Capítulo 22 - O Jogo da Traição
A falta de luz não ajudava muito. Bati meu pé contra algo e agora estava caída no chão, esperando enfraquecida alguma ajuda. Minhas mãos algemadas e a vontade de fugir do castelo de Victor me dominava, mas eu estava perdida. Ao pensar nisso, me vi fora daquele lugar, correndo pelos corredores. Sabia que isso era Angel me avisando que estava perto. Ri pela alegria que senti ao saber de sua proximidade.
Eles deviam saber onde eu estava, pois seguiam um caminho fixo, Nathan liderando as garotas. Tentei me concentrar em ouvir os seus passos. Tum Tum. Fechei meus olhos fortemente e me concentrei no que Angel via, impossibilitando-a de ver o breu que me afundava. Eles abriram uma porta e, na frente deles, a garota coberta com uma capa estava no chão, com o corpo voltado para os dois tronos montados.
– Enny! – Ouvi a voz de Nathan chamar. Não houve qualquer resposta.
Todos se aproximaram da garota, ficando acima de um círculo que deveria ser vermelho, não cinza como estava agora. Ela se virou com um sorriso maléfico e eles se surpreenderam quando viram que ela não era eu. Abri meus olhos a tempo de ver o círculo cinza se fechar e os prender. O mesmo material que sugou os poderes de Angel outrora agora garantia que eles não conseguissem reagir naquela gaiola.
Meu coração apertou, contudo, tentei manter a postura impassível. Victor usou seus poderes e fechou a porta com violência.
– Parabéns, Enny! – Victor falou ao lado da enorme porta de entrada com satisfação. Ele batia palmas frente ao sucesso do plano.
Saí detrás do maior trono batendo lentamente palmas. O vestido bordô que eu vestia se arrastava em ondas pelo chão à medida que eu descias os três degraus, me aproximando da gaiola. Observava cada um com deveras atenção. Dúvida, traição, tristeza e fúria. Ótimo, eles sabiam como eu tinha me sentido.
– Enny? – Todos arfaram em choque.
– O que foi? Acharam que eu não era capaz de armar um plano? – Reprimi toda a culpa dentro de mim que ainda tentava existir. Eles procuraram isso. – Talvez, fazer um guarda contar onde eu estava e vocês virem, de boa vontade, para a própria captura. Tão simples. Tão previsível. – Dei uma gargalhada estridente. – Tão patéticos. Tanto quanto vocês.
– Nossa pequena agora é minha aliada. – Victor falou prepotente, vindo para meu lado. – Ela elaborou cada passo deste plano e eu só mandei meus escravos obedecerem. Genial!
– Por quê, Enny? – Angel parecia não entender. Como ela ousava agir com tanta falsidade?
– Por quê? – Coloquei ironia na minha voz para encobrir o ódio. – Vocês mentiram para mim, me usaram... – Não consegui terminar. – Eu preciso de mais motivos?
Usei a dominação do ar para poder ficar na altura que eles estavam. Dali de dentro, eles não podia me atingir. Nunca mais poderiam me machucar como fizeram.
– Angel, foi você que deu a ordem. Não lembra? Para cada escolha, há uma consequência. Achou a sua. – Falei apática, mas minha garganta rasgava, querendo desabar em choro.
Comecei a andar no ar para ficar cara a cara com cada pessoa com quem falava.
– Aline, como é se achar tão inteligente e ainda assim levar levar um xeque-mate de um mero ás? Não era assim que você me chamava? Jane, quem mandou me maltratar tanto? Está vendo que o jogo muda? Nate, Nathan... Tem a pior lista aqui.
Dei uma risada anasalada. Queria bater nele, falar tudo que estava entalado. Com certeza, estava encarando a minha maior dor ali. Toquei, por ímpeto, seu rosto e ele se virou bruscamente, inundado em nojo. Mordi o lábio superior ao encontrar o olhar de duas das meninas mais novas, mitigando um arrependimento que surgia.
– Tracy e Luna, vocês apenas estavam com a turma errada, na hora errada. Desculpem-me, amiguinhas. Mas eu cansei de ser a boa menina.
Queria que eles me odiassem. Queria que se sentissem tão traídos quanto eu me senti. Mas, acima de tudo, precisava convencer Victor de que não iria contra ele por nada. Somente assim poderia ganhar sua confiança e acabar com esta guerra por dentro. Sem mais mortes. Era essa minha missão.
Eu fui descendo uma escada invisível e vi Victor gratificar a nossa isca, a adolescente era a mistura de um cachorro e um lagarto. Quando cheguei ao chão, ela rosnou para mim e Victor a esbofeteou, fazendo-a se esconder entre as sombras. Meu coração estava em mil pedaços. Sentia repulsa pelo o que eu era agora e por quão fria estava sendo com todos ali, sem contar com aquela garota que levou um tapa por agir por instinto.
– Levem-nos para o calabouço. – Victor ordenou e os servos obedeceram.
– Acabou, Victor. Sem eles, a rebelião vai morrer. – Eu falei com um nó na garganta assim que o grande portão se fechou após a remoção dos prisioneiros. – Deixe-me interagir com os demais cidadãos. Contar que houve um acordo. Não precisamos mais derramar sangue.
– Concordo em parte, Hecozonha. Vamos pôr um fim nessa guerra. Mas a paz nunca reinará enquanto aqueles seis representarem a oposição.
Meus olhos arregalaram. Eu pretendia os prender aqui por um tempo e, assim que o clima melhorasse, iria os soltar antes de voltar para casa. Sem esperar perdão de qualquer um, não precisava disso vindo deles. Mas o olhar de Victor dizia outra coisa. Ele os mataria, quebrando nosso acordo. Não podia ser sentimental agora, teria que jogar com a razão para colocar aquele desequilibrado nas rédeas.
– Victor, se fizer o que está pensando, os transformará em mártires. Inflamará a rebelião, apenas. Vamos acabar com essa guerra, não piorar.
– Esqueceu que eles lhe traíram? Só os encarar já a fez sentir pena e os perdoar? Eles iam te matar. Eles iam me fazer te matar! – Lá estava o desequilíbrio tomando forma.
Com o intuito de jogar com ele, respirei fundo, vesti-me da mais pura inocência em meu semblante e disse:
– Por favor, eu te imploro. Sem mais sangue derramado. – Eu mal respirava.
Ele me deu um abraço acolhedor, afagou meu cabelo – igual à minha mãe quando eu tinha medo – e enxugou as minhas lágrimas. Aquele homem parecia estar genuinamente preocupado comigo.
– Tudo bem. Você já fez mais do que deveria. Eu sempre soube que não seria capaz de prosseguir. Mas tudo bem. Posso cuidar do resto sozinho, Hecozonha.
– Victor, por favor... Acharemos uma solução juntos. – Propositalmente segurei em seu braço. – Prometa-me que não os machucará.
Antes que ele pudesse me prometer, Thomas entrou na sala e disse para que o seguíssemos com urgência. Ele nos mostrou Rheyk, ela estava cada vez mais... Morta. As casas desabavam na margem da cidade desabavam, raios desciam à terra e eu podia ver que o solo estava deslizando sutilmente de uma montanha, ameaçando, em um futuro próximo, soterrar a cidade. Mesmo assim, o povo ainda estava nas ruas, trabalhando feito condenados.
Será que a escolha que eu tinha feito estava deteriorando mais ainda Rheyk? Uma onda de remorso me dominou. "Será?". Claro que tinha afetado. O silêncio de Aliat em minha cabeça deixava isso bem claro. Cada vez mais eu estava me corrompendo e isso porque estava aqui há pouco mais de 12 horas.
– Leve-a para o quarto, Thomas. – Victor ordenou quando viu meu rosto aterrorizado. – Enny, eu vou cuidar do nosso legado.
O rastreador colocou a mão em minhas costas e me guiou até o cômodo. Eu estava catatônica e não me atentava ao caminho pelo qual era guiada. Antes de fechar a porta do quarto, Thomas me olhou com um desprezo que me tirou do meu mundo dos pensamentos.
– Até parece que não era isso que você queria. – Murmurei debilmente.
O homem bufou e fechou a porta com um baque forte.
Olhei em volta e percebi que estava no "meu" quarto, um arrumado especificamente para mim, ao contrário do que houve da outra vez que vim para cá. Tinha passado a última noite aqui. Lembro que acabei dormindo algumas horas após chorar copiosamente sob os lençóis de seda brancos. Era o quarto que Victor preparou exclusivamente para mim.
Meu quarto, minha família, meu mundo.
A força daquela frase me atingiu. Em fúria, arranquei os lençóis de cama, peguei os produtos da penteadeira e atirei contra a parede e arranquei aquele vestido bordô de mim, colocando as vestes que usava ontem.
Minha raiva intensificada porque sem que eu pensava em meu lar, a imagem daquele sexteto ao redor da mesa na cozinha de Dona Lúcia me vinha a mente. Céus! Eles me traíram! Ia jogar com minha vida! Senti uma gigantesca repulsa de mim por maltratar os habitantes de Rheyk, que eram explorados enquanto seu mundo ruía. Como também me veio uma angústia ao imaginar o que Victor podia fazer com meus antigos amigos. Eles podiam ter sido terríveis comigo, mas eu não era assim. Não era uma assassina, não machucaria assim alguém.
Alguma coisa me dizia que eu teria que resgatar eles se quisesse sair daquele mundo. Essa voz crescia em mim. Podia sentir que era Aliat falando em minha cabeça, quase como um consolo para toda a dúvida que consumia minha sanidade.
De tempos em tempos, chorava – algumas lágrimas, apenas –, sendo dominada por sentimentos que nem sabia que existiam. O dia se esvaiu em lágrimas, expressando-se como uma densa chuva sob a cidade. Pela janela, abracei a escuridão da noite como uma boa amiga.
Suja, cruel, sem coração. Era isso que tinha me tornado, mas era necessário. Essa guerra tinha que acabar. Os meios não importavam. Ao menos, era isso que eu pensava ser verdade. Precisava crer nisso ou teria que aceitar que cometi o maior erro da minha vida.
De repente, pela primeira vez em muito tempo, tive uma "visão" vívida. Essa "visão" era a continuidade da minha última – a de Aliat e sua filha... Minha bisavó. Uma mulher esquelética, com olhos esbugalhados e um nariz minúsculo, chegou perto de Aliat e a ajudou a levantar. A Senhora da Luz tinha rosto molhado pelas lágrimas e a mulher a lembrava que tinha que proteger a criança.
"Eu não posso. Eu não posso os deixar. Nem a ele." A voz de Aliat falhava.
"Pense na sua filha, ele..." Senti a hesitação da mulher ao terminar a frase.
"Eu estou pensando nela, por isso é que tenho que voltar." Aliat olhou por sobre o ombro ao escutar um novo grito. Ela estremeceu. "Por favor, Kelly, cuide da minha bebê."
"Mas, senhora..." Kelly examinou a rainha. "Isso não vai acabar, não é?"
"Não sei, mas prefiro que minha filha esteja longe daqui se eu perder." Um segundo de análise e prosseguiu:
"Está na hora. Vá para meu quarto, um portal surgiu lá, posso sentir."
"Senhora, para onde eu irei com ela?" Kelly olhou carinhosamente para o bebê.
"Para o lugar mais seguro que há, a Terra Central." Kelly arregalou os olhos ao ouvir a última parte, parecia ter medo. "Pegue minhas joias e vá. Esconda-se, esconda a magia dela. Cuide de minha pequena Cristina, por favor." Aliat chorava.
Um beijo na testa, esse foi o adeus de Aliat para sua filha. Entregou o bebê para Kelly, e as duas mulheres correram em direções opostas. Minha visão seguia o bebê, que dormia em uma serenidade que destoava dos sentimentos dos outros e do meu atual. A mulher corria mais lenta que Aliat, porém mostrava a mesma proteção.
Agora, ela estava no corredor que eu estive quando descobri meu parentesco com Aliat, e percebi que a última porta por onde ela passou tinha o entalhe igual ao do quarto ao qual eu estava na realidade. Kelly entrou na porta seguinte, deitou o bebê na cama e encheu uma bolsa com joias caras. Por fim, abriu o closet, tomou o bebê em seus braços e entrou no círculo esverdeado, sumindo.
A visão acabou e me senti perturbada ao perceber que não sabia quem era "ele". Subi na cama e me sentei no travesseiro, olhando fixamente para a parede. Depois de um tempo, bati nela e percebi que o outro lado era oco. Havia um quarto. Era o quarto de Aliat.
Uma hora depois, comecei a andar de um lado para o outro da parede, com uma grossa coberta me cobrindo – o frio tinha me atingido. Percebi uma falha, o papel de parede estava saindo, então eu puxei um pouco mais até poder ver a cor vermelha paixão por baixo. Pulei na cama ao ouvir um barulho, fingindo que estava dormindo.
O visitante entrou no quarto. Petrifiquei e tentei regular a minha respiração para convencer o indivíduo de minha inconsciência. Sentia que estava sendo observada por quem quer que fosse.
– Sei que está acordada. Venha comigo, pequena. Vista isso. – Thomas jogou uma capa.
Alguma coisa me dizia que era o certo, pois, por algum motivo bizarro, eu confiaria minha vida àquele rastreado. Então o obedeci e saí do quarto. Thomas estava em pé e parecia vigiar o movimento com atenção. Ótimo, isso indicava que ele estava agindo pelas costas de Victor.
Andamos em um ritmo estranhamente lento até nos afastarmos do corredor. Olhei sobre o ombro e vi que, depois da porta do meu quarto, só existia uma enorme parede. Por que todo lugar essencial que eu via na minha visão nunca estava completo na realidade? Isso era realmente irritante e confuso. Eu precisava de respostas.
Thomas parou em frente a uma porta pequena de madeira. Tinha um recipiente grudado na parede ao lado. Ele pegou uma vasilha de porcelana, encheu-a e molhou suas mãos e seu rosto com o líquido vermelho. Ele enxugou o rosto na gola da blusa e estendeu a vasilha para mim.
– Para entrar, você tem que se molhar. – Ele correu nas palavras, atento aos arredores. Havia urgência em seu olhar.
– E por que eu iria querer entrar aí? – Questionei com falso menosprezo.
– Você tem perguntas que eu posso responder... Coisas que podem lhe ajudar. Sua escolha, Enny Scott. Agora ou nunca.
A minha curiosidade me atingiu e eu cedi. Deixei que ele molhasse minha mão esquerda e meu rosto. A água era fedorenta, e não abri os olhos porque ele ordenou que eu não fizesse, só se quisesse me tornar o que Petrik era. Tremi frente a essa possibilidade. Assim que a porta abriu, um enorme sorriso tomou sua face e ele abriu os braços. Enfim, entramos.
– Bem-vinda, Enny, ao Encontro dos Soldados. – Thomas parecia relaxado, divertido.
– E como "o encontro dos soldados" pode me ajudar? – Falei com um sorriso, despindo-me de minhas armaduras.
– Não sei se você percebeu, mas aqui só tem os soldados mais humanos. Se precisar de ajuda algum dia, eles são sua única opção. – Senti uma ambiguidade.
– Eles têm mais coração. – Concluí.
– Isso, pequena! Ah! Ia esquecendo, não fale sobre lados aqui, eles se irritam. – Cochichou ao meu ouvido, fazendo careta. – Então... – Puxou cadeiras para nós. – Perguntas?
– Muitas. – Fui honesta, sentindo-me estranhamente confortável e protegida por aquele rastreador. – Por que você está mudando e ainda tem humanidade? Quantos anos você tem? Por que Rheyk está morrendo mais rápido? – Parei quando vi sua face de confusão. Precisava desacelerar.
– Eu estou perdendo minha humanidade, essa força vem me consumindo há anos, pequena. Estava pronto pra sucumbir, mas, então, achei você, ainda no seu mundo, amarrada naquela sala escura... Lembra?
A memória do meu sonho voltou. O homem de olhos cinzas. Seria essa a cor dos olhos de Thomas sem a marca? Como ele, sem poderes, tinha me achado em outro universo e entrado no meu sonho?
– Não sei explicar, foi como um chamado me trazendo de volta. Honestamente, minha humanidade depende de sua vida. Acho que porque sempre imaginei que teria uma filha como você. E sobre idade... Só tenho quarenta e um. Infelizmente, a marca destrói nossa aparência. Mas, juro que era conservado antes. – Ele riu, um pouco tímido, e eu o acompanhei. – Pequena, se os boatos são verdade sobre o que você é, as escolhas erradas aceleram a morte de Rheyk.
– Minhas escolhas. – Afirmei. – Você não vai contar isso a Victor, não é?
– Tudo que se conversa nesta sala, morre nesta sala. – Eu confiava na palavra dele, mesmo sem motivo. – Poderia ser acusado de traição por lhe trazer aqui.
– Então... Quanto menos humano for, mais monstruoso você é. – Deduzi timidamente, e ele assentiu. – E em quanto tempo você perde completamente a humanidade? – Perguntei tristemente.
– Depende de pessoa para pessoa. Por exemplo, eu e Petrik entramos no exército há quatorze anos, no mesmo dia que fomos capturados e... induzidos a aceitar a marca. Só estou começando a mudar a fisionomia mais fortemente por agora, enquanto Petrik mudou em um mês de marcado.
– O que houve há quatorze anos? – Thomas não tinha entendido o cerne do meu questionamento. – Você, Petrik, o pai de Nathan... Todos entraram neste castelo há quatorze anos. Você era da rebelião como o pai de Nathan. Como parou aqui?
– Não que tenha perguntado, mas... Sabia que Petrik era do meu grupo na rebelião? Um grande nome na época. Um era tenente e outro general, mas agora já não lembro quem era o quê. A marca apagou isso de mim. – O rastreador riu ao me ver engasgar com a surpresa. – Houve uma revolta, as pessoas enlouqueceram depois de Victor proibir a cidade de Rheyk de fazer comércio com outras cidades. Esse é o mal da guerra, traz o pior em cada um. E Victor sempre soube usar nossos monstros internos para nos trazer para cá.
Eu me peguei tentando imaginar o que ele falava. Me parecia bem factível Victor desestabilizar seu povo assim. E foi exatamente com esse monstro que fiz um acordo. Onde estava com a cabeça?
– Alguns líderes da rebelião foram raptados e todos aqueles que estavam envolvidos só tinham duas opções: uniam-se ao exército ou teriam um destino pior do que a própria morte. As caras, os nomes dos meus... Poucas coisas ficaram na minha memória, mas eu lembro do acordo que fiz para aceita a marca.
– E com o que ele ameaçou? – Minha voz falhava pela mistura de emoções.
– Victor é um mestre em manipular amor e medo... – Ele estremeceu ao falar. – Talvez tenha dado uma escolha ao pai de Nathan... Lealdade eterna pela sobrevivência da família... Quem sabe?
– E a você também. – Conclui num sussurro. Ele não esboçou qualquer reação, mas podia dizer que tinha atingido o ponto certo. – Você acredita em destino?
– Sim. Cada pessoa tem um destino, só muda os meios. Victor tinha o destino de ser um rei tirano e você de ser a sucessora ao trono, a ambos. – Ambiguidade de novo. Havia algo ali.
– O que você sabe tanto? E por que está me ajudando? Isso é traição ao rei.
– Eu não estou traindo a Coroa. Tudo é questão de perspectiva. Victor precisa de um Reino para dominar. Sem você, não há qualquer motivo para lutar porque não há Rheyk. No fim, todos morremos.
– Parece uma linha muito tênue, o limite de devota lealdade e traição. – Ele apenas sorriu com minha afirmativa. – Mas não faz muito sentido quando eu me lembro que tentou me matar.
– Matar? Eu? Jamais! Aquela adaga lhe cortar em uma área segura não foi um erro. O fato de ter lhe queimado as costas e não o pescoço, também não. Nem tudo que parece, é. – Ele pegou uma taça e bebeu aquele líquido fétido. – Agora, admito que lhe manipulei no caminho. Minto. Ajudei você a tomar escolhas muito importantes. Afinal, para existir o bem, há de existir o mal.
– E como você me ajuda a fazer as minhas escolhas? – Peguei um namiguere, um bolinho feito com suco de najalar, e o mordisquei.
– Contando tudo o que eu sei. – Ele tomou a taça novamente em suas mãos e bebericou.
– Você não me contou nada útil até agora. – Pus-me de pé e notei que alguns guardas pararam de conversar para nos olhar.
Aproximei-me dele, nossos rostos a um palmo de distância do outro. Senti seu nervosismo, o tinha colocado contra a parede.
– Ou você não quis ouvir. – Ele insinuou com um meio sorriso. Levantei-me para ir embora, e ele segurou o meu pulso. – Faça a escolha certa, você não é igual a eles.
Achei que o "eles" que ele queria falar era Nathan e as meninas. O que ele queria que eu fizesse? Qual era a escolha certa ao seu ver? Se era tão ruim quanto admitia ser, trair meus antigos amigos não deveria ser o correto para aquele guarda? Sentei-me de novo na cadeira, retirei um pedaço do namiguere e o mordisquei. Thomas, por sua vez, pegava umas frutinhas roxas enrugadas e fétidas, comendo quase que de maneira compulsiva enquanto falava:
– Você reclama dizendo que eles lhe usaram, mas você também os usou e está usando agora. Ao menos, eles fizeram a coisa errada tentando salvar vidas, enquanto você só pensou em si e na sua vingança.
– Fala como se me conhecesse. Thomas, você não sabe nada sobre mim!
– Sei o suficiente para te dizer o seguinte: você não é a personagem principal dessa história, esse cargo é ocupado por alguém mais poderoso. – O homem se calou, deu um sorriso gélido e se recostou, colocando outro arcux na boca. – Ao menos, por enquanto. Tudo depende de suas escolhas.
– E quem é esse? Victor? O Sábio? Se você sabe quem eu sou, também sabe a minha força. – Insinuei. Notei que ele pensava calmamente em sua resposta.
– O Sábio... Ele quer você aqui. Sabia? Imagina o porquê? – Thomas sorriu. – Um homem sádico te quer aqui, enfrentando Victor e só te deixará ir se o resultado for o esperado.
– Olha onde eu estou. O aliado que fiz. O jogo mudou, o resultado não pode ser igual. – Falei secamente.
– Uma pessoa pode vencer duas partidas com duas mãos diferentes. – Thomas puxou o pé da cadeira, me trazendo mais para perto dele e murmurou: – Eu já disse... Escolhas certas podem salvar Rheyk e lhe devolver para a Terra Central em segurança.
Ele se levantou e foi até outra mesa, cumprimentou um garoto bem novo. O segui percebendo em choque o termo que ele tão bem conhecia.
– Como você sabe sobre a expressão Terra Central? – Minha voz tremia, as peças começando a se encaixar. Mas eu queria o ouvir dizer.
– Há mais coisas entre o Eixo e a Terra Central do que sonha nossa vã filosofia. Agora volte para o seu quarto. – Ele mandou com pouca simpatia.
Eu precisava tirar mais coisas dele. Não podia o perder de vista agora que o tinha sendo tão honesto.
– Você me trouxe e, agora, me leve de volta. Ou quer que eu conte para Victor que está me persuadindo a trair ele. – Ameacei quando ele riu.
Na realidade, eu perguntaria coisas que não poderiam ser respondidas na frente de outros. Alguém poderia ouvir e contar para Victor. Depois de ter que esperar mais uns dez minutos – porque Thomas quis comer –, voltamos para meu quarto. No caminho, aquela dança estranha recomeçou; parávamos, observávamos e corríamos. Não tive oportunidade de perguntar nada para ele no trajeto. Aliviados, chegamos seguros ao meu quarto.
– Posso lhe fazer mais duas perguntas? - Usei um tom que dissesse que estava arrependida por o ameaçar, assim que a porta fechou.
Eu queria, mas não conseguia, de fato, ver aquele homem como inimigo. Principalmente agora que uma ideia latejava em minha mente.
– Agora só sobra uma. – Ele brincou, corroborando mais com meus pensamentos.
– Então vou misturar as duas e você que se vire para entender. – Fui recíproca, mas minha voz falhava. – Vocês construíram algumas paredes para prender os prisioneiros daquela revolta?
– Ninguém foi aprisionado, pequena. O rei achou que seria um desperdício aprisionar pessoas com tanta vitalidade, então só separou os mais fortes para os transformar. E os outros... – Ele parou e finalmente entendeu o que eu realmente queria dizer. – Talvez o pai de Nathan não trabalhe mais no castelo. Seria trágico se o filho tivesse dado fim ao próprio genitor.
Eu me virei para entrar no quarto, meus pensamentos a mil, e, de algum modo, eu sabia que Thomas ainda escondia algo ou não tinha perguntado o que realmente era importante. Três pessoas – o pai de Nathan, Thomas e Petrik – e três rumos diferentes. Ou talvez nem tanto assim.
– Enny. – Thomas chamou. – Você perguntou tanto que quero saber uma coisa. Posso? Você não é ruim, bem longe disso. Por que dar esse destino aos seus amigos?
– Victor disse que não os machucaria quando aceitei ajudar a capturar meus ami... Antigos amigos. – Falei com uma voz fraca.
– A sede de sangue é uma das coisas mais poderosas e perigosas. Quando começa... – Ele me tratou como uma idiota, o que eu realmente era. – E sim, houve uma construção de paredes. Não para prender prisioneiros, mas esconder fatos, saídas...
Ele se virou para ir embora, mas, de súbito, parou e me olhou com um sorriso confidente.
– Lembrei-me! Ao amanhecer, peça para Victor lhe mostrar a Salão Omiso, é um bom lugar para refletir.
Quando ele saiu do meu quarto, a primeira coisa que fiz foi buscar a tradução de "Omiso" em minha cabeça. Significava "rosa". Como se já não tivesse muito em que pensar, agora teria que imaginar o que e como seria esse Salão Omiso. Senti o tempo voar, talvez fosse porque estava distraída demais, planejando o meu próximo passo. Vi o sol nascer por trás das nuvens de uma manhã alaranjada. Ao longe, via que o clima amenizava. Rheyk sutilmente parecia saber as decisões que eu tomara esta noite.
– Tome banho e desça para o café. – A mulher, a qual eu não vi entrar, alertou.
– Diga para Victor me esperar. – Falei de um modo autoritário, frio e de menosprezo. Eu teria que enganar aquele déspota.
Tomei um "banho", vesti o vestido mais "iluminado" que pude e desci para sala de refeição. Victor me esperava do outro lado da mesa farta. Olhei para meu lado direito e vi uma criança muito magra, sentindo um aperto no coração de dó. Pelo olhar dela, percebi que a criança queria se sentar e saborear cada prato assim como eu faria. Mas não poderia a convidar, não sem levantar suspeitas com Victor.
– Enny, minha querida, o que você gostaria de fazer nesse dia raro de sol?
Ouvi um leve rosnado, o qual era muito baixo para Victor escutar de onde estava, e percebi Petrik me dilacerar com seu olhar. Levantei-me e fui ao seu encontro, sorrindo. Ali estava um cara burro que me daria as respostas que eu queria. Me pergunto como alguém assim pode ter sido da rebelião? Devia ter sido um general Alberto da vida? Examinando seu corpo com meu olhar, achei o resquício da tatuagem da Flor da Rebelião em seu ombro.
– Petrik, tem alguma sugestão do que fazer hoje? – Queria saber se a besta cairia na minha cilada.
– Posso pensar em algo bem agradável. – Seu sorriso de dentes afiados carregava maldade.
Sua voz grave tremeu minha alma e arrepiou a minha espinha, mas mantive a postura. Ao menos, minha armadilha tinha funcionado.
O olhar de Victor para Petrik foi penetrante, como uma repreensão por ter falado demais. Então, eu sabia que aqueles dois fariam algo terrível, algo que déspota não queria que eu soubesse. Meus pensamentos foram direto para os meus antigos amigos presos. Droga! Thomas não mentia. Eu tinha que fazer algo por eles.
– Victor. – Chamei-o gentilmente ao me sentar ao seu lado. – Ontem, ouvi uns servos falando do Salão Omiso. Fiquei curiosa. Poderia me levar lá?
– Era o que eu realmente pensei. Estamos conectados, Hecozonha. Como deveria ser desde o princípio. – Ele parecia satisfeito com minha escolha. O olhar de loucura não o revestia hoje.
Thomas, espero não ter tomado uma má escolha ao confiar em você ou aquele sexteto podia dar adeus à vida.
***
Enny dando a vida para tentar arrancar todas as verdades de Thomas e ele só pensando em encher o bucho.
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