos ter sido grandes. Muito grandes. Contudo, vai ter o mesmo fim que ela. – Seus olhos estavam marejados, transpassados de desapontamento. – Repetindo os mesmos erros.
Nunca senti tanta repulsa por Victor quanto agora. Ele se curvou e beijou a minha bochecha com pesar, uma eterna despedida. Gritei e me debati, só parando quando Petrik me tomou em sua pata. Vi, em desespero, o sexteto sendo levado vendado embora por dez guardas.
Essa cena pareceu quebrar qualquer raiva que eu poderia ter deles. Estava os perdendo mais uma vez. E, agora, era porque não fui forte o suficiente. Regressei a gritar e contorcer, tentando inutilmente encontrar uma forma de me libertar.
– Adeus, Aliat. – Victor se afastou, indo finalmente embora. – Petrik, leve-a para meus aposentos.
Só Petrik me levava para minha morte certa, então eu decidi atacar. Não padeceria sem lutar. Encontrei o abrigo da minha energia debaixo do esterno e forcei a magia a rasgar minhas veias, tomando forma em mim, mesmo que sentisse as algemas me queimarem a pele no processo.
Usei meu controle sobre os sentidos para o deixar cego. Mesmo que por um segundo, foi o suficiente para eu me soltar de suas garras e me virar para o encarar, ainda algemada. O monstro balançava seus braços, tentando me localizar. Não consegui sustentar a magia por causa do efeito das algemas e os seus sentidos regressaram a ele. Assim que seus olhos repousaram em mim, a besta disse:
– Sabe... Faça isso mesmo. Lute pela sua vida. Eu te farei ver seus amiguinhos morrendo pelas minhas garras. Um por um, sua vadia!
Ele veio para cima de mim como uma cobra e eu desviei do seu ataque. Na segunda tentativa, o monstro teve sucesso e e jogou meu corpo contra a parede. Meu corpo latejou com o impacto. Eu precisava usar magia ou morreria nas mãos dele.
Com uma força que não conhecia em mim, forcei novamente minha magia a ganhar vez, as veias energéticas marcando de roxo minha pele. Dei um salto, criei um escudo e o expandi o suficiente para imprensar Petrik contra à parede até quebrar as costelas. Uns segundos depois, ele estava inconsciente. Uma coisa era clara: aquela besta estava mais fraca do que em Armant. Livre do meu carrasco e exausta, abri o bilhete que estava afundado em meu pulso.
"Seus amigos estarão seguros no seu quarto. Hora de voltar para casa."
Procurei pela mente de Angel e a encontrei no meu quarto. Suspirei aliviada. Corri o mais veloz que pude e não me preocupei em ser vista, todos do castelo deviam estar se preocupando com a preparação de minha execução. Abri a porta do meu quarto e lá estavam eles, vendados e amarrados no canto do cômodo. O rastreador mantinha uma distância deles, olhando para porta de forma preocupada.
– Saia de perto deles, senão... – Ameacei Thomas.
– Estou lhe ajudando. – Ele chegou perto de mim, mas eu usei a corrente nos meus pulsos para tentar o enforcar. – Não tinha como você sair desse castelo pela porta da frente, garota tola. Salvei a vida de vocês!
Não desfiz minha pose armada, mas admitia que o rastreador tinha razão. Olhei para o grupo de adolescentes vendados – apenas Angel sem –, eles prestavam atenção na conversa e pareciam desorientados. Thomas os salvou.
Não existe o bem sem o mal. Queria proteger Rheyk tanto quanto nós, do seu jeito. Se minha última aliança me ensinou algo foi que tomamos, por vezes, caminhos perversos para atingirmos objetivos benéficos. E, na minha frente, podia ver um grande exemplo disso. Larguei o homem que não tinha tentado resistir ao meu ataque.
– O quarto de Aliat está detrás desta parede. Você encontrará uma portinha. Entre nela e depois siga o túnel. Sairão na entrada de um portão para Terra.
– Como você sabe que este é o quarto... – Parei ao ver ele arrancando o papel de parede com suas próprias mãos. Notei posteriormente que era uma porta secreta.
Thomas tirou os panos dos olhos dos meus amigos e a corrente que prendiam os seus pulsos. Com certa relutância, eu o deixei tirar a minha.
– Lutou contra Petrik algemada? Conseguiu usar seus dons mesmo com isso? – Apenas assenti as suas perguntas. Sua expressão era de choque. – Você é excepcional, pequena.
Os demais encaravam nossa conversa sem saber como reagir. Nathan e Aline queriam atacar, mas Angel mantinha uma mão erguida, mandando eles se conterem. Olhei para Tracy e Luna, sinalizando para elas serem as primeiras. Em seguida entrou Aline, Jane, Nathan e Angel.
– Essa fuga é um risco para você? Victor pode te incriminar? – Perguntei a Thomas na soleira da entrada.
– Eu sei me virar, pequena. – Seu sorriso foi carregado de simpatia. – Entre. Não há tempo a perder.
O quarto não era limpo há muitos anos e o cheiro de mofo era horrível, pensando minha garganta. Nathan, Angel e Aline procuravam a passagem; Luna e Jane apreciavam as joias remanescentes; eu e Tracy admirávamos o quadro da jovem Aliat, o seu vestido branco era coberto por um lenço vermelho e dourado. Nunca a tinha visto fora dos meus sonhos ou visões. Era tão bom ter alguma evidência de sua existência.
– A genética dos Garfi é bem forte. Você, Aliat, Victor. Todos a mesma cara. – Tracy comentou com uma voz tensa.
– Achamos! – Aline e Nathan falaram mutuamente, suprimindo um grito aliviado.
Abrimos a portinha e vimos que desembocava em um túnel escuro. O rapaz pegou um castiçal com velas, tomou um isqueiro de seu bolso e trouxe luz. Um trajeto sinuoso surgiu diante dos nossos olhos. Nathan e Jane foram os primeiros a entrar. Aline, Luna e Tracy logo em seguida. Eu e Angel ficamos por último, iríamos dar cobertura, caso alguém nos encontrassem.
No último momento antes de entrar na escuridão, olhei por sobre o ombro, encarando a passagem que Thomas tinha fechado. Victor não compraria a ideia que o seu rastreador não sabia por onde tínhamos fugido. Talvez se vingasse naquele que estava me ajudando a escapar. E, agravando tudo, talvez ele descobrisse essa rota antes de nos libertarmos. Não poderia deixar isso acontecer, tinha que criar falso rastro para o ludibriar e, além de tudo, forjar um plano para garantir que eu sairia daqui viva e bem.
Então, institivamente, peguei Angel pelo pulso quando ela adentrou no túnel e usei meu dom para fechar aquela passagem quase que totalmente, retendo um espaço para que ela apenas mantivesse sua mão em contrato com a minha. Quando a líder protestou, tentando chamar a atenção dos outros que já mergulhavam na escuridão, selei meus lábios com os dedos, pedindo sigilo dos próximos atos. Rapidamente tirei as minhas duas joias e a entreguei.
– Coloque-as e não deixe ninguém tirar de você. – Forcei um sorriso em meus lábios, mas enraivecida pelo plano idiota que eu estava me colocando. Principalmente ao depositar minha confiança em praticamente todas as pessoas que menos eram dignas de tal. – Fujam, vou dar cobertura.
Sem dizer qualquer outra palavra, me virei para ir embora, sentindo o peso do olhar de Angel nas minhas costas. Tirar aquelas duas joias foi como arrancar um pedaço do meu fôlego, da minha própria força. Nunca tirei o anel desde que cheguei em Rheyk e ver que não havia magia em mim sem ele, fez-me ter uma certeza: eu podia ter absorvido o cargo de Senhora da Luz, mas toda a minha força provinha de Aliat. Que belo momento para descobrir isso, hein?
"Parabéns, idiota, vai morrer! Tomou uma ação estúpida e precipitada, sabendo das consequências letais. Teria que brincar com o blefe, então." Recriminei-me mentalmente antes de sair do quarto de Aliat.
Abri a porta e encontrei um Thomas que andava em círculos, parecendo tentar pensar em uma solução para um dos problemas que me fez voltar. Assim que depositou seus olhos em mim, sua feição assumiu um misto de incredulidade e fúria.
– Que cacete de desejo de morte é esse?! Ou você é burra mesmo? – As mãos dele balançavam de forma desengonçada no ar, talvez tentando pescar a calma que lhe esvaiu.
Ignorei sua pergunta e continuei rasgando o resto de papel de parede, pegando algumas quinquilharias e atirando em direções avulsas de maneira frenética. Tinha que dar a impressão que tive um surto nervoso e destruí o quarto para não chamar atenção para a passagem para o quarto ao lado. Tinha que esconder o conhecimento do túnel secreto.
Durante o processo de destruição, Thomas me agarrou pelos braços com violência e exigiu respostas, chacoalhando-me como se meu peso não fosse nada.
– Eu vi sua cara há dois minutos. Você não tem desculpa para dar a Victor de como perdeu o sexteto vendado e algemado. Além disso, se ele souber desse túnel antes do tempo, não duvido mandar seguir o pessoal. E todo esse esforço vai para o lixo, junto com nós dois na prisão.
Ele me soltou, adquirindo uma distância razoável, aparentemente frustrado ao ser transparente com seu aflito. Nesse momento de hesitação, vi a chance de aplicar meu primeiro blefe.
– Nós dois vamos salvar seu pescoço e os deles. Então é bom você me ajudar porque se eles e eu cairmos, você e o Encontro dos Soldados cairão juntos.
A mandíbula do homem travou enquanto seu olhar sondava minha alma, com certeza ponderando se devia ter me ajudado a priori. Percebendo que não tínhamos muito tempo, Thomas se conformou com o peso de suas escolhas e empurrou o guarda-roupa em direção à parede, ocultando por definitivo qualquer resquício da entrada para o quarto de Aliat.
– Túnel secreto, escondido. – Bati as palmas das mãos, limpando a poeira, e encarei o homem de cima a baixo. – Ninguém vai acreditar que você nos enfrentou e saiu ileso, Thomas.
Coçando o pescoço, o homem vasculhou com os olhos ágeis o quarto e pegou um pedaço de madeira da cadeira, entregando-me o objeto e me orientando onde eu deveria bater para ferir sem o ter risco de o desacordar, afinal precisava dele para ainda tentar fugir. Cinco golpes foram infligidos nele e um bofete bem generoso foi dado em minha face. Pude sentir o inchaço tomando a minha maça do rosto enquanto o formigar se espalhava, mas não dei tanto importância. Afinal, estava tomada pela adrenalina de uma forma que tal dor era praticamente insignificante.
– Você não vai gostar, pequena. A única saída pouco vigiada é a de dejetos na ala oeste. – Thomas riu ao ver a carranca de nojo e deu uma tapinha em minhas costas. – Anime-se, nada que um banho não resolva depois.
Segurei a mão do homem quando ele alcançou a fechadura. Hora do meu segundo blefe, para caso tudo desse errado. Eu podia não saber para qual lado a lealdade de Thomas realmente pendia, porém uma coisa era certa: não importava os meios que precisasse trilhar, aquele homem garantiria que Rheyk sobreviveria. E, se houvesse alguma chance de eu ou Victor condenarmos aquele lugar, ele tomaria as rédeas da situação.
– Thomas, eu quero que você saiba que se eu for capturada, vou contar a Victor a verdade. Transferi o cargo de Senhora da Luz para o anel.
– Você está mentindo! – Ele me acusou entredentes.
– Talvez. Mas você está vendo as joias? – Por um segundo, os olhos dele procuraram o que faltava. – Não há magia em mim e Victor vai sentir.
– Sabe que a única coisa que o impediu de mandar você à forca foi o título, não é? Ele vai te matar se souber disso, entendeu? E se você estiver mentindo, vai condenar Rheyk inteira.
– Estou ciente. – Lógico que sabia, mas ouvir em voz alta essa hipótese me fez engolir em seco. – Mas é o que eu vou fazer e, como não possuo nenhuma magia, ele vai acreditar em mim, independente que alguém diga o contrário. Agora, se você tem tanta certeza que eu estou mentindo, sugiro que arranje um modo de minha execução ser pública e fale com as garotas para que elas me resgat...
A risada de escárnio me fez parar.
– Como se elas fossem acreditar em mim. Como se o generalzinho conseguisse superar o ódio por mim para trabalharmos juntos.
– Diga que os presentes de Natal deles estão debaixo da minha cama e no meu diário fala um pouco mais. Eles já leram tudo mesmo, uma página a mais não faz diferença. Entendido?
– Claro! Mais algum pedido estúpido? – Sua voz saiu em meio ao rosnado.
– Se não quiser lidar com o sexteto, não me deixe ser capturada. – Ofertei-lhe um sorriso duro e abri a porta.
Saímos, nos esgueirando pelas sombras como duas assombrações. As movimentações estavam intensas, indicando que já sabiam que eu derrotei Petrik e o sexteto nem Thomas estavam localizados. Por mais que o homem a minha frente tentasse esconder, seu medo era palpável.
Isso era um bom indicativo. Ele não acreditava na transferência do cargo assim como sabia que eu iria mentir para Victor, colocando minha vida em risco. Ou seja, no cenário de minha captura, metade do trabalho estava feito. Precisava confiar que o grupo se arriscaria por mim mais uma vez, a outra metade que não confiava. Bem, ao menos, tentei...
– Aqui. – Thomas me segurou pelos ombros para capturar minha atenção e logo apontou para uma portinha na muralha que cercava o terreno do castelo, cruzando um pátio de solo morto. – Ali é a saída para a rede de descarte de dejetos. Quando pisar no pátio, não pare de correr, não existe cobertura e qualquer um poderá lhe ver. Compreendeu, pequena?
Anui sem tirar meus olhos dos deles. As íris vermelhas carregadas de preocupação e sua expressão, por trás da camada branca de pelugem que lhe cobria a face, era de quem parecia grato pelas minhas escolhas. Aquele homem cada dia se tornava mais animalesco, mas o seu lado humano parecia lutar para continuar existindo.
– Enny. Essa é a última vez que eu te salvo. Ouviu?
– Não se preocupe. Victor que precisará de salvação da próxima. Até breve, Thomas. – Desvencilhei-me de suas mãos e corri pelo pátio.
Por um momento pude crer que daria certo. Que chegaria lá. Por um mísero e ilusório momento. Contudo, minha esperança se converteu em cinzas ao escutar a voz gutural gritando às minhas costas. Tentei não parar, forçar meus pulmões para funcionarem dobrado e suportarem a pressão do esforço. Mas meu peito ardia e, por mais veloz que eu fosse, jamais seria comparada à quimera horrenda que vinha em minha direção.
Petrik não estava vindo meramente me capturar, ele deixou bem claro em seu grito, corria atrás do assassinato que esperava há tempos. Eu não tinha magia, ou seja, estava indefesa. A conformação pesou em meu peito, fazendo-me virar para encarar à quimera que usava suas seis patas para correr até mim. Ele projetou sua cauda contra meu corpo. Cruzei os braços e amorteci o impacto em minhas costelas, contudo ainda assim fui lançada sem fôlego.
Rolei algumas vezes na terra seca. Meu corpo parecia ter sido quebrado ao meio, mal conseguia respirar e os músculos não respondiam ao comando de levantar. Uma sombra cruzou minha face, fazendo-me olhar para cima. Era um outro guarda, o mesmo que me recebeu no portão quando eu vim na minha primeira vez para cá. Os traços de simpatia lhe fugiram à face nesses meses que se passaram.
– Um presentinho de Thomas para você.
O guarda abriu um amplo sorriso, levantando o pé com a bota preta de couro e descendo de forma certeira em minha cara, me apagando no ato.
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