Capítulo 13 - Origens
– Quem te destruiu, pitoco? – Angel tinha os olhos arregalados ao abrir a porta alguns minutos após eu lhe mandar uma mensagem avisando que tinha chegado.
Ela me deu espaço para entrar e, silenciosamente, fomos até seu quarto. O apartamento dela era metade do tamanho daquele que Tia Lúcia tinha, mas continha o dobro de mobília e o triplo de cores, usando uma paleta mais quente do que a casa da minha benfeitora. Assim que Angel fechou a porta do quarto, ela me deu autorização para falar.
– Aliat e Victor estão me destruindo. Sonhei por quatro horas. Nem falo que descansei porque, entre quase morrer e desvendar o segredo do Coração, não sobrou muito tempo para isso. Toma.
Joguei o diário em sua direção e, mesmo sem me olhar, a líder ergueu uma mão e o pegou no ar. Não tinha certeza se era fruto apenas dos seus rápidos reflexos de atleta ou se tinha alguma coisa a ver com seus dons.
– Tá tudo escrito. Quer dizer, tudo o que eu lembro. Lê a partir da data de hoje. O resto é pessoal. Na verdade... Se pudermos manter alguns detalhes do que você ler em segredo, eu adoraria.
Com uma expressão intrigada, Angel concordou.
Dei espaço para que ela lesse em paz e comecei a destrinchar seu quarto. A parede onde estava a cabeceira da cama era de um tom amarelado e tinha diversas fotos penduradas em diversos varais. Família, as garotas e Nathan, outros amigos, um varal inteiro só com David, outro voltado para suas atividades esportivas – basquete, canoagem, patins, bicicleta, maratona. Uma foto bem no meio me chamou a atenção. O aniversário de Jane no início do mês. Eu estava nela.
Tudo naquele lugar exalava a personalidade de Angel. Extremamente vivo e até um pouco caótico, em uma proporção que gerava conforto ao saber que ela não era perfeita. Ao lado da porta, um par de patins – pés com tamanhos diferentes. Era uma brincadeira entre a líder e o namorado. Eles se conheceram na pista de patinação dos 14 para 15 anos e, desde que ingressaram o namoro, um mantinha um pé do patins do outro. Uma eterna recordação de como tudo começou. Piegas? Sim! Mas, deixe os amantes se amarem, não é?
O bufar de Angel me trouxe para a realidade. Suas sobrancelhas arqueadas exibiam que ela fazia esforço para absorver tudo o que tinha lido.
– Sonho que revela coisas... Não acontecem coisas desse tipo com pessoas normais. – Não havia repreensão em sua voz, mas, ainda assim, olhei para baixo, constrangida. – Ora! Fazer o que se você é minha anormal preferida, pitoco?
Peguei o travesseiro dela e lhe bati no braço. Rindo, a garota se pôs de pé.
– Me chama de pitoco e vai ver só.
– Quer que eu pegue um banquinho para você conseguir me dar um murro na cara?
Ela riu do meu semblante chocado e me entregou uma regata e um casaco que, mesmo ficando folgados, eram melhores do que a blusa de moletom que eu usava. Enquanto me vestia, ela arrumava a bolsa para escola. Fingiria para a mãe que ia mais cedo para o colégio. Saí em silêncio do apartamento, enquanto a garota foi até o quarto da senhora White se despedir.
– Parabéns, Enny. Você deu uma excelente utilidade para o caderno. – Ela me entregou o objeto de capa rosa quando pisamos na rua. – Diário dos sonhos. Bem útil no seu caso.
– Obrigada. – Enrolei o moletom ao redor do caderno e observei Angel enviar uma mensagem para Aline, pedindo para que Nathan fosse me buscar perto da escola. – Onde é esse portão que você viu quando se tornou líder?
O sorriso de lábios cerrados de Angel me deixou intrigada. Por um momento, a vi reflexiva e nostálgica, com uma confusão que não era usual.
– Aliat está falando do primeiro portão que eu vi. Não era líder ainda. Na real? Nem existia o grupo. Só era amiga de Jane. Suportava as outras com esforço. E as vezes que vi Nate com Aline, achava ele um moleque borsal.
Seu sorriso se abriu, obviamente zombando do absurdo de haver um tempo que não existia aquele grupo.
– Os dons de Aline foram os primeiros a surgir, aos dez ou onze anos. Agradeço à tia Lúcia ter notado e explicado sobre Rheyk. Já eu... Sonhava com as quatro meninas lutando quando meus dons começaram a querer despertar... Quase surtei na época.
– Sei bem como é ter esses sonhos. – Brinquei e ela me ofertou um caloroso sorriso.
– Então, um dia, eu vi a Biblioteca Municipal e um monstro horrível que parecia um lagarto. Senti que tinha que ir lá, urgente. Assim que cheguei, fiquei em choque ao ver Aline e Nate tomando uma surra de Petrik. Sabe o que é mais louco? Por mais que uma vozinha dissesse para fugir, eu sabia que meu lugar era com eles, que não podia os abandonar.
Ela estava absorta em suas memórias, parecia nem me ver. Já eu, a admirava. No lugar dela, com toda certeza, teria fugido.
– Os dois estavam muito machucados e Petrik queria matar eles. Foi bem aterrorizante. A biblioteca escura, aquela besta jogando estantes cheias de livros a metros de distância, e eu não tinha ideia do que podia fazer.
Angel ergueu as mãos, encarando-as com uma grata surpresa
– Mas, como se fosse um milagre, os poderes de Aline ficaram mais fortes com minha presença e os meus com a dela. Não faço ideia de como eu fiz, mas deixei Petrik surdo e cego enquanto Aline transformava um livro em uma arma e começou a atirar nele. Machucado, aquele demônio voltou para casa. E foi assim que entrei no grupo. Logo depois vieram Jane, Luna e Tracy. Eu e Nate recrutamos uma a uma, com ajuda de tia Lúcia para explicar esse caos.
– Angel, não que tenha a ver com a joia, mas por que você é a líder?
– Eu sempre tive essa aptidão. Era capitã de todos os times aos quais fiz parte. Mas... Com esse grupo, tem algo a mais. Meu poder fica mais forte perto delas e a recíproca é verdadeira. Por quê? Nem tento mais saber...
Ela bateu as palmas das mãos uma única vez, indicando que o assunto tinha acabado. Achei ter tido o vislumbre de medo nela. Será que ela se cobrava pela proteção das garotas? Afinal, um erro seu podia significar a morte das suas melhores amigas. Sabia que ela não me revelaria se essas conjecturas eram factíveis ou não.
– Então... A joia está na Biblioteca Municipal. A casa de Luna é perto. Vou pedir para ela passar lá.
– Não! – Minha voz exasperada cativou a atenção de seus olhos interrogativos. – Tem coisas nesse sonho que ninguém precisa saber.
– É sobre seu pai? – Assenti a pergunta dela, relutante. – Enny, olha para mim. Quer desabafar? Está tão nervosa que não parou de morder os lábios desde que eu peguei o caderno.
Continuei andando, com a vista baixa. Só tinha mostrado para aquela menina porque sabia que ela não era dada a perguntas mais profundas e não insistiria se eu negasse contar detalhes. Mas não podia dizer isso de Tracy e Luna... Por isso queria aquele sonho trancado a sete chaves. Tirando-me das minhas reflexões, Angel se pôs na minha frente e me segurou pelos pulsos.
– Ninguém precisa saber dos detalhes do seu sonho ou da sua história. Mas está claro que isso te abala. Então, se você sente que precisa falar sobre, eu ouvirei. Ok?
E antes que eu desse por mim, comecei a falar com aquela recém-conhecida o meu maior segredo de vida, tentando evitar qualquer sentimentalismo de transparecer. Minha frieza na voz era tal qual de quem lia uma notícia no jornal. O problema? Assim que comecei a contar a história, me vi revelando, inconscientemente, a maioria dos detalhes.
Há seis anos, acabei pegando uma mensagem de mamãe para uma amiga. Nela, Sara contava que, quando engravidou de mim, meu pai insistiu no aborto, usando a condição financeira deles na época como justificativa. Minha mãe bateu o pé e manteve a gestação, torcendo para que o marido se apaixonasse pela segunda filha quando eu nascesse.
Porém, ela não podia estar mais errada. Após meu nascimento, meu pai insistiu para que me tirassem de casa, que fosse morar com meus avôs ou qualquer conhecido. As palavras exatas de mamãe na mensagem eram:
"Pedro aceitaria qualquer distância de Enny, desde que nunca mais precisasse vê-la".
Então, inevitavelmente, o divórcio veio quando eu tinha quatro anos. Sem condições financeiras ou emprego fixo, mamãe voltou para sua cidade natal e foi morar na casa de sua mãe, vovó Paola.
Infelizmente, a justiça obrigava que eu fosse visitar meu pai nas férias. Cada pausa no período letivo me dava taquicardia, ansiedade, pânico... Tudo de pior, porque era isso que eu vivia na casa dele. Apanhava por cada deslize, comia praticamente as sobras e ouvia insistentemente que nunca seria boa, que era a encarnação de todo o mal, que eu o separei de sua família. Mais nova, tentava conquistar seu afeto aprendendo a lutar as modalidades que ele treinava, a tocar seus estilos musicais favoritos... Vivia tentando provar que era boa, que ele estava errado, que era digna do seu amor...
Acho que velhos hábitos acabam persistindo quando crescemos.
– E sua mãe permite você ir para a casa dele?
– Sara mataria Pedro se soubesse o que acontece lá. – Sorri só de imaginar a cena. – Eu nunca contei. Papai é um pai incrível para Julhinha e ela o ama tanto... Se isso viesse a público, com certeza, ela seria proibida de vê-lo. Não posso tirar mais outra pessoa da vida dele ou privar minha irmã de seu pai.
– E essa Júlia nunca te defendeu?
– Ela tem medo de o irritar e perder o afeto dele. Ajuda como pode. Escondia comida para mim ou cuidava dos machucados... Acho que nos saímos bem considerando que nosso pai jogava uma contra a outra.
Franzi o cenho, contendo uma lágrima de escapulir.
– Acredite, ele dizia, não tão ocasionalmente assim, que eu me contentasse em herdar dele só a aparência, para seu desgosto. Quando ouviu eu me apresentando como Enny Peres, me colocou de castigo e... – Ri com desgosto da memória. – Disse que Peres não me competia porque ele não teria seu sobrenome na boca do demônio. Eu tinha só sete anos... Tive que pesquisar no dicionário o que significava demônio.
Olhei para Angel e notei que seus olhos quase transbordavam de lágrimas. Era trágico, verdade, mas c'est la vie.
– Sabia que tinha algo estranho! Nunca falava dele... Mas isso? Poxa! Difícil engolir. – Ela me encarou e conseguiu captar que eu alisava sutilmente, sobre a calça, a área da coxa onde eu tinha uma cicatriz. – Tracy comentou que você ficou desconfortável quando ela perguntou sobre isso. Foi ele?
Minha postura ficou tensa. A memória desse dia era particularmente dolorosa e não estava pronta para falar com ninguém sobre. Franzido os lábios, murmurei:
– Chega desse assunto. – A bola de choro contido em minha garganta me impedia de falar mais. No meu peito ainda habitava aquela garotinha de sete anos ferida.
– Tudo bem. Estarei aqui para quando e se você quiser falar. – Seu tom era de empatia. Após um momento de silêncio, ela decidiu mudar o rumo da conversa. – E aquele negócio sobre o tempo?
– Eu não sei, mas acho bom que aqui o tempo passe mais rápido. É menos tempo que minha família vai ficar sem mim. – Ri de forma jocosa. – Pelo menos, a parte que se importa com isso, claro.
– Nossa, humor autodepreciativo. Parabéns! Caminho certo para o divã.
Uma vantagem? Ambas rimos e aquele maldito choro foi engolido com sucesso. A caixa de Pandora mais uma vez fechada em minha mente. Andamos mais um momento em silêncio até que peguei os olhos curiosos de Angel para mim.
– Então... não tem nada mais que você queira falar comigo? Sabe que pode confiar. Algo romântico, talvez?
Encostei-me à parede de uma loja e a encarei com seriedade. Não sabia por qual caminho seguir. A primeira opção era que ou Aline ou Tracy comentou sobre Erick ontem na casa de Tia Lúcia. Nesse cenário não havia terreno cinzento na nossa conversa. Contudo, a segunda opção – Nathan e eu – poderia levar a conflitos, principalmente por Jane ser sua melhor amiga. Precisava continuar a conversa de uma forma que Angel me desse mais pistas sobre qual caminho deveria seguir.
– Quem te contou? – Foi a pergunta mais neutra que pude pensar.
– "Tragam-no de volta depois do treino" e, no outro dia, ele fala que está interessado em uma outra garota... Eu não nasci ontem. E garanto que, se Jane souber da sua conversa com Tracy, ela não terá problemas em ligar os pontos.
– O que voc... – Tentei retrucar.
– Para, ok? Não estou aqui para julgar vocês, apenas pra proteger a integridade do grupo. Apesar de querer lhe bater em nome de Jane... Você e Nathan. Há quanto tempo está rolando isso? Traíram ela?
– Não. – Fui enfática. – Rolou literalmente ontem.
– Rolou? Rolou o quê, Enny Scott? – Havia um choque em seu semblante. Ela pensou além do que houve, decerto. – Desgraça! Vou ter que controlar um demônio chamado Jane se...
– Calma! Nos beijamos, apenas! Bem... Foi meu primeiro beijo, então não é só "apenas" para mim. Agora... Ele disse que gosta de mim, que me esperaria... Eu não sei o que pensar, Angel.
– Caramba... Ferro, ferrou lindo! – Ela suspirou, tentando colocar a cabeça no lugar. – E você? Gosta dele?
Como líder, seu tom era sóbrio. Mas, no fundo, podia sentir um leve ressentimento de quem era muito próxima a Jane e teria que manter esse segredo para garantir a unidade do grupo.
– Sim. – A resposta foi tão automática que me impressionei – Juro, nunca pensei nele assim antes por causa de Jane. Só que... Aconteceu.
Angel me puxou pelo braço e voltamos a caminhar. Ela apertava com firmeza minha mão, parecia refletir qual das suas duas versões continuaria essa conversa.
– Você está encrencada, pitoco. – Ela forçou um sorriso. – Bastante! Em que pé você e Nathan estão?
– Ele disse que conversaríamos hoje. – Minha fala arrastada era acompanhada dos meus olhos que destrinchavam as reações de Angel.
– Enny, peça um mês, no mínimo, para vocês dois colocarem a cabeça no lugar. E também para dar tempo a Jane de processar o fim do namoro. É um motivo banal, mas a relação de vocês dividiria o grupo e não podemos nos dar ao luxo disso.
– Vou falar com ele. Só não comenta nada do que conversamos aqui, por favor.
– Sobre sua família, jamais. – Ela assumiu uma postura ameaçadora. – Agora, sobre Jane... Se chegar no ouvido de alguém que eu sei, negarei até a morte e vou caçar você e o Monteiro. Fiz-me entender?
– Sim, senhora, senhorita Angel. – Prestei continência.
– E outra coisa, Enny. Deixa eu te pedir um favor... – Angel parecia estranhamente constrangida. – No próximo sonho com Aliat, tenta entender mais sobre esse negócio de sermos um desenho... Se sumiremos ou se estamos em um loop infinito. Juro que estou tentando não enlouquecer com as possibilidades. David vem falar sobre o nosso futuro, de morar juntos na faculdade... E eu morro de medo desse dia nunca chegar.
– Combinado. Te aviso assim que souber. – Com os lábios cerrados, lhe ofertei um sorriso acolhedor. – Falta muito para a biblioteca?
Angel me puxou até a esquina e eu finalmente avistei a Biblioteca Municipal. Notei que as paredes estavam pichadas e grandes tábuas de madeira fechavam a porta. Aparentemente, aquele lugar nunca mais abriu depois do ataque de Petrik.
Conseguimos arrombar uma janela lateral que dava para uma sala administrativa. Andamos um pouco e logo me vi nas margens de um grande salão caótico, com livros espalhados para todos os lados e uma escadaria que, com certeza, levava a um andar tão destruído quanto esse. Droga! Olhei para Angel e vi que as feições de preocupação também ocupavam sua face.
– Enny, sinto muito. Mas, se quiser encontrar o Coração de Rheyk nesta encarnação, precisaremos envolver as meninas.
Não havia outra alternativa além de concordar.
***
Era uma noite de quarta-feira comum, eu estava cansada de procurar aquele colar e queria dormir logo. Tudo bem que a biblioteca fosse grande e tivesse muitos lugares para procurar, mas já passaram quinze dias e, até agora, não tinha mais nenhuma pista. Eu começava a duvidar que aquele fosse o lugar certo. Peguei o meu diário para reler aquele sonho – talvez a décima segunda leitura. Sabia cada linha de cabeça. Terminada a leitura, me lembrei que não escrevia nele desde quando descobri sobre o colar. Então, peguei uma caneta e comecei a rabiscar algumas palavras.
Fechei o diário e comecei a arrumar a cama para dormir. Tirei alguns livros escolares que Aline me deu para avançar meus estudos. Contudo, antes que fosse me deitar, alguém bateu à porta do apartamento e fui abrir.
Por um momento, pensei que Nathan – que estava com Felipe na rebelião – tinha voltado sem chave. Estava sozinha em casa, tia Lúcia acompanhava o restaurante até à uma da madrugada. Um evento, parece. De supetão, abri escancaradamente a porta. Travei pela surpresa ao constatar quem eram meus visitantes: Erick e Thomas – sim, aquele que é rastreador de Victor.
– Oi, Enny! – Erick estava bastante contente.
Dei um meio sorriso, mas meus olhos não desviavam do rosto de Thomas. Senti meu sangue se esvaindo dos meus membros, contudo decidi manter a postura. O que ele estava fazendo aqui? E com Erick? Céus! Como poderia avisar as meninas do perigo sem dar bandeira?
Thomas usava uma calça jeans surrada e uma camisa de flanela. Seu cabelo estava penteado, realçando seus olhos castanhos – devia usar lentes de contato. Quase não era perceptível sua palidez, como se estivesse maquiado. Passava tranquilamente por um ser humano normal.
– Oi, pequena. – O rastreador falou calorosamente. – Não vai falar com seu tio? – Seu sorriso me parecia macabro.
– Hã... É, tio... oi... O-o que você está fazendo por a-aqui? – Meu olhar transitava freneticamente entre os dois visitantes.
– Não é legal um encontro familiar? – Erick parecia um escoteiro que ganhou uma medalha. – Enny, você não vai acreditar no que eu vou dizer. É muito estranho.
– Pode ter certeza que vou acreditar. – Falei com uma voz sem vida, atônita.
– Tom apareceu no restaurante e começou a falar que parecia um lugar que a sobrinha Enny, que está em intercâmbio, tinha comentado. Quando ele me mostrou uma foto tua com a tua família, não tinha o que negar. Seu tio! Quis fazer uma surpresa para você. Então, pedi um intervalo para Dona Lúcia e o trouxe aqui. Não é legal?
Quando Erick parou de falar, Thomas me levantou em seus braços – dando um forte abraço – enquanto me chamava por "pequena". Agarrei o seu pescoço, encostei meus lábios em seus ouvidos e me forcei a falar o mais baixo possível para Erick não escutar.
– Se você machucou tia Lúcia, Nathan vai fazer picadinho seu e eu vou deixar. – Thomas riu e me soltou.
– Onde está o famoso Nathan? – O rastreador se alegrou ao me ver recuar e ao notar Erick se encolher, como se apenas o nome do meu protetor lhe atingisse a autoestima.
– No quarto. Quer que eu o chame? – Menti com firmeza.
– Acho que você estava dormindo e não viu, Ennyzinha. – Erick, apesar das boas intenções, não sabia quando calar a boca. – Nathan saiu com uma mochila e tudo. Deve dormir fora hoje. Ele é um fanfarrão. Vive de farra e de briga.
Thomas estalou a língua uma vez e começou a rir como se fosse uma piada. O maldito sabia que estava em vantagem. Seus olhos sondaram o meu colo, a procura do colar que ainda não tinha encontrado.
– Quanto tempo, tio Tom. Admito que não esperava te ver tão cedo. – Falei sorridente. Um sorriso amarelo. – Erick, se importa de nos dar licença?
Antes que eu pudesse fechar a porta, Thomas pediu para que ele entrasse para agradecer apropriadamente. Fiquei nervosa ao ver os dois no sofá de tia Lúcia, conversando calorosamente. Perguntei se o servo de Victor estava com fome e o chamei para a cozinha enquanto preparava um sanduíche. Nesse tempo, Erick informou que iria ao banheiro.
– Que foto é essa que você tem? – Falei alto em um tom animado que não condizia com minha feição enquanto Erick ainda estava no meu campo de visão.
– Se lembra de Petrik? – Para minha sorte, meu colega já não estava na sala e não me viu ficar pálida. – Quando ele foi para sua casa, trouxe de lembrança.
O servo de Victor tirou de seu bolso uma foto surrada que ficava exposta no quarto de minha mãe, perto da TV. Subitamente, notei que as meninas voltaram para esse universo, mas nunca mencionaram que tinham trazido a besta de Victor junto. Será que algo tinha acontecido à minha família? Teria ele as raptado? Matado? Fiquei verde, enjoada com as possibilidades.
– O que mais ele trouxe? – As palavras atravessavam meus dentes cerrados.
– Você ainda não encontrou o colar. – Thomas murmurou dando um passo em minha direção. – Meu mestre está perdendo a paciência.
Virei-me para ele, meu rosto queimava e eu quase podia ver chamas o consumindo. Eu não era idiota para achar que ganharia de Thomas em um duelo. Mas minha vontade era de usar a maldita faca em minhas mãos para lhe causar dor até que me respondesse. Meus olhos firmes nos dele deixavam claro que eu não falaria nada até ele me responder.
– Somente isso, pequena. – Ele colocou sobre a bancada a foto e apontou para mim. – Você não parece muito com sua mãe, só os olhinhos. Deve ser a princesinha do papai.
Queria, de coração, pegar de imediato aquela fotografia em minhas mãos e ver minha família, não só nas minhas memórias. Sabia qual era a fotografia, um belo dia na praia, pouco antes da minha primeira visão. Contudo, agora, precisava focar na ameaça iminente que habitava a cozinha.
– Você pode me machucar, me matar, mas nunca mais use um amigo meu para chegar até mim. Estou só avisando. – Falei rispidamente, percebendo que minha respiração falhava.
– Se eu quisesse invadir aqui e matar seus amigos, teria vindo desde que Nathan se mudou para cá. – Havia uma soberba em sua voz. – Só vim para conversar. Meu mestre cansou de esperar a sua melhora e o coração. Então, quando você voltará?
– Por quais motivos eu voltaria? – Perguntei ironicamente.
Thomas olhou na direção do banheiro, ao ouvir o barulho da chave destravando a porta, e voltou a olhar para mim com um grande sorriso.
– Percebi que esse garoto gosta muito de você e, pelo visto, há uma certa reciprocidade. – Thomas riu. – Você não quer que nada ruim aconteça a ele, não é?
Por debaixo da bancada que separava a cozinha da sala, eu encostei uma faca de açougueiro na região do umbigo de Thomas. Movendo os meus lábios, ameacei:
– Vá embora, senão eu mato você agora.
Com um movimento rápido, Thomas me desarmou e cravou a faca na mesa de ingredientes. Erick acabou pegando esse último ato e veio questionar o que estava acontecendo. Sem se explicar, o rastreador de Victor disse que precisava ir, tomou minha mão para um beijo e partiu sem esperar que eu o levasse à porta.
Assim que sua ausência banhou o recinto, senti como se pudesse respirar. Agora, eu estava com Erick, sozinha e em segurança.
– Seu tio é legal, simpático. – Senti falsidade em sua voz. O garoto tentava ser amigável.
– Me faz um favor e nunca mais fale com ele, por favor. Nem conte a Nathan, Aline ou tia Lúcia da vinda dele. – Suspirei.
Erick me olhou com um semblante questionador. Eu mesma iria falar para a proprietária desta casa, sabendo que isso poderia me deixar desabrigada.
– Desculpe, achei que estava fazendo algo bacana para ti. Já vai dormir? – Ele perguntou, apontando para mim. – Fica linda de pijama. Não se preocupe, vou embora.
Ele abriu a porta e, quando estava perto do elevador, se virou para mim com a mão acariciando freneticamente o pescoço.
– Vai para o aniversário de Luna?
– Claro, Erick. – Minha simpatia era zero, ainda presa na imagem de Thomas.
O aniversário de Luna ia ser daqui a um mês e meio. Por que ele estava me perguntando sobre algo tão distante?
– Hum... É um baile de máscaras e as moças precisam... De um par. – Ele parou, repuxando a gola da blusa. – Então... V-você... E-eu... J-juntos... Bai-ile?
– Hã... Acho que eu entendi o que você quis dizer. – Ri nervosa. – Está tão longe... Tem como falarmos depois? Não estou com cabeça para isso.
– Claro! Desde que diga sim, pode responder quando quiser. Brincadeira. – O garoto sardento riu se encolhendo e se enfiando no elevador. – Dorme bem, catástrofe.
Na minha cabeça eu só pensava: catástrofe vai ser nossa amizade quando eu recusar o convite.
Fechei a porta de casa, olhei para o meu pijama preto e não vi nada de bonito em mim. Balancei a cabeça, tirando esse pensamento e fui para o quarto trocar de roupa. Vesti qualquer peça apenas para descer ao restaurante, fugindo de encontrar Erick, que estava trabalhando, e fui na sala de tia Lúcia.
– Entra. – Ela respondeu após minha primeira batida. – Pequena! Te dei uma noite de folga e você ainda está aqui? Isso é que é amar o trabalho.
– Thomas apareceu na sua casa. – Não consegui soltar gentilmente a informação. – Ele veio atrás de mim e totalmente compreendo se a senhora me quiser fora daqui. É sua segurança. Perdão por lhe deixar em perigo. Eu sou uma ameaç...
– Enny Scott Peres. Pare agora com isso. – Ela se colocou de pé, vindo me abraçar, e eu desabei a chorar em seu colo. – Você não vai para lugar nenhum. Minha casa é sua também. Quer saber um segredo que nunca poderá contar a nenhum dos meninos?
Assenti à pergunta enquanto enxugava minhas bochechas com as costas das mãos. A senhora passava a mão pelo meu queixo, limpando as lágrimas lá, e me oferecia o melhor sorriso de vovó que ela tinha.
–Há muitos e muitos anos atrás, usei aquele livro para criar uma proteção no apartamento. Foi com umas plantas nativas de Rheyk que Nathan coletou a meu pedido. Só podem entrar na minha casa aqueles que não têm intenção de machucar aos que moram lá. Não há perigo, pequenina.
– Então Thomas não é mau?
– Não é isso. Simplesmente, ele não tem qualquer intenção de lhe machucar. Se eu ou Nate estivéssemos lá, talvez ele não conseguisse entrar.
– Mas isso não tira o fato de que ele e outros de Rheyk podem estar rondando a sua casa.
Tia Lúcia me levou até a minúscula cadeira acolchoada do outro lado de sua mesa, pedindo repetidamente para que eu me acalmasse.
– Nossa casa. – Ela pinçou meu queixo e disse aquelas duas palavras com intensidade. Soltando-me, a senhora continuou: – Eles não seriam loucos para vir. Em Rheyk, os servos de Victor têm vantagem por adquirirem características animalescas ao serem marcados e por lá não funcionar armas ou eletricidade. A magia interfere no funcionamento. Aqui, a história é outra.
A senhora abriu sua terceira gaveta e tinha uma pistola lá e mais uma caixa de munição debaixo de uma fotografia mais antiga de oito pessoas. Fiquei pálida assim que vi a arma que a senhora me entregou.
– Se precisar... Tem uma no meu quarto e outra no de Nathan.
– A senhora não é tão indefesa quanto parece.
– Claro que não, pequena. E essa é minha maior vantagem. O inimigo nem sabe o que o atingiu. E, se quiser um conselho, acho que essa tática serve muito bem para alguém com uma aparência tão inofensiva quanto você.
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