Capítulo 1 - A estranha
Tudo na vida depende das escolhas que fazemos e, honestamente, as minhas não são das melhores. E, é claro, sempre sofro as consequências. O certo, na minha atual situação, seria falar realmente o que estava acontecendo comigo: todas as minhas "visões", o quanto elas se agravaram nos últimos meses e como estava difícil de me manter presa à realidade.
Porém, como eu poderia falar com alguém que vinha, aos poucos, enlouquecendo? Nunca, nos meus dezesseis anos devida, fui destaque em absolutamente nada do que fiz, evitando assim os holofotes. O que, admito, era um consolo na maior parte do tempo.
Todavia, se escolhesse a verdade, estaria me condenado a diversas consultas com psicólogos e médicos, e a uma alcunha de doida perante os meus amigos – os poucos que sobraram desde que essas visões começaram.
Esses são os pensamentos que me invadem a consciência enquanto me penteio pra ir à escola. Olho-me no espelho e me desagrada bastante o que vejo. Cabelo armado de cor acobreada, nariz largo e uma palidez quase vampiresca, reforçada pelas fundas olheiras. Há um ano, meu corpo cresceu, mas eu me sentia genuinamente incomodada com ele, como uma estranha em mim. Consequentemente, toda as roupas que comprava eram um tamanho acima do que deveriam, tentando a todo custo que os outros não me vissem.
– Vamos, Enny! – Minha mãe me chamou com toda força que podia.
Estávamos atrasadas.
Vesti-me rapidamente, recordei-me do que acabou de acontecer em frente àquele espelho, dei uma última olhada no meu anel favorito na mão direita – que ganhei do meu avô paterno ao completar dez anos – e corri até o carro velho, assumindo minha posição no banco traseiro.
Será que aquela cena em frente ao espelho de fato aconteceu? Definitivamente pareceu real. A marca roxa surgindo em meu pulso corroborava a ideia de veracidade da minha memória. Mas como?
Durante o trajeto, consegui pegar o olhar furtivo de minha irmã – Júlia – para mim. Um nítido sinal de preocupação. Tínhamos uma relação distante, uma vez que nossas personalidades eram diferentes, mas morríamos e matávamos uma pela outra, algo que não diria por mais ninguém da minha família.
Enquanto eu parecia que havia saído de um livro do Drácula, minha irmã era a personificação da típica mocinha de filme adolescente: inteligente e linda. Só com um adendo: Júlia não só sabia de sua beleza como também a utilizava para sempre estar namorando e para se safar de possíveis confusões, característica que herdara da nossa mãe. Admito que invejava o quanto elas eram habilidosas nisso. Teria sido útil nas duas últimas vezes em que fui parar na direção.
Desci do carro antes que o mesmo parasse totalmente e andei a passos largos para minha sala, de cabeça baixa e sem conversar com ninguém. Amava vir à escola. Muito mais pelas amizades do que pelo conteúdo, verdade. Porém, isso vinha mudando desde que as visões começaram.
No começo era engraçado: eu sabia de coisas que iam acontecer dali a cinco minutos, e isso até me rendeu algum dinheiro. Mas, com o tempo, as visões se tornaram macabras – normalmente sobre minha morte – e vinham à minha mente sem aviso, deixando-me em estado catatônico por alguns minutos.
Não foram poucas as vezes que parei no meio de uma conversa e saí correndo para o banheiro, ou simplesmente ignorava quem estava ao meu redor. Isso me levou à perda de várias amizades ao longo dos últimos meses e também do meu ânimo. Era nítido que eu vinha definhando e me questionava como minha mãe não via.
– Bom dia, vampirinha! – Tayane, uma das poucas amigas que me restaram, me recepcionou assim que sentei na minha carteira.
Com um sorriso, a motivei afalar o que queria.
– Fofoca do dia: Lucas tomou um fora da Amanda na festa da Priscila, então não fale no nome dela quando ele chegar. E Mariana está me tirando a paciência, falando mal da gente. Simplesmente não entendo como você conseguiu ser amiga daquela filh...
Essa era Tayane. Enérgica e sempre aos extremos pra tudo. Se ela te amasse, iria até o inferno contigo sem perguntar se havia caminho de volta. Se te odiasse, prenderia você no próprio inferno, sem forma de sair. Por sorte, eu estava no primeiro grupo, e ela sempre me buscava nos meus devaneios durante as visões, repetindo as mesmas conversas quando saía do ar.
Adorava a paixão que Tay tinha pra tudo na vida, especialmente pra desenhar. Ela se perdia na sua criatividade quando começava um quadro e, não era incomum que seus cabelos – com mechas descoloridas pelo sol – estivessem sujos de tinta ao final do processo. Para completar nosso trio, Lucas chegou, nitidamente evitando o tópico sensível.
***
TAYANE
– Você viu que ela me ignorou? – A voz de Lucas deu uma leve afinada. Puberdade estava marretando ele sem dó nem piedade.
– E? Vai ficar chorando ou tomar alguma atitude? – Não tinha paciência para isso. Mais um intervalo absorvida no drama amoroso dele.
Na realidade, éramos um trio porque eu tinha muito apreço por Enny – e ele era o melhor amigo dela –, mas nutria pouco afeto pelo garoto magricelo. Não era inteiramente ruim, só que sempre precisava ser o foco da nossa atenção, com os piores conflitos e dramas. E sempre desafiava Enny a fazer as coisas mais estúpidas, sabendo que ela aceitaria muita coisa para provar que era boa o suficiente para estar no nosso grupo. Essa necessidade de aprovação dela me incomodava, mesmo sabendo as razões. E, para se encaixar, minha amiga estava construindo um muro entre nós que eu não conseguia ultrapassar, fazendo-me uma mera telespectadora de sua destruição, vendo-a adquirir um aspecto moribundo que me assustava.
Notei, pelo canto do olho, que ela acariciava o pulso direito. Entreguei para Lucas uma nota de vinte, pedindo desculpas por perder a paciência e dizendo para ele comprar o que quisesse na lanchonete e me trouxesse um chocolate, apenas. O garoto saiu satisfeito e eu peguei minha amiga pelo braço, arrastando-a até encontrar Júlia.
– Ju, aquele papo... Podemos ter agora? – Falei secamente.
A irmã de Enny concordou de imediato e fomos para o banheiro do primeiro andar. Lá quase não aparecia uma alma. Olhei as cabines, tendo a certeza que estávamos sozinhas, e coloquei um cabo de vassoura atrás da porta. Os olhos da minha melhor amiga estavam confusos.
– Sessão de intervenção. – Sua irmã anunciou. – Precisamos conversar.
– O que está acontecendo, Scott? Desabafa com a gente. – Tentei usar meu tom mais amável. – Sabe que ninguém nesse mundo te ama mais do que nós duas.
– N-nada. – Enny gaguejou ao ver seu reflexo, virando-se bruscamente para encarar o chão enquanto acariciava a própria mão direita. Parecia sentir medo do que veria ao mirar sua imagem. – Só não estou dormindo bem.
– Você não está dormindo! – Júlia foi bem enfática. – Eu vi seu travesseiro hoje de manhã. Estava sujo de sangue de tanto que mordeu os lábios. Ou você fala comigo ou conversarei com mamãe.
– Não invente! – Aquela voz mais grave era novidade vindo da minha amiga. Estranhamente as luzes do banheiro piscaram. – Nossa mãe já tem demais na cabeça. Não vou a preocupar com besteira.
– Besteira? Olha para você! Sabe do que estão te chamando? Carrie, daquele filme de terror. O pessoal tem medo de você! – A menina de 18 anos estava quase chorando. – Onde está minha irmã com quem eu passava horas rindo?
– Enny. Você fica fora do ar por minutos e sempre volta ou chorando ou assustada. Tem algo acontecendo. É o medo das férias chegando? De ir para casa de... ? Sabe que pode ficar comigo. Posso falar com mamãe e mudar a viagem do parque aquático para um outro lugar que você se sinta segura.
– Não tem nada a ver com ele. S-Só... – Minha amiga suspirou, como se desistisse da ideia de falar. As luzes novamente oscilaram. – Eu só preciso dormir e vai ficar tudo bem.
Júlia ficou desgostosa, estalando a língua e se virando para a irmã. A mais velha me acolheu outrora em um vínculo fraterno e eu cria piamente nessa nossa relação. Ela estava triste, se sentindo impotente. Jogando a real, não esperava a ver assim. Julhinha sempre foi mais egocêntrica, Enny tinha que ir atrás dela para que mantivessem essa relação tão próxima. Talvez, pela minha proximidade com a caçula, não visse o quanto a outra de fato se importava - mesmo que do jeito mais ausente dela, similar à mãe.
Encarei minha melhor amiga. Eu conhecia cada feição dela tão bem quanto ela conhecia as minhas. Não estava mentindo. Não era sobre Pedro o seu medo. Então, o quê? Será que estava relacionado com aquelas "sensações" sempre certas que ela tinha quando fazia apostas? Ou, talvez, tivesse se envolvido com alguém e ele fosse um problema? Enny tinha muito o perfil de quem cairia na conversa de um cara que não presta, muito insegura de si.
– Não irei hoje para a casa de Cece. Vou ficar em casa. – Até a voz dela estava cansada.
– Então vou para a sua. – Falei de imediato. Não ia abandonar minha amiga. – Só te conheço lá.
– E Júlia. Vocês duas devem ir. Vai ser bacana. – Ela me olhou e riu. – Acho que vou ficar em casa assistindo meus desenhos.
Enny e seu vício não assumido naquele desenho podre chamado Rheyk. Não era realmente ruim. No começo, eu gostava. Mas, assistir ao mesmo episódio diversas vezes não fazia sentido, especialmente quando só tinha uma temporada e nem sequer desfecho foi criado - cancelado antes disso. E pior, saber que ainda assistimos a mesma programação de quando tínhamos nove anos me revira o estômago. Realmente não compreendia essa paixão por esse desenho, logo Scott que odiava ficar muito tempo frente à televisão.
– Não tem essa conversa, maninha. Você vai!
– Já disse que não! – Enny falou de forma enfática, fechando os punhos com força. As luzes piscaram.
Escutei um barulho metálico seguido de um de madeira vindo da porta. Fui até lá e vi que a maçaneta tinha quebrado e o cabo da vassoura estava no chão. Puta que pariu! A diretora ia nos matar se soubesse. Como isso aconteceu?
– O intervalo já acabou. Estamos atrasadas para a aula. – A voz da minha amiga voltou a ficar mais sutil e tímida, como o habitual.
Ela não esperou qualquer resposta nossa e foi embora, sequer notando a maçaneta quebrada. Olhei para Júlia, assustada. Tinha algo muito errado com Enny Scott.
– Eu desisto dela! – Júlia me encarou, frustrada. – Se ela quiser se afundar no poço da depressão, pode ir em frente.
– Vocês duas estão cansadas. Eu vou conversar com ela, Ju.
– Fique à vontade. – A sua risada era de quem estava entregando os pontos. – Mas você conhece a mula empacada que é minha maninha. Ela não vai para a festa na casa de Cece hoje. Mas apareça, vou te apresentar uns amigos. Talvez seja hora de ampliar suas amizades porque aquela ali, só na clínica psiquiátrica.
– Sabe, Ju. – Sorri, me afastando do banheiro. – Nos seus raros momentos de humanidade, esqueço do quanto você é uma escrota com sua irmã.
– Não dá para ajudar quem quer se afundar, Tay.
Bufei, balançando a cabeça e saí. Puta hipocrisia. Porque, ano passado, quando Júlia estava dando perdido nas aulas para fumar e beber com seus amigos, Enny e eu ficamos feito duas loucas, movendo os peões para mudar o círculo de amizade dela e escondendo as evidências dos seus delitos para tia Sara não perceber. Verdade que não era difícil esconder algo tanto de Sara quanto de minha mãe, as duas viviam sob o lema "se os olhos não veem, o coração não sente". E elas adoravam ficar de olhos fechados para evitar conflitos.
Chegando na porta da sala de aula, vi que minha melhor amiga não tinha entrado ainda. Aproveitei a oportunidade, puxei-a pelo braço e a afastei para conversarmos.
– Porra, Scott! Não quer jogar a real com tua família, entendo. Mas, e eu? Poxa! Abre o jogo! Sabe que não vou fazer fofoca de ti. Somos nós duas contra tudo.
– E se eu estiver enlouquecendo? – Os olhos dela estavam marejados de medo.
– Mara, então! Dividimos a camisa de força e vamos governar o hospício. Eu estou contigo, amiga. Só quero a verdade.
Nossa amizade era assim, uma preparada para tomar uma surra pela outra. Enny, definitivamente, já apanhou algumas vezes por causa da minha boca grande. A última foi quando Mariana ficou sabendo que eu tinha beijado o paquerinha dela e a informação se perdeu, sendo entregue como se Enny tivesse feito isso. Ela não desmentiu e assumiu toda a culpa. Nesse dia, descobri que minha amiga lutava boxe e ela desvendou o que era suspensão. Nunca vi Enny falar um palavrão, mas tinha um gancho de direita que valia por toda minha boca suja, a qual eu maneirava perto dela.
– Tay, eu não sei o que é real. – Ela não me encarava, com medo da minha reação. – Eu juro que vi outra pessoa no meu reflexo hoje e ainda atravessei o espelho, como em uma porcaria de livro infantil esdrúxulo.
OK! Não estava esperando por isso. Pensei um pouco antes de evoluir a conversa, tinha que ter tato nas próximas palavras - o que não era meu ponto forte na vida. Bora lá...
– Será que não é falta de sono? Você disse que não estava dormindo... – Tentei mitigar o julgamento na voz, mas foi impossível.
Minha amiga, ao reconhecer meu tom, pareceu encolher. Cara, ela já era pequena, mas, daquele jeito, ficou igual a uma criança acuada. Podia ser loucura, só que era nítido que Enny tinha certeza que o que ela me dizia era real.
– Então, me explica o porquê meu pulso tá roxo no mesmo lugar que vi esse outro reflexo me puxar? Eu não consigo achar uma resposta racional, Tay.
– Amiga... Talvez você sonhou acordada e socou o espelho. Sei lá! Mas isso, definitivamente, não aconteceu. Tipo, a senhorita não é a Alice para atravessar o espelho. – Brinquei e ela riu.
– Talvez tenha razão. Vou ficar em casa hoje, pegar aquele antialérgico e dormir feito um bebê. Amanhã, serei outra Enny Scott. – Lá estava aquele sorriso da minha amiga. – E você vai para a casa de Cece e prepare o terreno para conseguirmos sermos chamadas para as futuras festas dela!
– Ótimo! Adoro seu espírito vampirinha, mas as férias estão chegando e precisamos curtir nossos dias de glória! – Encarei minha amiga com o mesmo carinho e repeti as nossas palavras de conforto: – E, se lembre, nós podemos dividir.
Apesar do semblante mais relaxado, não pude ignorar que Enny alisava e olhava para o pulso enquanto voltávamos para a sala. Porra. Ou ela tinha perdido o juízo ou finalmente os traumas familiares estavam mostrando suas cicatrizes. Independente do que fosse, minha amiga precisava de ajuda e, exceto que ela me colocasse, a pontapé, para fora de sua vida, eu não ia a abandonar.
***
ENNY
Naquela noite, eu estava pensando no meu último pesadelo: aquela sala escura, a cadeira de metal, aquela voz que fazia minhas veias gelarem.... De repente, fui trazia de volta para o presente pela minha mãe, que falava em seu tom autoritário.
– Enny, você já está pronta? – Seus olhos arregalaram ao me ver.
Droga! Esqueci que íamos visitar a amiga dela.
– Enny! Por que você ainda não está pronta?
Seu tom frio e enraivecido me deu medo de contar a verdade. Engoli o medo – com bastante dificuldade –, esperando não gaguejar.
– Mãe, bem... – Minha relutância surgiu ao notar o olhar decepcionado dela para mim. – Sara... D-de verdade, estou com vontade de ficar só e não quero sair hoje.
Estava em conflito. Queria contar à mamãe os motivos que me tornaram tão distante nos últimos meses, mas não queria a ver tão preocupada comigo. Ela já tinha tanto em mente, tendo que sustentar a mim e a Júlia sem a ajuda necessária. Tinha acabado de conseguir um novo emprego e estava finalmente quitando as dívidas. Não poderia colocar mais esse fardo em suas costas. Fazê-la singrar um mar de preocupação por mim. Não. Não contaria.
– Já esperava isso de você. Não faz nada por ninguém... Fique na sua bolha. – Ela realmente estava chateada. – Júlia não vai voltar hoje para casa. Tem certeza que você realmente consegue ficar sozinha?
Sua tristeza estava explícita em seu rosto, e isso me magoava. Mas a ideia de a ver preocupada comigo era pior – isso pelo menos era um consolo.
Ela estava esperando uma resposta, porém não saía nenhum som da minha boca – estava começando uma das minhas "visões". Pela ausência de resposta, mamãe se dirigiu para o banheiro, enraivecida.
Essa era uma "visão" única, não era com a minha morte – fazia tempo que não via outra coisa. Pela primeira vez, eu via algo de um século passado – aparentava pelas vestimentas. Uma mulher que não tinha mais de 25 anos e, de alguma forma estranha, se parecia comigo. A tal mulher usava um vestido bege delicado e corria freneticamente, enquanto mantinha um pedaço de pano de aparência cara contra seu peito, de forma protetora.
Não sabia o que ela enrolou no tecido, pois me concentrava no motivo que a levou a correr deste jeito. Mas, de repente, ela deu uma curva para entrar em outro corredor mais largo do que aquele primeiro – esse novo possuía bem mais portas do que o outro, e, no fim dele, se podia ver uma gigantesca saída – e, nesse momento, enxerguei o que ela estava escondendo com tanta firmeza. Não! Não podia ser!
Era um bebê! Seria filho dela? Não sabia do que estava fugindo, mas agora entendia que o porquê. Tinha medo deque algo machucasse o filho. Tentei colocar minha mente para funcionar e acelerei a corrida para a alcançar. Vi lágrimas em seu rosto e uma expressão dura. Estava tentando suportar uma dor incapacitante, disso eu tinha certeza.
Pude ouvir um horrendo grito masculino, o pior que já escutei na minha vida – parecia que ele estava sendo rasgado ao meio – e, pelo visto, a jovem também escutou, pois caiu de joelhos no chão e começou a fitar aquele bebê. O seu amor pelo neném era tangível. O último vislumbre que tive foi da mulher tirando algo de si e colocando em um compartimento da manta. Então, a visão acabou.
Voltando a mim, pude raciocinar e logo me lembrei de que não estava sozinha. Além do mais, havia deixado uma pergunta da minha mãe no ar. Antes de responder, olhei o relógio para ver se ainda podia responder sem parecer estranho e fiquei impressionada – tudo aquilo tinha acontecido em meio minuto.
– Sim, mãe. Vou ficar bem, não se preocupe. – Falei convincentemente para ela não perceber meu medo.
Acariciei meu braço para baixar os pelos eriçados. E, para demonstrar uma falsa alegria por ela me deixar ficar, pulei da cama, dei um beijo em sua bochecha e lhe abracei fortemente. Sua resistência estava presente, mantendo o corpo rígido, longe de mim.
– Tudo bem, eu acho. – Ela fechou os olhos, respirou fundo e me beijou na testa – Estou indo. Depois venha fechar a porta, ouviu?
Não respondi, mas também não a deixei sair – uma tentativa boba de fazer ela não brigar comigo pela manhã. Pelo visto, isso a deixou com mais raiva ainda, pois se virou para mim com o rosto vermelho, e não consegui encontrar um modo para descrever seu olhar. Soltei-a imediatamente e esperei que ela pegasse a bolsa antes de se despedir friamente. Fiquei sentada na cama, encarando o chão.
– Já que você não vai, acho que vou demorar mais um pouquinho. Não me espere para dormir. – Sua voz foi mais dura do que esperava. – Eu te amo, mas sinto falta da minha princesinha.
Acenei com a cabeça e esperei para ouvir o baque da porta. Quando o escutei, desmoronei. Aquela visão era pior do que a da minha própria morte. Por que estava tão aflita com a imagem de alguém que eu nem conhecia? Talvez fosse pelo fato de que me via sentindo mesmas emoções que ela – seu medo, a dor de ouvir o grito, a raiva por não acabar com aquilo e, ainda assim, a vontade de proteger aquele ser, mesmo que custasse a minha vida.
Estava ficando louca, essa era a única razão para ver tudo aquilo e, agora, para começar a sentir tudo o que acontecia com aquelas pessoas. Eu tornava uma ilusão em algo pessoal, como uma parte da minha história.
As minhas "visões" sempre foram restritas a minha pessoa e a coisas que ainda iriam acontecer comigo. Sempre futuro. Nunca o passado, muito menos de desconhecidos tão parecidos. Ali estava algo totalmente oposto ao que eu já me "acostumara".
Para me distrair desses pensamentos, liguei a televisão e esperei que todas aquelas lembranças sumissem com a mesma rapidez com que as cenas do desenho mudavam, um que eu assistia desde menina. Nessa espera, eu entrei na inconsciência, esperando não voltar tão cedo ou pelo menos até que meu cérebro esquecesse tudo o que vi neste dia.
Porém, meu cérebro não foi generoso comigo, e sonhei com a memória desta manhã, aquela a qual tinha confidenciado a Tay. Tinha acabado de tomar banho e me olhava no espelho, observando o meu rosto branco e com olheiras. Mal podia reconhecer meus olhos de íris quase pretas. Eram parecidos com os de mamãe, uma das poucas coisas que puxei dela. De resto, era a imagem do meu pai e eu sabia o quanto isso o irritava.
Até que vi algo a mais no reflexo... Era como se fosse outra pessoa assumindo o meu lugar através do espelho. Esse novo rosto tinha algumas fisionomias parecidas com as minhas, por exemplo: pele branca e pálida, olhos bem definidos e sobrancelhas grossas. Só que era um rosto masculino, de alguém muito alto.
Ele encarou meus olhos e os desafiou com o seu belo sorriso. Sua beleza me atraía e despertava minha curiosidade devido a uma pitoresca familiaridade. Eu aproximei a minha mão direita do espelho, para poder tocar o estranho reflexo que se encontrava à minha frente, não acreditando na realidade. Finalmente, com os dedos próximos o suficiente para tocar o espelho, eu tive uma grande surpresa.
Não encostei naquela superfície, mas sim a ultrapassei. Primeiramente, meus músculos travaram – o medo tinha dominado meu corpo – e já não sabia o que fazer. Principalmente quando senti uma mão tentando arrancar algo dos meus dedos. O reflexo olhou para mim com prepotência, testando a minha paciência.
A mão puxou um dos meus dedos com tanta força que, pela primeira vez desde que aquilo começou, senti dor e – como se um despertador tocasse – pude finalmente despertar. Olhei para os olhos verdes do reflexo, e ele me encarou furiosamente – parecia desapontado –,insinuando que me mataria com apenas aquele olhar.
Comecei a puxar a minha mão enquanto aquele homem me levava cada vez mais para dentro do espelho e, para me causar mais desespero, ele estava levando a melhor. Não o deixaria ganhar aquele cabo de guerra humano. Puxei com tanta força que, quando me soltou, dei um passo para trás e escorreguei, batendo a cabeça na porta que se encontrava fechada.
O baque fez com que eu soltasse o ar que prendia para fazer tanta força e a dor era absurda. Dessa vez, não bati a cabeça na lateral da minha cama, mas sim despertei no chão do quarto. Ofegante, sentei-me, abraçando meus joelhos ao tentar controlar o pânico que escalava pela minha garganta.
– Isso precisa parar. – Murmurei para o nada, tentando conter as lágrimas que me escapavam enquanto me abraçava.
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